domingo, 17 de julho de 2011

Quatro notas sobre a Eutanásia

O avanço da tecnologia médica no prolongamento da vida introduziu, em nossa sociedade, novos questionamentos acerca do sentido e do conceito de “vida” e “morte” sem chegar a um consenso.
Nesse novo cenário, a vida biológica ganha uma nova dimensão e um novo sentido o qual não podemos prever até onde podemos chegar. Mas também é neste mesmo admirável mundo novo que alguns questionamentos passam a emergir.
Como podemos traçar um limite exato para determinar o que é “vida” e o que é “morte” na atualidade? Como podemos determinar o direito de viver e sob quais circunstâncias o direito de morrer pode ser considerado “um direito” quando reduzimos o sujeito a uma condição puramente biológica? Sob quais perspectivas podemos valorar a vida humana e quais critérios médicos são usados para determinar “vida vegetativa” ou “morte cerebral”? Se a vida pode ser definida por critérios tais como consciência, emoções, pensamentos, memória, capacidade de escolher, relacionar-se com o mundo, etc., sob quais critérios é possível definir o que vem a ser morte? E por fim, mas não último, como podemos traçar o limite entre o corpo e a mente, se a medicina e as neurociências já acreditam ter localizado no cérebro o ponto exato da consciência?
Esse debate parece não ter chegado a um fim, sobretudo quando assistimos, em fevereiro de 2009, a guerra travada entre o governo conservador do primeiro ministro da Itália Silvio Berlusconi de um lado (apoiado pelo Vaticano) e o judiciário italiano de outro (apoiado pelo presidente da república), na decisão da continuidade da vida de Eluana Englaro que permanecia em estado vegetativo há 17 anos.
Eluana Englaro sofreu um grave acidente em 1992 aos 20 anos de idade, permanecendo em coma irreversível desde aquela época. Porém, seus pais se recordam que após a visita a um amigo que estava em estado de coma, ela afirmara que se algo semelhante acontecesse com ela, não a deixassem vegetar em uma cama de hospital. Em julho de 2008, o tribunal da segunda instância de Milão autorizou que os aparelhos que a mantinham viva fossem desligados. Os juízes levaram em conta a vontade da paciente quando consciente, nove anos depois que seu pai, Beppino Englaro, ter entrado na justiça para por fim ao sofrimento da filha. Em entrevista aos jornais italianos, Beppino argumentou: “Peço que os senhores libertem a pessoa mais maravilhosa que até hoje conheci. Minha filha está morta há 16 anos”.
O caso, como se sabe, dividiu os italianos pondo a hierarquia católica em oposição à decisão judicial por meio do monsenhor Rino Fisichella, diretor da Academia Pontificial pela Vida. Fisichella afirmou que o estado de coma “é uma forma de vida” e como tal, desligar os aparelhos que mantinham Eluana viva seria uma forma de assassinato. A promotoria italiana, em novembro de 2008, apresentou recurso ao Tribunal Constitucional da Itália quanto à decisão do tribunal de Milão, mas a família de Eluana ganhou em última instância o direito de desligar os aparelhos que a alimentavam e a mantinham viva. É preciso lembrar que a Itália, a exemplo de outros países da Europa, não reconhece o direito à eutanásia, embora a jurisprudência conceda o direito aos pacientes de não serem alimentados por nenhum meio artificial.
O passo seguinte foi dado pelo primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, desafiando o judiciário ao tentar interromper a eutanásia de Eluana através de um decreto lei que proibia a interrupção da alimentação e hidratação da paciente, criando uma crise institucional. Berlusconi foi ainda mais longe, tentando aprovar o decreto lei sob forma de “Projeto de Lei”, e por fim, sugerindo uma mudança na própria constituição da Itália.
Eluana Englaro morreu três dias depois à retirada da sonda que a hidratava e a alimentava, em 09 de fevereiro de 2009, após permanecer 17 anos vivendo em estado vegetativo. Na atualidade, a despeito das dificuldades em se discutir um tema tão polêmico em meio a um forte sistema religioso tal como aquele encontrado no Vaticano, o sistema legislativo italiano passou a discutir sobre a questão da eutanásia fazendo com que o judiciário se pronunciasse quanto à sua legalização.
Esse caso é exemplar para mostrar como a questão da eutanásia está colocada hoje no que concerne ao direito à vida e à morte de pacientes que permanecem em estado vegetativo, em coma profundo ou irreversível, transformando o campo da “biopolítica” em “tanatopolítica”.
A questão da eutanásia nos dias atuais traz, entre outras, quatro questões fundamentais que norteiam todos os profissionais que lidam direta ou indiretamente com a perda de um ser humano em estado terminal, quais sejam:
- o manejo dos cuidados paliativos (ortotanásia) ou “boa morte” dos pacientes em estado terminal;
- o apoio (psicológico) a estes pacientes e seus familiares;
- a institucionalização da doação de órgãos;
- uma política que legalize a eutanásia e a ortotanásia;
No que se refere aos cuidados paliativos ou “boa morte” por parte da equipe que trabalha diretamente com o paciente terminal, alguns dados merecem ser observados: primeiro, objetiva-se a diminuição do sofrimento ou dor do paciente; segundo, possibilitar que este possa estar cercado de amigos, parentes e pessoas com as quais tenham um sentimento afetivo e de amor. É necessário que o paciente seja auxiliado no momento do seu sofrimento e que, ao ter a compreensão da dinâmica da sua doença, possa estar compartilhando seus medos e suas angustias com pessoas amadas. Terceiro, o paciente deve ter autonomia sobre sua doença e permitir que ela siga o seu curso com o auxilio ou não de medidas médicas para aliviar o seu sofrimento. A beleza da morte é que ela nos desnuda completamente, afirma o geriatra Franklin Santana Santos, em entrevista à revista Época publicada em 19 de Abril de 2010.
Como a morte é ainda algo difícil de lidar, sobretudo para qualquer pessoa que faça parte de uma equipe multiprofissional, e que trate diretamente com pacientes terminais no seu dia a dia, o apoio psicológico deve ser enfatizado tanto para o paciente como para seus ente queridos. A importância de se permitir morrer dignamente (se é que isto é possível), sem incorrer em processos prolongados, cuja dor piora o sofrimento dos pacientes, resgata a dignidade destes no final da vida.
A terceira questão refere-se à institucionalização da doação de órgãos. De acordo com a psicóloga Luciana Kind em sua tese de doutorado “Morte e vida tecnológica: a emergência de concepções de ser humano na história da definição de morte cerebral”, no Brasil, a definição de morte cerebral foi convocada a partir do primeiro transplante cardíaco entre humanos realizados em 26 de maio de 1968 pelo cirurgião Euryclides Jesus Zerbini. Muito tempo se esperou até que a nova prática médica fosse regulada pela Lei do Transplante de Órgãos – Lei N. 9.434 de 04 de fevereiro de 1997, espelhada, sobretudo, pelos debates nacionais e internacionais sobre morte cerebral e transplantes de órgãos nas últimas décadas. A lei dos transplantes de órgãos não é apenas uma conquista da ciência médica, mas de todo aquele que depende de um órgão para permanecer vivo.
Por fim, não é de se espantar que ainda se encontre no Senado Federal o Projeto de Lei Nº 125/96 que estabelece critérios para legalizar a prática da eutanásia. Apesar de sabermos que essa prática existe silenciosamente nas enfermarias e unidades de terapia intensiva de hospitais públicos ou privados no Brasil ou no exterior, torna-se necessário uma ampla discussão por parte da comunidade médico-científica, da população em geral e de profissionais que tratam diretamente com pacientes terminais, a exemplo do que já aconteceu em países da Europa, ou mesmo da América Latina.
A morte, para os que sofrem, não precisa ser um preço pago por uma vida desregrada, sem práticas ascéticas ou destituída de comiseração. A vida de cada ser humano é, em si mesma, insofismável e pode ser vida digna de ser vivida.
Talvez esses limites não estejam bem delimitados e precisam ficar mais claros, dado os avanços do campo médico-científico e silêncio em que se encontra o plano jurídico-político. Ou talvez, como diria Edgar Allan Poe no seu conto “O enterro prematuro”, “os limites que separam a Vida da Morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde um acaba e a outra começa?”.
Quem poderá um dia prever os limites da nossa finitude?

Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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