Como se define vida? A partir de quais parâmetros podemos defini-la? Sobre quais aspectos éticos, morais, biológicos, médicos, jurídicos, psíquicos, sociais ou religiosos podemos caracterizá-la?
Na atualidade, há três grandes modelos para se tentar apreender o conceito de vida e de morte: o primeiro deste modelo eu denominarei de modelo médico-biológico que define “o que é” e “o que não é vida”, “o que é” e “o que não é morte”.
Partidários do modelo médico-biológico defendem o conceito de vida e morte a partir de aspectos puramente biológicos, sejam eles genéticos, fisiológicos ou neurológicos e todas as derivações em seu aspecto legal ou jurídico tenta preservar os direitos do ser humano como um “sistema ou organismo vivo”.
Dentro desse modelo, o conceito de “vida como um sistema ou organismo vivo” pode ser compreendido a partir de três perspectivas nitidamente distintas, a saber:
a) perspectiva orgânica - “a vida” começa a partir do momento em que o espermatozóide fecunda um óvulo, ou seja, a partir do momento em que há a fecundação das células sexuais e estas começam a se dividir para formação do embrião. Ora, do mesmo modo podemos pensar que organismos celulares primários, tais como amebas, bactérias e vírus também são organismos ou seres viventes. Outros organismos biológicos superiores tais como insetos, anfíbios, animais peçonhentos, etc, também o são. Elefantes, baleias, girafas, búfalos e pássaros estão todos dentro dessa mesma classificação. Mas tentemos nos deter nos seres humanos;
b) perspectiva neuro-sensitiva - “a vida” começa a partir do momento em que o feto passa a experimentar sensações, seja de prazer ou desprazer, ainda no útero materno. Nesse sentido podemos entender que “a vida” começa quando o sistema nervoso central do feto começa a se formar, tal como defendem os neurocientistas;
c) perspectiva singular - “a vida” começa quando nascemos e a partir daí, temos nossa “abertura para o mundo”; somos introduzidos numa corrente de emoções, sentimentos, vivências, etc., que faz de um pequeno ser um homem, um cidadão, um sujeito, um indivíduo, uma pessoa. Esse primeiro modelo médico-biológico está pari passu a uma corrente de pensamento iluminista chamada “doutrina vitalista”.
O vitalismo é uma corrente de pensamento iniciado no Iluminismo e se tornou a base de toda a revolução científica da era moderna. O vitalismo se opunha frontalmente às teorias do mecanicismo cartesiano que defendia uma divisão entre a mente e a matéria, concebendo o corpo humano tal qual uma máquina. Na perspectiva vitalista iluminista, cujas pesquisas referiam-se ao campo da química, da geologia e das ciências da vida tais como a medicina e a história natural, há uma força ou impulso vital inerente à própria vida atuando diretamente sobre a matéria organizada. Essa força ou impulso vital traria como consequência “a vida em si mesma” no que se refere aos seres humanos ou aos animais, porém eram forças as quais não podiam ser vistas ou medidas, donde o corpo evoluiria através de estágios da criação, efetuado através da união dos fluidos masculinos e femininos produzindo, assim, uma nova ontologia do ser.
O segundo modelo eu denominarei de modelo religioso que tenta pautar suas discussões a partir da ideia da “sacralidade da vida”. Consequentemente, o modelo religioso compreende a morte ora como uma penalidade para uma “vida indigna de ser vivida”, ora como uma forma de “transcendência do eu”. Nesse segundo modelo, as doutrinas judaico-cristãs são imperativas na sua forma de conceber a vida e a morte do homem. De acordo com Dany-Robert Dufout, em seu livro “A arte de reduzir as cabeças”, o imperativo da igreja sempre foi o domínio intelectual e espiritual através da consequente dominação dos corpos. Tudo que dizia respeito ao Espírito, devia estar submetido ao imprimatur da Igreja (Católica, é bom que se recorde), ou dito de outro modo “o discurso religioso sempre visa o mais enérgico domínio sobre os corpos e sobre os espíritos”, afirma Dufour. Portanto, é a partir de uma concepção de “sacralidade da vida”, ou seja, de que a vida em si contém algo de sagrado, inviolável e de que nada, nem ninguém podem extingui-la, que o discurso religioso se prontifica a definir vida e morte.
Por fim o terceiro e último modelo é denominado de modelo jurídico-político. Este modelo legitima, no mais das vezes, ações de preservação da vida e punição da morte, tais como em países onde a pena de morte é imputada e/ou a eutanásia permitida ou proibida, operando uma fratura nos dois modelos anteriores. Vida e morte, neste modelo, passam a serem compreendidas a partir do dispositivo da lei e da ordem jurídica. A exemplo disso temos o direito do feto, do neonatal, das pessoas acometidas de morte encefálica (morte cerebral), dos bebês anencéfalos ou ainda de pessoas deficientes ou acometidas de alguma doença degenerativa e terminal.
Ora, se a vida pode ser definida a partir da nossa fecundação ou a partir do nosso nascimento, como é que podemos definir a morte?
Seguindo essa corrente de pensamento, a morte só poderá ser definida em contraposição ao conceito de vida, ou seja, apesar do aparente reducionismo, a morte nada mais é do que “o fim da própria vida”, entenda-se, vida biológica. Morrer é definido então quando o corpo para de viver, quando a vida biológica chega a um fim, uma parada na “continuidade da nossa existência”.
Mas como definir esse fim? O que diz que eu morri para o mundo? O que diz que eu não faço mais parte do mundo? Que perdi meu status de sujeito de direito, de dever, de indivíduo, de pessoa? O que seria, afinal, a mortalidade?
Para responder a essa questão, gostaria então de retomar as palavras da filósofa Hannah Arendt quando ela afirma que “a mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma história identificável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico” (A condição humana).
Ora, a medicina tem nos colocado algumas questões sobre isso. Para a medicina, morte é quando o cérebro para de funcionar. Aí entramos no campo da morte cerebral. A prova irrefutável de que nosso cérebro parou e que dependemos de aparelhos e toda a tecnologia para nos mantermos vivos. Essa é a definição mais aceita hoje e prova irrefutável de que alguém morreu. A partir daí, muitos desdobramentos da morte cerebral podem ocorrer. Podemos pedir para desligar os aparelhos, daí a questão da eutanásia e também podemos delegar o direito de doar os órgãos do nosso ente querido que acabara de morrer. De qualquer modo, a tecnologia médica transformou a morte no século XX em uma “missão hospitalar”, onde morte e vida não mais são do que faces da mesma moeda.
De acordo com Lucien Sfez, autor de “A saúde perfeita”, não existe doença na pós-modernidade! Se essa assertiva é verdadeira, onde poderíamos encaixar o drama de pessoas que foram diagnosticadas como tendo morte-cerebral ou defendem a eutanásia como saída para o sofrimento humano, se a própria ciência médica se colocou no lugar de Deus como uma das grandes utopias da modernidade sob forma de um dualismo, qual seja, o dualismo entre o corpo e a alma? Quem pode afirmar, com toda a certeza, de que a alma já não pertence aquele corpo, a tal ponto de podermos propor cuidados paliativos e sugerir uma boa-morte aquele que nem mesmo tem consciência de si mesmo?
Sfez considera que uma das grandes questões que se conjura na atualidade é com relação aos transplantes de órgãos, o que vai depender veementemente do que seja a definição de morte, uma questão que está posta, sobretudo, aos médicos e aos comitês de ética de todo o mundo. Mais do que isso, qual seria então a relação do todo com a parte? Um órgão, por si só conteria a alma do seu doador? Se um órgão de um sujeito A é colocado no sujeito B poderíamos sugerir, como exercício de pensamento, que A teria um novo corpo ou B teria um novo órgão? A máxima parece não fazer sentido, se o órgão em questão fosse um rim, um coração, uma córnea ou um pulmão, mas se somos definidos pela nossa “cerebralidade”, ou dito de outro modo, se o cérebro é considerado o único órgão que constitui nossa identidade pessoal, qual o lugar do nosso “self” se nos fosse possível fazer transplantes de “cérebros”? Assim, continuando nosso exercício de pensamento, se o cérebro de C é colocado no corpo de D, seria C quem teria um novo corpo ou D quem teria um novo cérebro? Não seria esta uma forma de propor ao doador a garantia da continuidade da sua existência e, por consequência, da sua imortalidade, já que a morte poderia ser driblada através da particularidade da metafísica corporal?
Vejam que ao passo que a metafísica do corpo pode ser explorada pela tecnologia médica - que tem prolongado a vida até o seu limite, passamos a subsumir leis que pudessem dar suporte e legitimar essa ciência médica que define o que é “vida” e o que é “morte”. Os desdobramentos dessa questão têm convocado respostas suficientemente válidas para nortear o debate contemporâneo sobre a eutanásia e a finitude, seja nas ciências da saúde, nas ciências jurídicas e, sobretudo, nas ciências humanas e sociais de um modo geral.
Na atualidade, há três grandes modelos para se tentar apreender o conceito de vida e de morte: o primeiro deste modelo eu denominarei de modelo médico-biológico que define “o que é” e “o que não é vida”, “o que é” e “o que não é morte”.
Partidários do modelo médico-biológico defendem o conceito de vida e morte a partir de aspectos puramente biológicos, sejam eles genéticos, fisiológicos ou neurológicos e todas as derivações em seu aspecto legal ou jurídico tenta preservar os direitos do ser humano como um “sistema ou organismo vivo”.
Dentro desse modelo, o conceito de “vida como um sistema ou organismo vivo” pode ser compreendido a partir de três perspectivas nitidamente distintas, a saber:
a) perspectiva orgânica - “a vida” começa a partir do momento em que o espermatozóide fecunda um óvulo, ou seja, a partir do momento em que há a fecundação das células sexuais e estas começam a se dividir para formação do embrião. Ora, do mesmo modo podemos pensar que organismos celulares primários, tais como amebas, bactérias e vírus também são organismos ou seres viventes. Outros organismos biológicos superiores tais como insetos, anfíbios, animais peçonhentos, etc, também o são. Elefantes, baleias, girafas, búfalos e pássaros estão todos dentro dessa mesma classificação. Mas tentemos nos deter nos seres humanos;
b) perspectiva neuro-sensitiva - “a vida” começa a partir do momento em que o feto passa a experimentar sensações, seja de prazer ou desprazer, ainda no útero materno. Nesse sentido podemos entender que “a vida” começa quando o sistema nervoso central do feto começa a se formar, tal como defendem os neurocientistas;
c) perspectiva singular - “a vida” começa quando nascemos e a partir daí, temos nossa “abertura para o mundo”; somos introduzidos numa corrente de emoções, sentimentos, vivências, etc., que faz de um pequeno ser um homem, um cidadão, um sujeito, um indivíduo, uma pessoa. Esse primeiro modelo médico-biológico está pari passu a uma corrente de pensamento iluminista chamada “doutrina vitalista”.
O vitalismo é uma corrente de pensamento iniciado no Iluminismo e se tornou a base de toda a revolução científica da era moderna. O vitalismo se opunha frontalmente às teorias do mecanicismo cartesiano que defendia uma divisão entre a mente e a matéria, concebendo o corpo humano tal qual uma máquina. Na perspectiva vitalista iluminista, cujas pesquisas referiam-se ao campo da química, da geologia e das ciências da vida tais como a medicina e a história natural, há uma força ou impulso vital inerente à própria vida atuando diretamente sobre a matéria organizada. Essa força ou impulso vital traria como consequência “a vida em si mesma” no que se refere aos seres humanos ou aos animais, porém eram forças as quais não podiam ser vistas ou medidas, donde o corpo evoluiria através de estágios da criação, efetuado através da união dos fluidos masculinos e femininos produzindo, assim, uma nova ontologia do ser.
O segundo modelo eu denominarei de modelo religioso que tenta pautar suas discussões a partir da ideia da “sacralidade da vida”. Consequentemente, o modelo religioso compreende a morte ora como uma penalidade para uma “vida indigna de ser vivida”, ora como uma forma de “transcendência do eu”. Nesse segundo modelo, as doutrinas judaico-cristãs são imperativas na sua forma de conceber a vida e a morte do homem. De acordo com Dany-Robert Dufout, em seu livro “A arte de reduzir as cabeças”, o imperativo da igreja sempre foi o domínio intelectual e espiritual através da consequente dominação dos corpos. Tudo que dizia respeito ao Espírito, devia estar submetido ao imprimatur da Igreja (Católica, é bom que se recorde), ou dito de outro modo “o discurso religioso sempre visa o mais enérgico domínio sobre os corpos e sobre os espíritos”, afirma Dufour. Portanto, é a partir de uma concepção de “sacralidade da vida”, ou seja, de que a vida em si contém algo de sagrado, inviolável e de que nada, nem ninguém podem extingui-la, que o discurso religioso se prontifica a definir vida e morte.
Por fim o terceiro e último modelo é denominado de modelo jurídico-político. Este modelo legitima, no mais das vezes, ações de preservação da vida e punição da morte, tais como em países onde a pena de morte é imputada e/ou a eutanásia permitida ou proibida, operando uma fratura nos dois modelos anteriores. Vida e morte, neste modelo, passam a serem compreendidas a partir do dispositivo da lei e da ordem jurídica. A exemplo disso temos o direito do feto, do neonatal, das pessoas acometidas de morte encefálica (morte cerebral), dos bebês anencéfalos ou ainda de pessoas deficientes ou acometidas de alguma doença degenerativa e terminal.
Ora, se a vida pode ser definida a partir da nossa fecundação ou a partir do nosso nascimento, como é que podemos definir a morte?
Seguindo essa corrente de pensamento, a morte só poderá ser definida em contraposição ao conceito de vida, ou seja, apesar do aparente reducionismo, a morte nada mais é do que “o fim da própria vida”, entenda-se, vida biológica. Morrer é definido então quando o corpo para de viver, quando a vida biológica chega a um fim, uma parada na “continuidade da nossa existência”.
Mas como definir esse fim? O que diz que eu morri para o mundo? O que diz que eu não faço mais parte do mundo? Que perdi meu status de sujeito de direito, de dever, de indivíduo, de pessoa? O que seria, afinal, a mortalidade?
Para responder a essa questão, gostaria então de retomar as palavras da filósofa Hannah Arendt quando ela afirma que “a mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma história identificável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico” (A condição humana).
Ora, a medicina tem nos colocado algumas questões sobre isso. Para a medicina, morte é quando o cérebro para de funcionar. Aí entramos no campo da morte cerebral. A prova irrefutável de que nosso cérebro parou e que dependemos de aparelhos e toda a tecnologia para nos mantermos vivos. Essa é a definição mais aceita hoje e prova irrefutável de que alguém morreu. A partir daí, muitos desdobramentos da morte cerebral podem ocorrer. Podemos pedir para desligar os aparelhos, daí a questão da eutanásia e também podemos delegar o direito de doar os órgãos do nosso ente querido que acabara de morrer. De qualquer modo, a tecnologia médica transformou a morte no século XX em uma “missão hospitalar”, onde morte e vida não mais são do que faces da mesma moeda.
De acordo com Lucien Sfez, autor de “A saúde perfeita”, não existe doença na pós-modernidade! Se essa assertiva é verdadeira, onde poderíamos encaixar o drama de pessoas que foram diagnosticadas como tendo morte-cerebral ou defendem a eutanásia como saída para o sofrimento humano, se a própria ciência médica se colocou no lugar de Deus como uma das grandes utopias da modernidade sob forma de um dualismo, qual seja, o dualismo entre o corpo e a alma? Quem pode afirmar, com toda a certeza, de que a alma já não pertence aquele corpo, a tal ponto de podermos propor cuidados paliativos e sugerir uma boa-morte aquele que nem mesmo tem consciência de si mesmo?
Sfez considera que uma das grandes questões que se conjura na atualidade é com relação aos transplantes de órgãos, o que vai depender veementemente do que seja a definição de morte, uma questão que está posta, sobretudo, aos médicos e aos comitês de ética de todo o mundo. Mais do que isso, qual seria então a relação do todo com a parte? Um órgão, por si só conteria a alma do seu doador? Se um órgão de um sujeito A é colocado no sujeito B poderíamos sugerir, como exercício de pensamento, que A teria um novo corpo ou B teria um novo órgão? A máxima parece não fazer sentido, se o órgão em questão fosse um rim, um coração, uma córnea ou um pulmão, mas se somos definidos pela nossa “cerebralidade”, ou dito de outro modo, se o cérebro é considerado o único órgão que constitui nossa identidade pessoal, qual o lugar do nosso “self” se nos fosse possível fazer transplantes de “cérebros”? Assim, continuando nosso exercício de pensamento, se o cérebro de C é colocado no corpo de D, seria C quem teria um novo corpo ou D quem teria um novo cérebro? Não seria esta uma forma de propor ao doador a garantia da continuidade da sua existência e, por consequência, da sua imortalidade, já que a morte poderia ser driblada através da particularidade da metafísica corporal?
Vejam que ao passo que a metafísica do corpo pode ser explorada pela tecnologia médica - que tem prolongado a vida até o seu limite, passamos a subsumir leis que pudessem dar suporte e legitimar essa ciência médica que define o que é “vida” e o que é “morte”. Os desdobramentos dessa questão têm convocado respostas suficientemente válidas para nortear o debate contemporâneo sobre a eutanásia e a finitude, seja nas ciências da saúde, nas ciências jurídicas e, sobretudo, nas ciências humanas e sociais de um modo geral.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.
Muito Boom...Aprendi muito
ResponderExcluir