sábado, 19 de dezembro de 2015

Como é ser uma criança? Por Oliver Sacks



COMO É SER UMA CRIANÇA? [1]

OLIVER SACKS


The New York Times, 24 de maio de 1987

Tradução: Sergio Gomes

A psicanálise, sem desmerecimento, tem reunido algumas vezes uma reputação equivocada de si mesma – seja ela não científica, não verificável, redutora da riqueza da natureza humana e, não menos importante, propensa a usar um jargão opaco que a torna inacessível para o leigo.  O melhor antídoto para tudo isso é o pensamento e a escrita direta e lúcida de D. W. Winnicott. Ali estava um homem que poderia ser “popular”, completamente acessível, sem nunca deixar de ser profundo; um homem que variou audaciosamente e chegou a lugares muito longe nos reinos do pensamento, mas que sempre voltava para sua base, a psicologia da criança.
Winnicott começou como um pediatra e continuou a trabalhar com crianças durante toda a sua vida - suas teorias não são apenas “interpretações” ou “construções”, como algumas teorias psicanalíticas são, mas estão enraizados em sua observação do dia-a-dia de crianças. Com sua linguagem direta e contundente e pontos de vista intensamente independentes, ele passou a deter uma posição dupla única - como um grande pensador psicanalítico e teórico do desenvolvimento e igualmente como uma figura pública; na Inglaterra, pelo menos, ele era tão conhecido para o público como para seus colegas de profissão.
A reputação e influência de Winnicott, considerável em sua vida, têm aumentado continuamente desde a sua morte em 1971 e suas ideias muito “prematuras” para ser totalmente compreendidas em seu tempo de vida, têm um papel crucial no emocionante encontro entre a psicanálise e a biologia do desenvolvimento que está ocorrendo hoje. Na última década, um grande tesouro winnicottiano foi descoberto, incluindo “O brincar e a realidade”, um de seus livros mais acessíveis e mais importantes, embora também tenha sido publicado poucos meses depois de sua morte. Entre suas obras encontram-se “A Piggle”  -  um relato do tratamento psicanalítico de uma menina; “Privação e delinquência”; “Tudo começa em casa”, publicado no ano passado, que inclui suas palestras célebres sobre “Viver Criativamente” (E mais de meia dúzia de livros estão em preparação). E agora, na primavera deste ano, temos mais dois volumes.
“Holding e Interpretação: Fragmento de uma análise”, foi publicado parcialmente e agora é editado em um texto definitivo, com uma importante introdução de M. Masud Khan, a quem era muito próximo de Winnicott em vida e se esforçou para reunir e editar várias obras póstumas desde sua morte. Aqui está uma transcrição completa e um olhar para dentro do que geralmente é o segredo mais privado de uma experiência analítica. Essas transcrições são extremamente raras - mesmo para Freud, embora ele mantivesse notas detalhadas, mas nunca manteve uma transcrição completa. Já houve, é claro, outras descrições de análises que nos dão uma ideia geral dos temas centrais de uma análise e a relação e os processos centrais do trabalho de uma analista, mas essa transcrição é diferente. É o plano verdadeiro, em que tudo está em aberto para ver: os momentos especiais pontuados pelas horas de tédio; o surgimento dos sentimentos da transferência e da contratransferência; a mistura do imprevisível e inevitável; os erros de interpretação e de datas e não menos importantes, dos seus triunfos.
Uma introdução mais próxima e mais pessoal para o homem e seu trabalho é fornecida por “O gesto espontâneo”, amplamente focado na seleção de cartas de Winnicott. Nenhum desses livros havia sido publicado antes. Eles foram sensivelmente editados F. Robert Rodman, que fornece uma introdução detalhada e fascinante. Dr. Rodman descreve como ele mesmo, então um jovem analista em Los Angeles, escreveu a Winnicott em 1969 e recebeu uma resposta particularmente acolhedora – “foi mais do que uma resposta: foi um presente”. O impacto desta carta, o sentido das cartas de Winnicott como “presentes”, levou o Dr. Rodman a embarcar em um longo projeto de coletar quase mil cartas e selecionar as 126 publicadas no livro, todas centralmente relacionadas com o desenvolvimento do trabalho e as ideias de Winnicott. Dr. Rodman é eminentemente adequado para esse trabalho, uma vez que ele próprio é tanto um autor quanto um analista que já reuniu sua sensibilidade humana em dois livros notáveis: ''Not Dying: A Memoir'  (Não morrer: uma memória) e  “Keeping Hope Alive: On Becoming a Psychotherapist” (Mantendo a esperança viva: sobre se tornar um psicoterapeuta) [ambos sem tradução no Brasil].
A primeira carta do livro, escrito por Winnicott ainda como estudante de medicina em 1919, é bastante notável, mostrando claramente, nesta fase, a sua intenção de explorar a psicanálise (“um assunto que tem o grande charme de ser realmente útil”); sua admiração e respeito pela mente humana e sua própria independência extrema de ideias - uma independência que era a raiz de sua originalidade subsequente; sua recusa em ser identificado com qualquer “escola” de psicanálise e seu ser, em suas próprias palavras, era “um fenômeno isolado”.
Embora houvesse um continuado desenvolvimento de ideias ao longo sua carreira, seu verdadeiro crescimento só veio no último terço de sua vida, quando, ao longo de 25 anos de atividade criativa incessante, ele desenvolveu suas técnicas e teorias totalmente originais. Uma técnica de projeção winnicottiana foi o “jogo do rabisco” - um desenho começado por Winnicott, e, em seguida, continuado como um jogo entre seus jovens pacientes e ele mesmo. Winnicott disse que ele só se tornou realmente proficientes em rabiscos em torno da idade de 60 anos e parece provável (como tem afirmado sua velha amiga Madeleine Davis entre outros) que esta nova proficiência correspondeu à imensa capacidade que ele tinha para o jogo durante os últimos 20 anos ou mais de sua vida. Esta capacidade pessoal foi seu reconhecimento da imensa importância do jogo no desenvolvimento humano e na cultura. Não havia separação entre o homem e o pensador: o teórico de jogo tornou-se o mais brincalhão dos homens. Enquanto o próprio Freud era imensamente espirituoso e escreveu “Os chistes em relação com o inconsciente”, a teoria freudiana, em certo sentido, tinha pouco espaço para o brincar, para outra coisa senão “realidade” ou “fantasia”.  Winnicott, embora nunca tivesse entrado em conflito com Freud, ampliou a psicanálise abrindo espaço para este terceiro reino - o reino da liberdade ou do brincar, e traçou a sua continuidade do que ele veio a chamar de “fenômenos transicionais” na infância, através do brincar com crianças, para as mais altas  e criativas realizações imaginativas da humanidade.
Às vezes, algumas pessoas temem, nestes dias tecnologizados e de ligações telefônicas apressadas, que a escrita de cartas irá desaparecer. Esta seria uma grande tragédia, pois uma carta (na melhor das hipóteses) é uma forma de comunicação diferente de qualquer outro, rica em conteúdo ainda que intensamente pessoal - e as cartas de Winnicott estão entre as melhores. Winnicott, apesar de sua eminente e incessante pressão de trabalho, nunca teve de voltar a escrever e escreveu longa e abertamente a correspondentes de todos os tipos. Há uma carta maravilhosa a um americano, um homem angustiado que escreveu para Winnicott inesperadamente. Winnicott deve ter recebido inúmeras cartas desse tipo, mas ele geralmente respondia na íntegra, com uma seriedade apaixonada e a preocupação com o sofrimento de quem escreveu. Assim, nesta carta, sensível à “agonia impensável” da qual seu correspondente sofria, ele via motivos para esperança e afirmação.
Winnicott era infinitamente sensível às necessidades, especialmente as não ditas e inconscientes, se estas eram as necessidades dos colegas ou de pacientes, ou de estranhos que escreviam para ele. Ninguém sente, lendo essas cartas, ter escrito para ele em vão (ninguém em necessidades). Ele foi movido igualmente por necessidades intelectuais e culturais (e não menos importante, por necessidades políticas). A necessidade de ser claro, para evitar obscuridade ou jargão; a necessidade de ser independente; a necessidade de ser livre; a necessidade, acima de tudo, para viver a vida de forma totalmente criativa. Estes são os temas que se movem constantemente através de suas cartas, enquanto se moviam constantemente através de sua vida e obra. Não é de se imaginar que um homem tão consciente das necessidades e habitualmente claro e direto em suas palavras, fuja às necessidades de ataque. Raramente pode ter havido um correspondente franco como Winnicott -  ele encarava de frente seus ataques, conforme observa Dr. Rodman, mas os ataques sempre brotam de sua intensidade de concernimento (intensity of concern). Assim, em uma das cartas mais surpreendentes, para a famosa analista Melanie Klein ele escreveu:
“Eu pessoalmente acho que é muito importante que o seu trabalho deve ser reafirmado por pessoas que o descobrem em sua própria maneira e apresentar o que apresentem o que descobrem na sua própria linguagem. E apenas desse modo que a linguagem será mantida viva. Se você estipular que no futuro apenas a sua linguagem seja usada para a afirmação das descobertas de outras pessoas, então a linguagem se torna uma linguagem morta, como já se tornou na sociedade. Você ficaria surpresa. Você é a única que pode destruir esta linguagem chamada a doutrina kleiniana e kleinianismo, e tudo isso com um objetivo construtivo. Se você não destruí-la, então esse fenômeno artificialmente integrado tem de ser atacado destrutivamente”.
Winnicott tinha uma grande afeição pessoal por Melanie Klein, e ele a considerou a mente mais criativa na psicanálise depois de Freud. Não foi Klein mas o “kleinianismo” que incitou seu ataque. Muitos termos idiossincráticos de Winnicott se passaram para a linguagem psiquiátrica - e, pelo menos na Inglaterra, onde Winnicott tinha uma grande audiência popular, para o vocabulário popular. Termos como “a mãe suficientemente boa”, “a mãe devotada comum”, “a fase de concernimento”, “a exploração do ambiente” e não menos importante, o conceito de “falso self” (que mais tarde foi assumido por R. D. Laing) agora parecem muito mais parte do nosso vocabulário do que precisamos lembrar que eles foram usados ​​pela primeira vez por Winnicott. Mas principalmente como o Dr. Rodman nos lembra, “ele foi o primeiro a abordar de forma analítica uma questão que não tinha sido considerado por psicanalistas diante dele: sobre o que versa a vida?”. Esta questão, previamente filosófica ou religiosa, une os lados biológicos e religiosos de Winnicott, mas recebe radicalmente novas formulações em termos psicológicos: é o tema central de seu grande livro de 1965 chamado “O ambiente e os processos de maturação”, um estudo profundo das necessidades e dos potenciais humanos e como eles devem ser reconhecidos e tratados. O próprio título do livro diz tudo, salienta que estes potenciais não amadurecem “espontaneamente”, mas exigem uma interação especial - primeiro entre os pais e o filho, em seguida, entre professor e aluno, e depois talvez entre o terapeuta e o paciente. Winnicott disse uma vez: “Não existe tal coisa como um bebê”, o que significa que onde quer que você encontre um bebê, você também irá encontrar uma mãe, e que os dois devem ser sempre considerados como um par.
O fundador da neuropsicologia, L. S. Vigotsky, teve precisamente a mesma visão interativa sobre o desenvolvimento da linguagem e do pensamento em si: que estes não poderiam desenvolver sem figuras de facilitação  - “mediadores” - situado a uma certa distância (no que Vigotsky chamou de “zona de desenvolvimento proximal”), que poderia servir para trazer os potenciais latentes da criança. A linguagem, para Vigotsky, foi uma realização conjunta, negociada entre a mãe e o filho. Pode igualmente ser vista em termos winnicottianos como um “objeto transicional”, “mediação entre o mundo exterior e interior”. O trabalho de Vigotsky, em 1936, foi prontamente reprimido (como sendo anti pavloviano), e é provável que Winnicott nunca soube disso (ao menos por Luria, o neuropsicólogo que falou sobre isso com Winnicott - Dr. Rodman inclui uma breve carta tentadora, de Winnicott para Luria, aludindo a um fim de semana de conversa em conjunto). E só agora que Vigotsky está sendo redescoberto, e vemos que ele e Winnicott são irmãos, e a neuropsicologia e a psicanálise são complementares e paralelas.
A psicanálise antes de Winnicott estava preocupada com a doença, com tudo o que poderia dar errado (emocionalmente) com uma pessoa. Winnicott, enquanto um analista soberbo no sentido clássico - e um dos primeiros a tratar pacientes profundamente regredidos e psicóticos - via a saúde como sua preocupação central. E saúde, para Winnicott, não era apenas a ausência de doença, mas um estado intensamente positivo de realização - a preservação da capacidade da criança brincar e imaginar; uma inviolável independência e espontaneidade; uma riqueza cada vez maior e liberdade de vida interior; e, acima de tudo, a capacidade de viver criativamente. E viver criativamente, para Winnicott, não era apenas algo para raras pessoas em momentos raros, mas potencialmente para todos, em todos os momentos.



[1] “What it´s like to be a child”, foi publicado originalmente no “The New York Times”, em 24 de maio de 1987. Este artigo foi escrito quando da publicação, nos Estados Unidos, dos livros “O Gesto Espontâneo”, coletânea de cartas de Winnicott, organizada pelo psicanalista Robert Rodman e “Holding e Interpretação”, sobre o tratamento de um paciente esquizoide feito por Winnicott a partir de suas notas clínicas. Disponível originalmente no link: http://www.nytimes.com/1987/05/24/books/what-it-s-like-to-be-a-child.html?pagewanted=all#h[]




quinta-feira, 9 de julho de 2015

O ÚLTIMO SORRISO DO PALHAÇO


O ÚLTIMO SORRISO DO PALHAÇO

Disponível no site

TRECHO:

Cresci vendo meu pai divertir a mim, a minha mãe e a centenas de pessoas que às vezes enchiam a lona que montávamos em alguns cantos das cidades. Ele não só nos fazia rir mas conseguia arrancar da nossa alma uma gargalhada. Ele dizia que aquele que não conseguia rir de um palhaço tinha um coração impuro, porque o palhaço sempre fala com a criança que habita em cada um de nós. Então, era com essa criança que ele se comunicava.


DO LADO DE DENTRO


DO LADO DE DENTRO

Disponível no site


TRECHO: 

Com o tempo, o serzinho passou a se acostumar com o curto espaço que ocupava e com os barulhos que ouvia, conhecendo-os cada vez mais e respondendo emocionalmente a alguns deles. Era uma forma de se comunicar. Então, havia dias em que tudo era caos naquele mar, mas outros, era tudo paz.

#brasilemprosa


A FACA DO AÇOUGUEIRO



A FACA DO AÇOUGUEIRO

Disponível no site 


TRECHO:


A impressão que eu tinha era de não haver escapatória, eu estava prestes a ser sacrificada ali mesmo pela loucura do meu pai, com a anuência da minha mãe e a paralisia do meu irmão.