sábado, 23 de julho de 2011

O vitalismo e as ciências da vida



A filosofia grega antiga compreendia o universo pela "origem", "princípio", a qual eles denominavam de arché. Por exemplo, para Tales (c. 624-545 a.C.), a origem de tudo era a água; para Anaxímenes (500 a.C.), a origem da vida era o ar. Já Aristóteles (384-322 a.C.), pensava diferente. Para ele, a vida pertencia ao sistema de causas (material, formal, motriz e final) que explicariam a essência das coisas. Nesse sentido, até o renascimento, cada corpo no mundo, cada espécie, cada sistema, seja ele, estrela, pedra, planta, animal ou ser humano, seria um produto de uma combinação específica da matéria e da forma.
A partir desse ponto de vista, tudo no universo, todas as matérias, todos os astros, todos os seres vivos eram regidos por um único princípio que atuava sob o domínio de Deus, logo, todo o universo teria uma só ordem e deveria ser desvendado unicamente pela vontade divina.  Portanto, até o século XVI, o papel do homem era de decifrar um universo conferido unicamente por Deus, e nesse sentido, a questão "o que é a vida?" não suscitava nenhuma discussão específica nem teria lugar nesse mundo.
Foi a partir do Iluminismo na época clássica, que ocorre uma ruptura com essa forma de pensamento, e todas as coisas, vivas ou não, ganham uma especificidade: o conhecimento agora se daria pela observação analítica e cuidadosa da natureza, onde a vontade humana de saber era quem deveria imperar. Buscava-se, assim, o funcionamento da natureza e a ordem desta no universo.
É no final do século XVIII, com a ideia de vitalismo, que se dará a separação dos seres vivos do mundo das coisas, constituindo-se uma nova área do conhecimento: a biologia. Nesta perspectiva, o corpo vivo deixa de ser um conjunto de elementos e órgãos em funcionamento e torna-se um conjunto de funções, um conjunto de qualidades específicas, que o século XIX chamará de "vida".
O vitalismo foi uma corrente de pensamento iniciado no Iluminismo e se tornou a base de toda a revolução científica da era moderna. Ele se opunha frontalmente às teorias do mecanicismo cartesiano que defendia uma divisão entre a mente e a matéria, concebendo o corpo humano tal qual uma máquina.
Na perspectiva vitalista iluminista, cujas pesquisas referiam-se ao campo da química, da geologia e das ciências da vida (tais como a medicina e a história natural), há uma força ou impulso vital inerente à própria vida atuando diretamente sobre a matéria organizada. Essa força ou impulso vital traria como consequência “a vida em si mesma” no que se refere aos seres humanos ou aos animais, porém, eram forças as quais não podiam ser vistas ou medidas, donde o corpo evoluiria através de estágios da criação, efetuado através da união dos fluidos masculinos e femininos produzindo, assim, uma nova ontologia do ser.
Herdeiro do vitalismo, George Canguilhem defendia um novo papel para a filosofia, qual seja, a de analisar o desenvolvimento histórico das ciências como práticas produtoras de verdades. A filosofia da ciência, como assim ficou chamada, tornou-se, então, o “estudo das epistemologias regionais”. Seu objetivo é refletir historicamente sobre a elaboração e produção de conceitos e teorias das ciências, de um modo em geral, e das ciências da vida, de modo particular, tal como se viu em um dos seus trabalhos mais importantes, “O Normal e o Patológico”, sua tese de medicina publicada em 1943 e revista nos anos 60, onde faz um ataque frontal ao edifício da normalização, tão essenciais aos procedimentos da ciência e da medicina positivistas. Nesse livro, Canguilhem vai proceder a uma investigação das definições correntes de “normal” e “patológico” nas ciências da vida, criticando principalmente as proposições médicas desses conceitos no uso das diversas terapêuticas.
De acordo com o autor, não havia até então, no campo da medicina, uma dicotomia fundamental que pudesse separar ontologicamente a saúde da doença, tendo de admitir a possibilidade de se pensar tanto a normalidade quanto a patologia como partes da mesma realidade da vida.
Para Canguilhem, as normas que definem a patologia são também normas da vida, embora fossem qualitativamente inferiores às normas que definem a saúde. Nesse sentido, não poderíamos definir o que seja saúde ou doença, meramente a partir do modelo quantitativo. Seria preciso outro modelo que pudesse inferir sobre os estados “normal” e “patológico” a um organismo humano. Retomando a expressão de Leriche, antes a “saúde era a vida no silêncio dos órgãos”. Hoje, conforme sabemos, não é mais possível se pensar assim, dado o avanço dos conhecimentos médicos e tecnológicos que dispomos para preservar a saúde.
Em sua epistemologia de vida, de acordo com o psicanalista Benilton Bezerra Jr., haveria então duas formas de definir o que seja normal: a primeira seria tomando o termo de normal como “um fato”, onde normal seria tudo aquilo que fosse mais estatisticamente prevalecente, detectado pela observação e objetivamente mensurável. A segunda seria a forma mais coloquial que usamos esse termo algo como “aquilo que deve ser”, introduzindo no uso da palavra “norma”, um conteúdo valorativo.
O conceito de normatividade se diferencia daquilo que chamamos de normal na atividade biológica, posto que todo o ser vivo é, em síntese, normativo pois consegue produzir novas leis para si em função das injunções que a vida lhe impõe. Assim, a atividade normativa institui normas diferentes de funcionamento de acordo com os obstáculos imposto para a manutenção e o desenvolvimento da vida.
Portanto, para o vitalismo, há uma descontinuidade intransponível entre a matéria bruta e a viva. O século XIX contrapõe o vivo ao inanimado a partir da ideia desordem que vence o caos. Para vencer o caos, o vivo conta com forças de formação e regulação que o filósofo alemão Immanuel Kant chamará de "princípios interiores de ação", inaugurando, assim, um novo objeto de conhecimento científico: "as ciências da vida".  
Fica aqui minha dica de leitura: “As ciências da vida – de Canguilhem a Foucault” da pesquisadora Vera Portocarrero.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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