domingo, 28 de novembro de 2010

MADAME SATÃ: DO PROFANO AO SAGRADO



Vivia na maravilhosa China, um bicho tubarão, bruto e cruel, que mordia tudo e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia todo dia uma oferenda com sete gato maracajá, que ele mordia antes de pôr no sol. No ímpeto de pôr fim a tal ciclo de barbaridades, chegou Jamacy, uma entidade da floresta da Tijuca. Ela corria pelos mato e avoava pelos morro. E Jamacy virou uma onça dourada, de jeito macio e de gosto delicioso. E começou a brigar com o tubarão, por mil e uma noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucado que ninguém mais sabia quem era um, e quem era outro. E assim, eles viravam uma coisa só: A Mulata do Balacochê”.

O longo trecho é um monólogo interpretado pelo ator Lázaro Ramos, através do personagem João Francisco dos Santos, mais conhecido como Madame Satã, título que dá nome ao filme de Karin Aïnouz (Brasil, 2002).

João Francisco dos Santos, ou melhor, Madame Satã, viveu no Rio de Janeiro dos anos 1930. Nasceu em 25 de fevereiro de 1900, na cidade de Glória do Goitacá, no sertão Pernambucano, numa família de 17 filhos, entre homens e mulheres.

Sua mãe era descendente de escravos, e o pai, descendente de ex-escravo filho da elite latifundiária, vindo a morrer tão logo João fez sete anos.

Sua infância não foi fácil: um ano após a morte do pai, foi trocado por um égua pela mãe, e veio morar no Rio de Janeiro. Aos 13, passou a viver na rua dormindo nos degraus das casas antigas do bairro da Lapa. Por volta dos 18 anos, passou a trabalhar em um bordel como garçom, assim como trabalhava a maioria dos “homossexuais” da época. De acordo com as pesquisas realizadas por James Green para o livro “Além do Carnaval”, João era malandro autêntico e até certo ponto honesto, digno, consciente de sua profissão. Era limpo, usava camisa de seda-palha com botões brilhantes, gravata de tussot branco, sapatos com salto carrapeta, chapéu panamá e muitos anéis.

Quando adulto, tornou-se malandro, artista transformista, pai adotivo, capoeirista, cozinheiro, presidiário, preto, pobre e pederasta passivo, assim como é definido logo no início do filme. João Francisco viveu a maior parte de sua vida nas ruas boêmias da Lapa, no seu círculo de amigos, amores, amantes. Não levava desaforo para casa e sua agilidade de capoeirista e o bom uso que fazia de uma navalha o fizeram uma figura temida, dos frequentadores da noite onde circulava, aos policiais que o perseguiam. Sobrevivia praticando o jogo, a prostituição, a cafetinagem, o roubo, compondo sambas ou aplicando golpes. Sua imagem, na maioria das vezes, sugeria masculinidade e virilidade. Talvez pelo uso habilidoso que fazia de sua navalha, usada quando ofendiam sua honra, o enganavam no jogo ou traíam sua confiança. Viveu durante 76 anos, 27 dos quais na prisão. Definia-se como “filho de Iansã e Ogum”.

Sua história começa no Cabaré Lux, onde Vitória dos Anjos, interpretada por Renata Sorrah, canta os sucessos de Josephine Baker, de quem João Francisco se dizia devoto. Nos bastidores da apresentação de Vitória, ele reproduzia cada gesto e cada palavra da cantora decadente. Venerava, desse modo, Vitória dos Anjos e Josephine Baker, enquanto era explorado e humilhado por Gregório, seu patrão e amante de Vitória.

Mas é no cortiço em que vive no coração da Lapa, que João Francisco comanda o seu mundo, compartilhado por Laurita (Marcélia Cartaxo), prostituta e esposa, Firmina (Giovanna Barbosa), filha de Laurita, adotada por ele como se fosse sua filha e Tabu (Flávio Bauraqui), seu cúmplice nos pequenos golpes e escravo.

Nesse universo sujo e decadente, onde a beleza plástica de um sonho artístico se mistura à sujeita viscosa por onde perpassam drogas, sexo e pequenos crimes, João Francisco conhece a glória, o amor, o sexo e o gozo miserável de se viver em um mundo onde a ignomínia de ser preto, pobre e pederasta passivo limitava veementemente o “mundo dos que têm” e o “mundo dos que tentar ter” um pouco de dignidade humana.

No filme, as contradições beiram o surrealismo: um mundo onde a película registra tenazmente o calor, a brilhantina, a gordura, o suor, o odor miserável de se viver no Rio de Janeiro no início do século passado. Ruas podres, odores que não sentimos, a sarjeta dos bares e botequins, cujo luxo, pobreza e violência se intercalam constantemente com o lúdico e o trágico, como um mesmo elemento que faz João Francisco se tornar Madame Satã, a Mulata do Balacochê ou o Gato Maracajá, todos personagens inventados por ele para encenar a sua glória de artista da sarjeta. Quem conhece o bairro da Lapa do jeito em que hoje se encontra, pode vislumbrar como poderia ter sido há mais de setenta anos o universo em que Madame Satã trafegava. Mas era no palco que João Francisco se transformava, e como diz o seu monólogo, não sabendo mais “o que era um e o que era o outro”.

O palco para ele era sagrado, e sua profanidade só se dava através do “desejo perverso” por Renatinho (Felippe Marques), um garoto de programa com quem viveu uma grande paixão, sem nunca confirmar que o amava de verdade.

É impossível não ver sequer um pouco de Jean Genet nas cenas que se desenrolam, em que os personagens de Querelle e Nossa Senhora das Flores parecem querer invadir o espelho rachado que marca o tempo, a narrativa do momento e do local onde cada uma das histórias se passa, visto que em Madame Satã, toda a história se dá em um universo à parte do Brasil dos anos de 1930, época em que a política fervilhava, os impérios dos cafés ruíram diante da crise econômica de 1929, quando a burguesia e a elite carioca tentavam se sustentar a duras penas, a repressão militar e a “carioquicidade” dos grandes bordéis, bares e vida boêmia conquistavam seu espaço, sobretudo em um Brasil que praticamente havia deixado o século XIX sob a égide da abolição da escravatura.

Violência, sexo, boemia, perversão, ternura, amor, paixão, morte... são essas categorias que inscrevem o trágico em Madame Satã. Tudo o que João Francisco mais amava, morre com seu ato de violência. É como que fora dos palcos, o sagrado se transformasse, de fato, em profano, cuja redenção se daria através do corpo imaculado da personagem que ele inventou, em um ato de cópula, engendrando o não-engendrável!! O artista satã, cujo nome tanto nos incomoda, torna-se homem pecador pela via mesma da sexualidade marginal que fora patologizada pela medicina e pela sexologia da época. Duas décadas antes, Freud já dizia que o mal dos nervos só poderia trazer más consequências para uma sociedade que reprimia o desejo e cuja moral sexual era muito rígida. No caso de João Francisco, não há o que recalcar. Ele não escondia a sua preferência por homens e pelo sexo que gostava de praticar.

De acordo com James Green, ao contrário de outras figuras de destaque da época, Madame Satã gostava de fazer sexo com homens: “porque ele se tornou uma figura de certo modo folclórica, sua vida foi bem mais documentada que a de outros jovens observados pela investigação de médicos e estudantes de criminologia nos anos de 1930, ou de incontornáveis outros que desapareceram no registro histórico”.

Daí o feminino encarnado em Madame Satã surgir desse apelo desesperado por um outro, que pode ser visto no amante Renatinho, nos furtos que comete, na “esposa” despudorada e prostituta ou na filha adotiva que cria.

Sem máscaras, sem subterfúgios, em um mundo que aceita menos o diferente numa época tão castradora, João Francisco não precisou construir um armário para poder sair. Admite sua homossexualidade como uma blasfêmia dita em pleno ato carismático; joga sua pederastia passiva contra a mesma sociedade que impõe segredo ante a sua anormalidade; daça e inventa personagens, caricaturas do feminino, como que para agredir, não fortuitamente, a mesma cultura que diz não ao seu apelo artístico. É a mais perfeita encarnação da contracultura brasileira que impõe o gueto à chamada homossexualidade no Brasil e no mundo da década de 1930.

Como homossexual, ou melhor, “pederasta passivo” tal como era definido pela criminologia e sexologia da época, o sexo que praticava promovia uma rachadura entre aquilo que ficou convencionado entre as classes sociais (dominador/ativo – dominado/passivo) que separavam público e privado, pessoal e político. Fazia do seu “anus” objeto de gozo e revolução, de revolta e de ação contra a elite burguesa, tal como apresentado por Guy Hocquenghem no livro “A Contestação Homossexual”. Retomando as palavras de Gilles Deleuze, o autor afirma: “O buraco do cu permanece a única zona vergonhosa do corpo do burguês. Ele não se beneficia com a ambivalência do pênis. (…) O anus é a zona particular por excelência do corpo burguês. (…) O uso do 'buraco do cu' é a pedra de toque do conflito entre 'pessoal' e 'público' (político). A descoberta prática dos homossexuais revolucionários [tal como João Francisco/Madama Satã o foi] é que o 'pessoal' não é outra coisa que não um fechamento e o 'político' só é uma expressão possível da libido”. Dito em outros termos, continua Hocquenghem, “o 'buraco do cu' não é nem vergonhoso, nem pessoal, é público e revolucionário”.

Daí, portanto, a dupla imagem engendrada por João Francisco em um só corpo: uma figura que nem é andrógeno por definição, nem caricata por vontade própria. Ele funde a homossexualidade à virilidade, a masculinidade à marginalidade, a malandragem ao boêmio, deixando à magia do carnaval ou às suas performances, o transbordamento de sua fluidez como figura folclórica e artística do bairro da Lapa.

Desse modo, conforme afirma José Arthur Gianotti, João Francisco “retira de seu homossexualismo qualquer traço de violência e de marginalidade, sente-se macho gostando de garotos a ponto de se viciar na pederastia, mas no fundo, tudo se passa segundo as inversões costumeiras durante o Carnaval, por certo com algum exagero. É homem casado, com seis filhos adotivos, que se diz pederasta e normal; se recusa a manifestar qualquer sentimento íntimo, o que resta são práticas a serem consideradas como se estivessem desfilando num bloco carnavalesco”.

Nisto reside a dualidade de João Francisco: pai, amante, ladrão, drogadito, pederasta, artista, não importa. Fez da sua vida até o fim, estética de toda sua existência. Viveu em um mundo bruto e marginalizado, amou e matou, fez arte e de boa qualidade para o universo que o reconhecia e venerava. Foi homem, foi diabo, foi santo, foi bandido. Também não importa. A personificação e a compleição de um artista que só um grande ator pode vivenciar, tal como fez Lázaro Ramos, sagazmente faz de Madame Satã algo para se refletir como que estamos fazendo da nossa vida, o que estamos fazendo da vida do outro, o que estamos fazendo na nossa própria cultura.

Madame Satã é, acima de tudo, um olhar do que restou de uma cultura que o Brasil demorou tanto a reconhecer. Mas também é um olhar do que pior e do que melhor podemos fazer com a nossa própria vida. Uns transformam o palco na razão do seu próprio viver [aqui poderiam se encontrar os verdadeiros atores e artistas em geral, que fazem da sua arte, a razão de sua própria existência]. Outros transformam o ideal de uma vida unicamente em subir no palco [aqui se encontrariam todos aqueles que querem muito mais do que quinze minutos para sobreviver às custas da própria fama, ou seja, figuras passageiras do mundo artístico]. Finalmente, outros são como João Francisco. Faz valer da sua vida, o reconhecimento de sua arte e do seu espetáculo pelo seu público, e não da mídia, como algo que ele tão bem aprendera a desejar, respeitar e a valorizar [aqui se encontram, além dos verdadeiros artistas, todos aqueles que entram para a história e fazem com sua arte, parte da cultura de um povo].

Nada mais justo para uma figura como Madame Satã.



Publicado na Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro, v. 26, n. 336, p. 29-31, 2004


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br .

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"A FERIDA DA EXISTÊNCIA NÃO TEM CURA"



Em 1936 a Europa estava em plena ascensão do nazismo. Este movimento fez com que muitos judeus se refugiassem para fugir da morte e dos campos de concentração. Não obstante, a psicanálise já havia se firmado como uma terapêutica para aliviar o sofrimento, as dores e os males da alma e Freud já havia ganhado notoriedade tanto na Europa como nos Estados Unidos.

É nesse mesmo ano que Freud receberá uma carta de uma senhora norte-americana, mãe de um jovem homossexual. Nesta carta desesperada, ela pede ajuda ao psicanalista para tratar das condutas, comportamentos e desejos sexuais do seu filho, apesar de não fazer uso nem do termo “homossexual” nem do termo “desejos sexuais”. Não temos acesso a essa carta. Mas conhecemos a resposta de Freud a esta mãe:

“Eu apreendo de sua carta que seu filho é um homossexual. Estou muito impressionado pelo fato de que a senhora não mencionou este termo nas informações que deu sobre ele. Posso perguntar-lhe por que evitou esta palavra? Homossexualidade, seguramente, não é uma vantagem, mas não é nada de que tenhamos que ter vergonha. Não é vício, degradação e não pode ser classificada como uma doença. Consideramos a homossexualidade como uma variação da função sexual, produzida por uma certa parada no desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram homossexuais (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime e também uma crueldade. [...] Perguntando-me se posso ajudá-la, a senhora pergunta, suponho, se posso abolir a homossexualidade substituindo-a pela heterossexualidade normal. A resposta é: de maneira geral, não podemos prometer isto. Em um certo número de casos, somos bem sucedidos, desenvolvendo os germes das tendências heterossexuais que estão presentes em todo homossexual. Na maioria dos casos isto não é possível. [...] O que a análise pode fazer por seu filho, caminha na linha diferente. Se ele é infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer-lhe harmonia, paz de espírito, plena eficiência, quer ele permaneça homossexual ou mude”.

O que Freud tentou nos ensinar não foi curar a homossexualidade. Em se tratando da sexualidade, o que aprendemos com o metapsicólogo corre em direção contrária, ou seja, não há referentes fixos no tocante à sexualidade, seja ela heterossexual ou homossexual. Não obstante, nossa cultura fez parecer natural haver uma sexualidade normal e uma sexualidade que precisasse ser tratada e curada.

Que sociedade é esta que impõe tamanho sofrimento psíquico para homens e mulheres gays e como tal, o que nós analistas estamos fazendo para aliviar a dor de quem nos pede ajuda em meio a uma sociedade herdeira da moral sexual que Freud tanto nos advertia?

No campo do sofrimento psíquico, há algo mais que pode ser dito: se há sofrimento por parte dos homossexuais, a ponto de alguns buscarem ajuda psicológica para a sua angústia e a sua dor (inerentes ou não à sua sexualidade, tais como falta de amor ou sentimento nos seus relacionamentos, stress, depressão, solidão face à tirania das grandes cidades, ou qualquer outro sintoma), isto se deve a dois grandes movimentos que fazem com que estes sujeitos não se sintam adequados à sociedade em que vivem.

O primeiro movimento refere-se à força repressora e violenta com que ainda tratamos a homossexualidade em nossos dias. Apesar dos avanços conseguidos para se quebrar a barreira do preconceito, ainda tratamos a homossexualidade de forma negativa e pejorativa, a despeito das campanhas contra AIDS, da publicização da violência contra os homossexuais e lésbicas, da maior aceitação da homossexualidade entre nós ou dos avanços legais conseguidos através dos movimentos de cidadania homoerótica.

Como um sujeito homossexual pode se identificar e não insurgir em algum tipo de sofrimento, em nossa sociedade, se esta é eminentemente masculinista, patriarcalista e heterosexista? Em nenhum momento encontramos em nossa sociedade exemplos morais dignos de aceitação e que possam servir de referência para a vida pública ou privada de sujeitos homoeróticos.

A homossexualidade hoje, ainda está escondida sob o véu do preconceito e da discriminação de modo velado. Um exemplo disto é que não há uma música sequer na nossa ou em qualquer outra cultura que fale do amor homossexual, sem ser de forma pejorativa. Também não há nenhuma campanha publicitária de massa nos jornais, revistas ou na televisão em que um casal homossexual masculino ou feminino possa servir para vender um produto de consumo qualquer, salvo aqueles que fazem parte da “cultura de consumo gay”, anunciados em revistas específicas ou em programas de televisão a cabo específicos para a comunidade gay ou lésbica. Não há muitas histórias de amor em livros, filmes ou telenovelas brasileiras feitas em torno do casal homoerótico, sem representá-los de modo pejorativo, ou sem que a tragédia faça parte de suas vidas (O filme “O segredo de Brokeback Mountain”, de 2006, é um deles). Lembremos que até hoje, o amor romântico parece ser herdeiro apenas do casal heterossexual, que por sua vez está baseado no ideal de família e nos padrões de família nuclear burguesa constituída de um pai, uma mãe e filhos. De modo contrário, o submundo do crime ou do vício parece servir perfeitamente como referente da cultura de sujeitos homossexuais, tais como representado em livros de grandes escritores como foi Proust, Gide ou Oscar Wilde.

O adolescente gay, por consequência, não encontra modelos identificatórios com os quais possa servir de espelho no mundo em que vive, e quando encontra, são modelos estereotipados de homens feminilizados, mulheres masculinizadas, marginais, homens de pouco sucesso afetivo, sexual, financeiro ou profissional, muito embora a sociedade conheça (e reconheça) em seu meio, sujeitos com tais características.

Isto gera um segundo movimento, que não é novo, qual seja, a subcultura gay, do gueto e da linguagem camp.

A subcultura camp foi criada ou construída para escapar da sociedade repressora, através de modos e hábitos de comportamentos exagerados, escandalosos e efeminados de certos homossexuais, buscando romper com o preconceito da mesma forma impulsiva com que a sociedade os trata. Para alguns antropólogos e sociólogos, o equivalente no Brasil da cultura camp é a “cultura da fechação” no mundo ou “submundo gay”.

Às vezes, esse é único espelho que o jovem homossexual tem para construir sua identidade, para descrever a si mesmo ou ainda para descrever aquilo que as pessoas esperam que eles devam ser. Não me admira, portanto, que esta seja sede de grande parte dos conflitos de homens e mulheres gays relatados na clínica.

Acredito que muitos dos conflitos intersubjetivos ligados à identidade sexual de homossexuais e lésbicas na clínica refletem a falta desse modelo identificatório hegemônico que possa descrever a pluralidade de suas subjetividades. Esses conflitos ainda podem estar ligados a percepção da “intolerância” de muitos no que se refere à vida privada de gays e lésbicas, aliada à crença de que ainda exista uma normatividade e uma normalidade frente às subjetividades sexuais, sentido este que Freud, não obstante as teorias que criou, lutou para derrubar.

Talvez este tenha sido um dos maiores legados que Freud deixou para a sociedade e seus seguidores: a possibilidade de acreditar na contingência de nossa sexualidade, sem as grades impostas pela prisão identitária fomentada pela nossa cultura.

A contribuição deste cientista que derrubou barreiras e abriu caminho para uma melhor compreensão de nossas subjetividades, é fantástica. Porém, Freud ficaria espantado se soubesse que 100 anos depois, ainda encontramos sujeitos em consultórios que procuram ajuda psicológica referindo-se a sua homossexualidade como queixa, e que alguns profissionais inadvertidamente se deixam seduzir pela tão viva e ainda ativa “moral sexual civilizada”, procurando curar o que não tem cura, pois não se trata de doença, e sim de aflições, angústias, medo, culpa, vergonha, desamparo afetivo e tantos outros sofrimentos psíquicos quanto a maioria das pessoas que procuram o divã de um psicanalista, pois conforme afirma o psicanalista Jurandir Freire Costa “uma vez no divã, somos todos iguais diante da falta, do rochedo da castração, da inveja do pênis, da viscosidade da libido, do real ou da insustentável divisão do não-ser. [...] Aos tolos, a busca do Santo Graal erótico; a nós, a consciência trágica, contida, heróica e dilacerada de que a ferida da existência não tem cura”.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br .

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

LIBERTÉ, EGALITÉ, FRATERNITÉ



A concepção de que os seres humanos merecem respeito pelo ideal de humanidade e dignidade é um bastião que tem levado os militantes dos Direitos Humanos a lutarem contra todas as formas de discriminação, preconceito, desigualdades, injustiças sociais, políticas e econômicas, violência física ou psicológica e impunidades de toda a sorte.


Neste tipo de sociedade (concretamente possível nos dias de hoje), na qual sujeitos e grupos organizados cobram dos dirigentes do nosso país e da própria sociedade o respeito pelo outro e pelo nosso semelhante, o que se torna inquestionável e o que se tenta pluralizar em nossa cultura e em nossa sociedade machista, preconceituosa, capitalista, patriarcalista, patrilinear e individualista é não só o respeito por esse “outro” que nos é semelhante, como também aumentar o sentido e a referência do “nós” a um número cada vez maior de sujeitos. Da mesma forma, também se objetiva nesta mesma sociedade recrudescer a solidariedade, a dignidade, o respeito e a tolerância pelo outro, independente da raça, cor, sexo, cultura, partido político, crença religiosa ou status social na mesma sociedade dita democrática.


Tornou-se hegemônico em nossos dias, compreender nosso semelhante como alguém de menor valor que eu, se ele não participa do mesmo grupo social do qual participo, se ele não se assemelha de alguma forma a mim ou se não encontramos um pouco de nós mesmos nesse outro. Quando isto ocorre, passamos a não só destratar o nosso semelhante como também, em alguns casos, a incorrer em sentimentos de ódio generalizado ou em ações e comportamentos de discriminação e preconceito, desencadeando o sentimento de intolerância para com este sujeito ou grupos de sujeitos.


É neste sentido que a luta dos defensores dos Direitos Humanos parece não ter fim, pois o que se objetiva é a possibilidade de viver em um mundo onde as diferenças não sejam parteiras do sofrimento de milhões de pessoas que vivem como cidadãos de segunda classe, primando por uma igualdade de direitos e deveres comuns a todos os seres humanos.


Um dos grandes acontecimentos da modernidade marcou a doutrina dos Direitos Humanos: a Revolução Francesa de 1789.


A Revolução Francesa foi o nome dado ao conjunto de acontecimentos que, entre 5 de Maio de 1789 e 9 de Novembro de 1799, alterou o quadro político e social da França, principalmente no que se refere ao Antigo Regime (Ancien Régime) e a autoridade do clero e da nobreza. A Revolução Francesa, influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana, está entre as maiores revoluções da história da humanidade. Foi considerada como acontecimento que deu início à Idade Contemporânea, abolindo a servidão e os direitos feudais, proclamando os princípios universais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (Liberté, Egalité, Fraternité).


Mas quando os revolucionários franceses proclamaram “liberdade, igualdade e fraternidade”, eles não estavam se referindo a todas as pessoas, mas sim aos homens bons, brancos e ricos, deixando de lado as mulheres, os pobres, os negros e os mestiços – a maioria da população, gerando enorme contradição política entre a teoria e a prática do jusnaturalismo.


Para que os franceses passassem a acreditar no seu ideal revolucionário, eles precisaram criar categorias sobre as quais pudessem defender e pautar seus argumentos. Para tanto, eles precisaram criar uma sociedade onde a liberdade fosse ensejada como ideal regulador entre as pessoas. Uma sociedade livre é aquela que pode propor diferenças hierárquicas sem um sentido de valor entre os hierarquizados. Porém, para que esta sociedade existisse, foi preciso criar uma nova categoria: a fraternidade. Só uma comunidade de irmãos poderia compreender que não há diferenças de valor em uma sociedade hierarquizada, porque direitos e deveres são partilhados entre os pares. A fratria, ou comunidade de irmãos, que tanto os franceses esperavam partilhar não seria possível sem um outro ideal regulador. Como ter liberdade numa comunidade de irmãos, se entre a nobreza e o clero havia a burguesia? Como ter liberdade entre os irmãos se haviam as mulheres, os pobres, os negros, o clero, a nobreza e o “resto da população” na sua condição de abjeto? Para tanto, foi preciso que um novo ideal regulador fosse criado para sustentar a liberdade e a fraternidade, e foi assim que eles criaram a igualdade!


Foi a igualdade que precisou amparar e sustentar a liberdade e a fraternidade entre os franceses. Mas sabemos bem que essa igualdade foi apenas para atender à demanda daqueles que já gozavam de privilégio na escala hierárquica da sociedade francesa. Porém, foi este mesmo ideal que se sustentou até hoje para ensejar a prática de defensores dos direitos do homem, lutando contra toda a sorte de intolerância: religiosa, sexual, social, cultural, etc., sem a qual não haveriam nem sujeitos de direitos nem muito menos sujeitos de deveres.


Não defendo um mundo de utopias possíveis. Pelo contrário: defendo um mundo onde nossas liberdades individuais e coletivas não sejam particularistas, nem de grupos excluídos nem da maioria que se autodenomina “incluídos”. Não prezo por uma igualdade absoluta e majoritária, sem reconhecer que em nossa sociedade, há inúmeras diferenças e que estas não podem ser nem menosprezadas e muito menos supervalorizadas – negar as diferenças e fazer tábula rasa ao pensar que somos todos iguais, não é defesa dos direitos humanos, é barbárie! Por fim, não proponho a fraternidade como uma das saídas possíveis para curar o câncer da intolerância social, gerador de todo mote de preconceito, que na sua face mais hedionda dizimou milhões de pessoas na Europa na primeira metade do século passado.


Eu defendo um mundo onde possamos alargar o mais que possível a referência do nós a um número cada vez maior de indivíduos, tal como propõe Rorty com o seu ideal de solidariedade. Não podemos perder esse ideal democrático e humanitário que levamos tanto tempo para conquistar, pois sem ele, rumaríamos para o caos absoluto cujas relações entre os humanos seriam eticamente improváveis.


Com o ideal do principio de igualdade em uma mão e o ideal de tolerância na outra, talvez seja possível minimizar as diferenças que nos cercam, mas sem recrudescer a pífia “moral do individualismo burguês” que dizia, até bem pouco tempo, que a liberdade é azul, igualdade é branca e a fraternidade... vermelha.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

OS LIMITES DA NOSSA FINITUDE



O avanço da tecnologia médica no prolongamento da vida introduziu, em nossa sociedade, novos questionamentos acerca do sentido e do conceito de “vida” e “morte” sem chegar a um consenso.

Nesse novo cenário, a vida biológica ganha uma nova dimensão e um novo sentido o qual não podemos prever até onde podemos chegar. Mas também é neste mesmo admirável mundo novo que alguns questionamentos passam a emergir, tal como foi visto em fevereiro de 2009, através da guerra travada entre o governo conservador do primeiro ministro da Itália Silvio Berlusconi de um lado (apoiado pelo Vaticano) e o judiciário italiano de outro (apoiado pelo presidente da república), na decisão da continuidade da vida de Eluana Englaro que permanecia em estado vegetativo há 17 anos.

Eluana Englaro sofreu um grave acidente em 1992 aos 20 anos de idade, permanecendo em coma irreversível desde aquela época. Porém, seus pais se recordam que após a visita a um amigo que estava em estado de coma, ela afirmara que se algo semelhante acontecesse com ela, não a deixassem vegetar em uma cama de hospital. Em julho de 2008, o tribunal da segunda instância de Milão autorizou que os aparelhos que a mantinham viva fossem desligados. Os juízes levaram em conta a vontade da paciente quando consciente, nove anos depois que seu pai, Beppino Englaro, ter entrado na justiça para por fim ao sofrimento da filha. Em entrevista aos jornais italianos, Beppino argumentou: “Peço que os senhores libertem a pessoa mais maravilhosa que até hoje conheci. Minha filha está morta há 16 anos”.

O caso, como se sabe, dividiu os italianos pondo a hierarquia católica em oposição à decisão judicial por meio do monsenhor Rino Fisichella, diretor da Academia Pontificial pela Vida. Fisichella afirmou que o estado de coma “é uma forma de vida” e como tal, desligar os aparelhos que mantinham Eluana viva seria uma forma de assassinato. A promotoria italiana, em novembro de 2008, apresentou recurso ao Tribunal Constitucional da Itália quanto à decisão do tribunal de Milão, mas a família de Eluana ganhou em última instância o direito de desligar os aparelhos que a alimentavam e a mantinham viva. É preciso lembrar que a Itália, a exemplo de outros países da Europa, não reconhece o direito à eutanásia, embora a jurisprudência conceda o direito aos pacientes de não serem alimentados por nenhum meio artificial.

O passo seguinte foi dado pelo primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, desafiando o judiciário ao tentar interromper a eutanásia de Eluana através de um decreto lei que proibia a interrupção da alimentação e hidratação da paciente, criando uma crise institucional. Berlusconi foi ainda mais longe, tentando aprovar o decreto lei sob forma de “Projeto de Lei”, e por fim, sugerindo uma mudança na própria constituição da Itália.

Eluana Englaro morreu três dias depois à retirada da sonda que a hidratava e a alimentava, em 09 de fevereiro de 2009, após permanecer 17 anos vivendo em estado vegetativo. Na atualidade, a despeito das dificuldades em se discutir um tema tão polêmico em meio a um forte sistema religioso tal como aquele encontrado no Vaticano, o sistema legislativo italiano passou a discutir sobre a questão da eutanásia fazendo com que o judiciário se pronunciasse quanto à sua legalização.

Um outro caso semelhante aconteceu com a americana Terry Schiavo em 2005 nos Estados Unidos.

Terry faleceu aos 41 anos no dia 31 de março de 2005 após passar quinze anos em estado vegetativo. Ela sofreu um dano irreversível no cérebro por falta de oxigenação, resultante de uma parada cárdio-respiratória após um pequeno acidente doméstico. A batalha jurídica que se seguiu por nove dos quinze anos em que ela permaneceu em coma profundo entre o seu marido (seu tutor e defensor de que ela preferia morrer a ser mantida viva sob essas condições) e seus pais (que defendiam o direito de Terry continuar sendo alimentada através da sonda gástrica), levou a corte norte-americana a se posicionar diante dos fatos, gerando uma discussão em torno do valor da vida e levantando questões bioéticas de difícil consenso (Schelp, 2005a, 2005b)3. O “Caso Terry”, como assim ficou conhecido através da mídia, foi amplamente divulgado em todo o mundo. Nos Estados Unidos o caso provocou aquilo que os juristas denominaram “A lei de Terry” (Terry´s Law), uma discussão que chegou às raias da Suprema Corte Norte-Americana e prescindiu da intervenção do presidente George W. Busch.

Esses casos são exemplares em como a questão da eutanásia está colocada hoje no que concerne ao direito à vida e à morte de pacientes que permanecem em estado vegetativo, em coma profundo ou irreversível, nos colocando quatro questões fundamentais para todos os profissionais que lidam direta ou indiretamente com a perda de um ser humano em estado terminal: a) o manejo dos cuidados paliativos (ortotanásia) ou “boa morte” dos pacientes em estado terminal; b) o apoio (psicológico) a estes pacientes e seus familiares; c) a institucionalização da doação de órgãos e d) uma política que legalize a eutanásia e a ortotanásia.

No que se refere aos cuidados paliativos ou “boa morte” por parte da equipe que trabalha diretamente com o paciente terminal, alguns dados merecem ser observados: primeiro, objetiva-se a diminuição do sofrimento ou dor do paciente; segundo, possibilitar que este possa estar cercado de amigos, parentes e pessoas com as quais tenham um sentimento afetivo e de amor. É necessário que o paciente seja auxiliado no momento do seu sofrimento e que, ao ter a compreensão da dinâmica da sua doença, possa estar compartilhando seus medos e suas angustias com pessoas amadas. Terceiro, o paciente deve ter autonomia sobre sua doença e permitir que ela siga o seu curso com o auxilio ou não de medidas médicas para aliviar o seu sofrimento. A beleza da morte é que ela nos desnuda completamente, afirma o geriatra Franklin Santana Santos em reportagem à revista Época no primeiro semestre de 2010.

Como a morte é ainda algo difícil de lidar, sobretudo para qualquer pessoa que faça parte de uma equipe multiprofissional e que trate diretamente com pacientes terminais no seu dia a dia, o apoio psicológico deve ser enfatizado tanto para o paciente como para seus ente queridos. A importância de se permitir morrer dignamente (se é que isto é possível), sem incorrer em processos prolongados, cuja dor piora o sofrimento dos pacientes, resgata a dignidade destes no final da vida.

A terceira questão refere-se à institucionalização da doação de órgãos. No Brasil, a definição de morte cerebral foi convocada a partir do primeiro transplante cardíaco entre humanos realizados em 26 de maio de 1968 pelo cirurgião Euryclides Jesus Zerbini. Muito tempo se esperou até que a nova prática médica fosse regulada pela Lei do Transplante de Órgãos – Lei N. 9.434 de 04 de fevereiro de 1997, espelhada, sobretudo, pelos debates nacionais e internacionais sobre morte cerebral e transplantes de órgãos nas últimas décadas. A lei dos transplantes de órgãos não é apenas uma conquista da ciência médica, mas de todo aquele que depende de um órgão para permanecer vivo.

Por fim, não é de se espantar que ainda se encontre no Senado Federal o Projeto de Lei Nº 125/96 que estabelece critérios para legalizar a prática da eutanásia. Apesar de sabermos que essa prática existe silenciosamente nas enfermarias e unidades de terapia intensiva de hospitais públicos ou privados no Brasil ou no exterior, torna-se necessário uma ampla discussão por parte da comunidade médico-científica, da população em geral e de profissionais que tratam diretamente com pacientes terminais, a exemplo do que já aconteceu em países da Europa, ou mesmo da América Latina.

A morte, para os que sofrem, não precisa ser um preço pago por uma vida desregrada, sem práticas ascéticas ou destituída de comiseração. A vida de cada ser humano é, em si mesma, insofismável e pode ser vida digna de ser vivida.

Talvez esses limites não estejam bem delimitados e precisam ficar mais claros, dado os avanços do campo médico científico e o silêncio em que se encontra o plano jurídico-político. Ou talvez, como diria Edgar Allan Poe no seu conto “O enterro prematuro”, “os limites que separam a Vida da Morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde um acaba e a outra começa?”.

Quem poderá um dia prever os limites da nossa finitude?


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

NEUROTEOLOGIA OU A MENTE MISTICA?



A mente humana. Um terreno ainda pouco conhecido e ainda há muito que ser descoberto em sua complexidade, desde que a filosofia grega antiga até a mais moderna tecnologia de imageamento cerebral se propôs a desvendar esse mistério. Não é simplesmente um desejo de uma raça (humana, é preciso que se diga), mas assim como a origem do universo para alguns astrônomos ainda é uma incógnita e tem levantado novas teorias acerca de quando e como o mundo se originou, o funcionamento da mente e sua relação com as funções cerebrais tem inquietado ainda mais vários neurocientistas na contemporaneidade.

Se a origem do universo está relacionada direta ou indiretamente com uma causa divina, a briga entre astrônomos e religiosos parece não ter fim, ou talvez nossa capacidade de analisar e explicar a “poeira cósmica” tenha se aproximado cada vez mais dos relatos bíblicos, dando-nos a certeza da existência de Deus ou de alguma entidade divina que tenha causado o “big bang”, tal como a tese defendida pela maioria dos astrônomos.

Ora, se nossa mente é capaz de produzir uma capacidade ilimitável de explicações causais para um mesmo fenômeno, por que não tentar explicar “científica” e “empiricamente” a existência de Deus em nossa mente ou mais precisamente, em nosso cérebro? É a isso que vários neurocientistas dos mais variados credos religiosos vem tentando explorar.

Deem o nome que quiserem àquilo que os gregos chamavam de “a sede da alma” ou simplesmente ao que os teólogos denominam de “alma”. A alma humana (preocupação de cientistas sociais) também constitui, juntamente com o cérebro, na preocupação de vários neurocientistas que buscam solucionar um dos últimos enigmas da contemporaneidade: como se dá o funcionamento do cérebro para todas as experiências que nos cercam?

Em um livro intitulado “Anima”, do jornalista John Darnton, a preocupação em revelar a existência de Deus e da alma humana através da tecnologia de imageamento cerebral é colocado em questão através da história de dois notórios cientistas da neurologia. Na ficção, um deles – Dr. Cleaver - busca capturar a alma humana de um de seus pacientes e aprisioná-la em um programa de computador. Seu objetivo é provar que se a alma existe, após a morte, ela deve seguir para algum lugar e, se a alma puder ser monitorada e observada, talvez seja possível capturá-la no momento exato em que ela abandona o corpo.

“Anima” é a quintessência da consciência, é o nosso pensamento, é o pedaço que nos torna conscientes de nós mesmos e nos separa do resto do mundo e dos outros animais inferiores. Mas “anima” também é uma palavra que vem do latim: ela é o feminino de “ânimus”, ou seja, mente ou espírito. Mas, tal como formula o Dr. Cleaver, se a ânima existe na vida, então deve ser liberada na morte. E se é liberada na morte - e, como quer o folclore, viaja pelo espaço para fazer contato com um ser amado no exato momento do último suspiro [ou talvez encontrar-se com Deus – acréscimo meu] – então por que não registrá-la por meio de imagens neurológicas? E registrar não somente na pessoa que morre – seriam de esperar deslocamentos na atividade cerebral dela – mas na pessoa viva, o receptor. Por que não ver se a pessoa viva registra uma atividade cerebral extraordinária no momento exato em que o agonizante entre a alma a Deus?

Será possível provar que a consciência viveria fora do corpo e que os pensamentos, temores, sonhos, pesadelos e emoções teriam existência independente do nosso corpo? Será possível vislumbrar um dia que poderemos assistir o advento da fusão do homem com a máquina, criando um novo homem através de uma “mente desencarnada”, fora da sua morada? Ou então, será possível verificar o momento exato da centelha divina que nos dá vida do mesmo modo em que poderia ser possível capturar a alma humana a partir da criação engenhosa do homem através de máquinas?

Se o objetivo do Dr. Cleaver, na ficção, é atingido ou não, não importa. O que importa é que assim como a ficção produziu inúmeros filmes e livros acerca do alcance do espaço pelo próprio homem, a relação mente x corpo x cérebro x Deus também já passou a produzir novas histórias de igual magnitude e assim como vimos estarrecidos alguns dos sonhos espaciais transformarem-se em realidade, é bem possível que estejamos neste exato momento sendo expectadores e testemunhas de uma nova aurora da ciência médica e neurológica: a neuroteologia.

A neuroteologia é também conhecida por “bioteologia”, “neurociência” ou “ciência espiritual”. Seu objetivo é testar as correlações dos fenômenos neuronais das experiências subjetivas e da espiritualidade, explicando esses fenômenos. Os defensores da neuroteologia advogam por uma base neurológica e evolutiva para aquelas experiências tradicionalmente categorizadas como experiências religiosas, ou seja, são aquelas experiências de transcendência do eu, de meditação profunda, do sentimento da presença de espíritos de tradição religiosa ou até mesmo o sentimento da presença de Deus. O uso do termo em artigos científicos é ainda incomum, apesar do aumento de publicações e de estudos sobre os fenômenos religiosos e de experiências místicas.

As experiências místicas estão presentes em nossas vidas desde os tempos mais remotos. A presença de Deus é sentida das mais diversas formas e dos mais variados relatos por pessoas em todo o mundo de diferentes religiões, tenha ele o nome que lhe for dado.

Assim, para usar a expressão de John Horgan, poderia a “neuroteologia nos salvar” diante de nossa fragilidade diante de um mundo convulsionado por guerras religiosas, por fenômenos paranormais, místicos ou entidades superiores trazendo a imagem de Deus bem mais próxima do que a realidade científica tem tentado provar? É possível “fotografar Deus” no cérebro? As patologias cerebrais tais como epilepsia ou as convulsões do lobo temporal esquerdo que tanto afetam a experiência da vida e da realidade de um indivíduo, fazendo com que este perceba o fenômeno como uma experiência mística de contato com santos ou deuses pode dizer mais do que a própria existência de Deus nos mais variados sistemas de crenças religiosas que conhecemos? Se Deus existe, seriam estas pessoas selecionadas para experimentar a sua presença do que o resto das pessoas ditas normais, tal como aconteceu com Santa Tereza D’Ávila, Joana D’Arc, São Paulo ou Van Gogh? E se assim o fosse, o fato de não ter esse tipo de distúrbio cerebral nos afasta ou nos aproxima ainda mais de Deus?

O futuro das pesquisas em neurociências poderá nos dar as respostas que tanto estamos procurando nesse admirável cérebro novo.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A METADE QUE NOS FALTA




Parafraseando Oscar Wilde, eu diria: amar o outro é o começo de um idílio que dura a vida inteira. Na atualidade, o amor passou a ser usado como objeto de fetiche, valorizado, idolatrado, desejado e requerido pela maioria de nós. É como se disséssemos em uníssono que “sem amor, estamos amputado da nossa melhor parte”, conforme a crítica formulada pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro “Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico”.

Segundo Jurandir Freire, o amor foi mais uma invenção da modernidade como tantas outras que hoje conhecemos, e apesar do prestígio que o amor tem em nossa sociedade, ele deixou de ser um puro momento de encanto para se tornar uma corvéia, pois 'quando é bom, não dura, e quando dura, já não encanta mais'.

Se pensarmos direito, ele tem razão: das revistas para adultos e adolescentes ao cinema e televisão, somos constantemente bombardeados com a necessidade insofismável de encontrarmos a nossa cara metade.

Hoje, você não é ninguém e nem pode candidatar-se ao papel 'fundacional' em ser, se não tiver quem lhe complete, um companheiro ou uma companheira, e tudo isso é dito de forma voraz através de um imperativo categórico que tem levado as pessoas a certos níveis de depressão, ou porque não conseguem alcançar o desejo da maioria, daí achando-se 'incompetentes' para amar, ou por não suportar a dor de ter perdido alguém que amou.

Ora, na contemporaneidade, as pessoas não querem tanto compromisso afetivo como outrora. Não conseguimos olhar para alguém e ver nela um projeto de vida duradouro, uma história pautada na parceria amorosa, afetiva e no companheirismo, porque todos querem amar, mas temem investir neste projeto.

Aliás, nem mais sabemos se com a perda dos grandes ideais e das grandes utopias, nos tornamos essencialmente narcísicos ou individualistas, já que o 'ficar' virou moda e substituiu o namoro cujo ethos amoroso era baseado em eros, na acepção grega do termo.

Na Grécia antiga, o amor era algo necessário à construção da cidadania, estava a serviço da 'pólis' (cidade grega) e destinado exclusivamente aos homens. O amor fazia parte da pederastia grega, que em nada se assemelha ao que hoje concebemos como 'homossexualidade'. Homossexualidade é a relação amorosa ou afetiva e sexual entre duas pessoas adultas do mesmo sexo que consentem partilhar essa experiência mútua de vida.

O amor entre os homens na Grécia antiga era acima de tudo uma medida pedagógica e visava alcançar o mundo de eros (o reino dos amores), seja através da contemplação do belo, seja através dos prazeres.

Existiam, portanto, dois reinos: o reino dos prazeres, denominado de 'afrodisias', e o reino dos amores, denominado de eros. Nos 'afrodisias', os prazeres sensuais ou físicos estavam na contemplação de prazeres da vida diária, tais como beber, comer, fazer ginástica, cantar a natureza etc.

No reino dos amores, eros era encontrado não só entre homens, mas entre deuses e deuses, deuses e homens, deuses e animais, animais e seres humanos, elementos da natureza e humanos, fabricando condutas diversas e diferentes das que temos hoje. Nesse sentido, o amor entre os homens era uma forma de culto ao próprio eros, como uma entre tantas das obrigações inerentes ao cidadão grego.

Contrariamente ao homoerotismo masculino, cuja relação sexual pode estar pautada em uma atividade e passividade, na Grécia antiga, o homem grego adulto estava impedido pelas leis da pólis de submeter-se a qualquer papel passivo na relação sexual. A prática de “cunilingus” (sexo oral) para com uma mulher era, igualmente, condenável e reprovável na cultura grega.

Não obstante, foram os próprios gregos que inventaram a metáfora da complementaridade, através do famoso mito de Aristófanes, no célebre livro 'O Banquete', de Platão.

Segundo Aristófanes, a origem do amor remonta o mito dos seres andrógenos e completos. Na antiguidade, os seres humanos eram essencialmente duplos e esféricos, constituídos de duas metades: o primeiro era constituído de duas metades homem, o segundo de duas metades mulher e o terceiro era constituído de metade homem e metade mulher. Certo dia, esses seres resolveram desafiar os deuses, e tiveram como castigo, a divisão de cada uma de suas partes, sendo condenados a vagarem errantes pelo mundo. O amor seria a tentativa de cada uma dessas metades retomarem a unidade perdida. Por isso, na cultura popular, dizemos que o amor não tem sexo, pois cada um de nós teve a sua cara metade um dia perdida em algum lugar, segundo o mito grego (o que explicaria, grosso modo, a existência de seres heterossexuais, homossexuais e bissexuais como constitutivas de nossas subjetividades).

Mas essa concepção mudou ao longo da história.

Na época do cristianismo, o amor passa a ser uma aberração e um desvio após os ensinamentos e doutrinas de Santo Agostinho. Ele dizia que o amor deveria ser destinado única e exclusivamente a Deus. O amor, e conseqüentemente o sexo, era uma forma de corromper o pacto feito entre Deus e o homem. A idéia de pecado vem desta época e perdura até os nossos dias. O pecador, por conseguinte, é o primeiro personagem sexual da história da humanidade.

Mas é no final do século XVIII com a idéia de sentimentalismo e romantismo que filósofos e escritores da época passarão a valorizar o amor romântico e o amor paixão, bem mais próximos daquilo que concebemos hoje. Jean Jacques Rousseau foi um dos mais representativos autores dessa época, na filosofia, e
Shakespeare, na literatura, e nos fizeram acreditar que o amor fazia parte da nossa interioridade. Porém, isso trouxe conseqüências negativas: foi nesta mesma época que a idéia de amor ficou atrelado à idéia de família e procriação, logo, só possível entre um homem e uma mulher, fazendo da família nuclear conjugal e burguesa a norma, e todo e qualquer outro tipo de união, o desvio.

É por esta razão, acredito eu, que a nossa sociedade é incapaz de associar o amor, a cumplicidade, a amizade e o companheirismo às relações homoeróticas. Vêem a relação entre dois homens ou duas mulheres como patologia, degenerescência, vulgaridade, anomalia, anormalidade, falta de vergonha, imoralidade, patologia passível de cura, repreensão ou repressão. Daí associar a falta de comprometimento afetivo e promiscuidade como constitutiva e inerentes a todos os homossexuais e lésbicas. Isto é uma inverdade. A falta de comprometimento afetivo e amoroso não tem sexo e é perfeitamente encontrada nas relações interpessoais de homens e mulheres heterossexuais.

Quem pode pensar no amor de outrora em um mundo onde se valoriza cada vez mais o corpo e a imagem como objetos de desejo? Como podemos planejar o futuro com alguém se não acreditamos que este alguém  tenha condições de investir suficientemente em um projeto de vida semelhante ao meu? E o que é pior: esquecemos que o outro, aquele que desejamos, está pensando a mesma coisa de nós! Ora, se não existe uma perspectiva mínima de se construir uma relação baseada em sentimentos, porque logo “eu” vou insistir nisso? Quero mais é curtir a vida! Deixe para os caretas, aos otários, acreditar que um dia, vão encontrar esse tal de amor. Enquanto isso, eu me divirto, “fico”, “beijo”, “transo”, “acabo a noite em uma cama qualquer”, mas levo comigo a minha noite de “prazeres indescritíveis”, e no dia seguinte, “nem sei mais quantas bocas eu beijei ou qual o nome daquele(a) que acordou ao meu lado”. Passado a euforia, vem a depressão, a angústia, trazendo-nos de volta à realidade: “Estou só. Não tenho amor nem ninguém para amar. Só existe esse espaço vazio ao meu lado, levemente aquecido pelo calor de um corpo de quem há minutos lá esteve”.

Por um momento, a depressão, assim como a angústia e a euforia desaparecem, dando lugar a uma sensação de “abstinência de prazer”, semelhante ao que sente um viciado em drogas.

Resultado: 'Que venha o próximo fim de semana!'. Olha só a novidade: viciamo-nos em 'sexo casual' e nos tornamos escravos da cultura das sensações! Isso é que é modernidade! Voltemos a falar de amor.

Todos concordam que ainda valorizamos o amor como objeto de desejo, mas esquecemos dele em algum baú guardado em nossos armários. As pessoas querem amar, mas não estão aptas para amar. Querem ser desejadas, mas investem muito pouco no seu desejo. Querem uma relação estável, mas não acreditam que isso seja possível. Querem uma vida em comum, mas são narcísicas o suficiente para não construírem uma vida ao lado de uma outra pessoa.

Querem um 'príncipe' e uma 'princesa' como objeto de veneração, mas esquecem de usar o próprio espelho como medida do seu desejo. Valorizam um gesto de afeto, carinho, amor e paixão, mas são incapazes de fazer isso com a verdade merecida, e sucumbem ao próximo corpo mais perfeito e mais bonito que encontram pela frente, seja o músculo mais bem trabalhado, ou a bunda e os seios mais inflados.

Sonham com jantares à luz de velas, mas buscam quem sentar à mesa em ambientes duvidosos, tais como darkrooms de boates ou salas de chat.

Planejam um dia dividir suas vidas e um espaço a dois, mas o máximo que conseguem é dividir o metro quadrado de uma pista de dança ou da cama de um motel. Desejam o corpo do outro, mas apenas como objeto de predação e gozo, já que nos transformamos em “objetos” no extenso mercado de corpos construídos em academias de ginásticas ou mesas cirúrgicas, a base de muito suor e esforço físico ou através de anabolizantes, lipoaspiração ou silicone.

Querem reconhecimento entre seus pares, mas não reconhecem a si mesmos, uma vez que se vêem como projetos falidos, fadados ao fracasso, sucumbindo a fruição do corpo usado como medida da felicidade possível, cujo gozo orgástico é o fim dessa trágica trajetória de vida.

Descobrimos também, por ensaio e erro, que se amar é sofrer, quem deseja amar, deve estar preparado para o sofrimento das dores de amor, ou então, deve de imediato abandonar esse projeto, através de um dos modelos de vida descritos acima.

Enfim, amar não é fácil! Demanda tempo, paciência, sentimento, fantasia, ciúme, rejeição, doação de si, compreensão do outro, cumplicidade, esperança, mágoa, conquista, dor, sujeição, etc., mas também uma boa dose de prazer e felicidade. Freud já dizia que somos incapazes de amar o outro na sua incondicionalidade, porque somos eminentemente narcísicos e só nos constituímos na presença do outro, ou seja, só existe um “eu” porque existe “um outro”, ou “um nós”, como queiram.

Assim, não amamos o outro de fato. Amamos o que de nós mesmos conseguimos enxergar nesse outro. Ele é a medida exata do “nosso eu”. Sem ele, não somos nada nem ninguém. Uma das funções do amor, é preencher um vazio naquele que ama.

Por isso, quando amamos, estamos transbordados de plenitude e, proporcionalmente, quando perdemos o objeto amado, somos tomados por um sentimento de perda irreparável, de um completo vazio. Essa é, ao menos, a idéia do amor que persiste em nosso imaginário na atualidade, e desse modo, é pela via do narcisismo também que o ser apaixonado esquece quem está a sua volta, pois como dizia a filósofa Hannah Arendt, “quem ama, abandona o mundo!”. Mas é bom lembrar que temos também a liberdade de escolher com quem vamos nos identificar, com quem vamos estar acompanhados.

Nós temos a liberdade de escolher quem será a medida do “nosso eu”.

Definindo o outro como a medida do nosso eu, afirma Jurandir Freire, o novo ethos amoroso propôs aos indivíduos uma dura tarefa: 'a de introduzir o sofrimento na economia do desejo. Acontece que o outro a quem amamos pode dizer não ao que pedimos. Eis a antinomia da felicidade individual contida no amor romântico: se o outro não pode fazer-me sofrer com sua ausência ou sua recusa, não sei o que é amar, e se sei o que é amor, estou exposto ao sofrimento do 'não'. A este impasse a felicidade de mercado respondeu dizendo: 'ame os objetos, eles jamais dizem 'não' ! São dóceis e programados para realizar o que julgamos saber sobre a satisfação de nossos desejos'.

O corpo está entre esses objetos fabricados pela sociedade de consumo. Hoje, produzimos corpos como produzimos alimentos enlatados, peças de automóveis, roupas ou eletrodomésticos, ou seja, em série.

Transformamo-nos não só em objetos, mas em 'coisas', na acepção marxista e freudiana do termo, conforme descreve Jurandir Freire. Para Marx, coisa é uma mercadoria com valor de troca. Para Freud, coisa é o objeto de nossa fantasia com vistas à satisfação dos nossos desejos. Neste caso, sou veemente crítico a qualquer cultura que transforme o corpo como objeto de predação, desejo, posse e gozo do outro, mercantilizando a sua economia libidinal à idéia narcísica de corpolatria, até mesmo porque, nem toda a dieta do mundo, nem todos os aparelhos de musculação ou ginástica existentes, ou ainda nem todas as cirurgias plásticas disponíveis podem transformar o corpo do “homem ou mulher comuns' em objetos de consumo tais como vemos nos desfiles de moda, nos out-doors nas ruas e praças ou nas capas de revistas ilustradas pelas notórias beldades e celebridades nacionais e internacionais.

Não sou um completo descrente no amor romântico ou no amor paixão. Gostaria de poder encontrar mais pessoas, tanto na vida diária quando na clínica, que pudessem padecer e suportar as dores de amor ao invés de ser incapaz de projetar para si uma relação pautada em eros. Gostaria de encontrar mais pessoas que pudessem chorar um amor perdido do que a falta que ele lhe faz.

Alguém que não usasse a palavra eros como um sinônimo elegante para a palavra sexo. Alguém cujo amor durasse o tempo necessário para que ele pudesse nascer, crescer e morrer, como todas as coisas vivas no mundo, aliás. Alguém em que o tempo do amor não durasse apenas o tempo de um beijo, de uma transa ou de um orgasmo, visto que amar alguém demanda discurso dos bons, e não meras palavras soltas de um discurso vazio e sem sentido.

Gostaria, finalmente, de pensar também o amor, bem mais próximo da definição dada pelo poeta barroco Gregório de Matos que diz: 'O amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias, uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um reboliço de ancas e quem diz outra coisa é besta'.

Mas nunca esqueça que o outro ainda é a medida do nosso desejo.

Portanto, cuidado com o que você deseja. Aliás, diante de tudo o que acabamos de falar, cabe aqui perguntar: você realmente quer aquilo que você deseja?


Publicado em Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro - RJ, Ano 27, N. 343, p. 34-37, 2005.

DESENCANTO POLÍTICO E SECA




Não é de hoje que o fenômeno da SECA no Nordeste é notícia na mídia nacional, anunciando o drama de um povo que sofre com os problemas climáticos da região e a falta de compromisso do governo público.

Também não é de hoje que geólogos afirmam haver lençóis d'água sob o solo nordestino e que, se bem aproveitado, poderia resolver grande parte do estado de miséria deste povo, beneficiando a agricultura e aliviando a fome de todos.

Por que não há, pergunto, uma política pública dos governantes, mais enfática na administração dos recursos destinados à irrigação do solo nordestino, possibilitando acabar com essa triste condição humana? A quem interessa manter o fenômeno da estiagem, que não obstante ao El Niño, e mais recentemente La Niña, há décadas se tornou comum a associação da seca à miséria e à fome? E por último, por que é preferível manter a crença de um povo que vê apenas em "Deus" a única força capaz de tirá-los dessa triste situação?

Vejamos. Primeiro, não acredito que os governantes deste país não disponham de recursos para uma política de irrigação apropriada para o solo do Nordeste. Também não creio que haja "vista grossa" nas pesquisas que apontam soluções e/ou mecanismos que minimizem o problema da estiagem do fértil, porém, duro e seco solo nordestino, mesmo em período de recessão econômica.

Segundo, é notório que a manifestação dos políticos que fazem as leis em nosso país só volta sua atenção para os "miseráveis" da seca em época de campanhas eleitorais, num jogo sujo de troca de favores onde o voto, último mecanismo que dispomos para exercer nossa cidadania em um país que se diz democrático, é usado como recurso para galgar lugares no disputadíssimo espaço público municipal, estadual e federal.

Vence aquele que mais dinheiro tiver para a compra diversificada de voto.

O resultado está aí, mostrado mais uma vez pelo Jornal Nacional da Rede Globo, na última semana de fevereiro de 2001. Pouco se fez, pouca coisa mudou após um ano de mobilização no país arrecadando comida para o

povo nordestino: as pessoas continuam esqueléticas, os recém nascidos ainda continuam tomando "água com açúcar" ao invés de leite, a água e consequentemente a agricultura ainda tornam-se um sonho a ser conquistado alhures. Lá o que se planta não é mais semente de milho, feijão, trigo ou soja, e sim, corpos.

Corpos de crianças mortas que não conseguiram sobreviver à fome.

Por fim, é mais fácil manter a crença dos nordestinos em um "Deus todo poderoso", porém carrasco, vil, que condena mais de 15 milhões de brasileiros (segundo estimativas oficiais) a viverem em condições subhumanas, sob um sol escaldante e morrendo de fome. Ou é regra nutricional dar "água com açúcar" a um recém nascido que tem carência nutritiva, conforme mostrou a reportagem?

Ou então, será que é bem mais fácil sucumbir ao cúmulo do egoísmo e do self-interest, pagando caro por "fast foods" em lanchonetes MacDonalds ou ainda, deixar a geração shoping center de "mauricinhos" e "patricinhas" em seus discursos e gastos supérfluos a solta, sem no entanto, ensinar-lhes o que significa solidariedade humana, e fazer-lhes reconhecer como um de "nós" um número cada vez maior de indivíduos?

Indo direto ao assunto: enquanto herdeiros da classe média burguesa, qual o verdadeiro sentido de sujeito, solidariedade e ser-humano temos ensinado aos nossos filhos?

Para onde vamos caminhar em um país onde o culto ao narcisismo faz do individualismo apanágio das relações humanas? Onde solidariedade e amor ao próximo são ideários utópicos a serem alcançados?

Diferentemente dos nossos irmãos em humanidade na África do Sul, a fome aqui tem outros precedentes.

Lá, a fome tem como sinônimo a pobreza e a falta de recursos do governo. Aqui, a fome tem como sinônimo o cinismo e a falta de consciência e compromisso com a cidadania de alguns políticos, que tem transformado homens e mulheres em saqueadores, ou melhor, em animais irracionais, desesperados com o seu estado de comiseração humana, em busca de uma forma de sobrevivência.

Acostumamo-nos a ver os "mortos-vivos" da África do Sul como seres de um terrível filme de horror, mas não nos compadecemos deles pois não conseguimos nos ver em seus corpos cadavéricos. Aqui, o dever do reconhecimento ao outro como um de nós é no mínimo um dever ético e moral, para não dizer solidário.

Para não fazermos de conta que o "espetáculo" que assistimos nos telejornais, sejam efeitos ilusionista de produções hollywoodianas.

Sofremos uma espécie de desencanto político, moral, ético e ideológico dos dirigentes de nossos país. Porém, insistimos em não considerarmos os nossos irmãos nordestinos e miseráveis da seca como um de nós, deixando para os outros resolverem o problema da fome.

Só que estes "outros" somos nós, e enquanto existir um desinteresse político e econômico de muitos, as frentes de emergência ou cestas básicas de alimentos são meios encontrados para aliviar a dor da fome do povo do nordeste. Mas o nordestino não quer esmola. Ele quer trabalho. Ele quer justiça social. Ele quer um solo irrigado que possibilite retirar dele o alimento da sua sobrevivência. Ele não quer frentes de emergências, ele quer uma política sólida que transforme o duro e seco solo nordestino em um produtivo campo agrícola. Mas enquanto existir interesses escusos, a indústria da seca vai sempre ser usada para solavancar políticos a cargos públicos e aumentar o patrimônio de empresários corruptos.

Um dia, quem sabe, será possível que nossos filhos e netos possam encontrar um paraíso perdido no Nordeste. Onde crianças, jovens e adultos esqueléticos, desdentados e subnutridos, tenham sido personagens de uma triste história real de horror, e que, na esperança de um futuro promissor, governantes e empresários de todo o país, tenham aprendido o que é comprometimento com o povo, cidadania e solidariedade humana... aquela mesma que o Betinho tão bem tentou nos ensinar.


Publicado em Catharsis - Revista de Saúde Mental, São Paulo - SP, N. 38, p. 30 - 31, julho de 2001.

OS X-MEN E O APELO À TOLERÂNCIA



O mundo do cinema tem uma grande proximidade com o mundo dos sonhos. Tanto em um quanto em outro, somos capazes das maiores proezas. Seres fantásticos e histórias inverossímeis povoam o imaginário de milhões de pessoas no mundo.

Não é por menos que os super-heróis fascinam tanto a nossa imaginação: homens e mulheres invencíveis, com poderes sobre-humanos e habilidades que vão além da nossa própria natureza. São seres quase perfeitos, destemidos, corajosos, acima de qualquer falha.

Talvez seja por isso, que os personagens da Marvel Comics despertem tanto interesse entre os seus jovens leitores, a exemplo do grupo de mutantes conhecidos como X-Men, que foram transportados do mundo dos quadrinhos para as grandes telas, há pouco tempo.

Ao contrário do que se poderiam imaginar, os super-heróis mutantes são atormentados com o seu próprio dom e o seu próprio destino, vivendo em um futuro próximo numa sociedade que não está preparada (ainda???) para aceitar as nossas visíveis diferenças. Os X-Men sofreram uma mutação genética, um "salto na evolução humana", e é daí que vêm seus poderes, levando-os a uma segregação entre os mesmos seres humanos que tentam proteger. Nos três filmes até agora lançados, isso fica muito evidente, além, é claro, da eterna luta do bem contra o mal.

De um lado, temos o Professor Charles Xavier, um mutante com poderes telecinéticos responsável por uma escola que ensina aos mutantes mais jovens controlarem e compreenderem melhor os seus poderes. Do outro, temos Eric Lensherr, também conhecido como Magneto, que como o próprio nome já diz, tem a capacidade de controlar todo o magnetismo na face da terra e cujo passado judeu vivido nos campos de concentração na era do nazismo, despertou-lhe o ódio irracional contra os seres humanos a um ponto de querer extingui-los da face da terra. Magneto lidera um grupo de mutantes que compartilha do seu ideal contra a humanidade e contra o Professor Xavier, líder dos mutantes na escola que dirige.

Ora, se Magneto acha que os seres humanos foram capazes de fazer o que fizeram contra os seus semelhantes durante a Segunda Guerra, porque eles deveriam gozar de mais respeito e privilégios do que aquilo que ele denomina de "raça superior"? "Somos o futuro, Charles", diz Magneto no primeiro filme, ao sair de uma reunião onde se debatiam as liberdades individuais dos mutantes, para excluí-los do resto da sociedade. E isto não é mera coincidência: quem já sofreu o preconceito na própria pele sabe do que eu estou falando, ou quem já leu ou ouviu falar do horror do nazismo, pode imaginar muito bem o que é ser discriminado por alguma particularidade mínima sequer. O horror do holocausto é exemplo mais do que suficiente para nos lembrar das atrocidades que um grupo de seres humanos pôde fazer a outros. Em nome da intolerância, do preconceito, da discriminação e do ódio "ao diferente", mata-se!!!

Para muitos, é insuportável a convivência com o minimamente diferente. Para outros, isso é perfeitamente possível. A este segundo tipo de sujeito nós denominamos de tolerante e solidário diante das diferenças do seu irmão em humanidade, porque ele o compreende como fazendo parte da mesma comunidade ou grupo que participa. Quem melhor exemplifica isso é Freud (1856-1939) ao retomar a metáfora dos porcos espinhos de Schopenhauer (1788-1860): dois porcos espinhos em meio à chuva começaram a sentir frio e tiveram a idéia de um se esquentar com o calor do corpo do outro. Ao se aproximarem, os espinhos dos seus corpos espetaram um ao outro, e eles se afastaram, voltando a sentir frio. Mais uma vez, eles revolveram se aproximar e mais uma vez foram espetados pelos espinhos um do outro, até que encontraram uma distância intermediária para se aquecerem, sem se machucarem. Quando compreendemos essa distância intermediária de convivência que nem nos machuca e nem fere as liberdades e o espaço do outro, estamos praticando a tolerância.

O conceito de tolerância está historicamente relacionado às crenças religiosas e questões políticas tratadas por Voltaire (1694-1778). A tolerância se opõe a intolerância e vice-versa. Ela se justifica no plano moral pelo respeito à pessoa do outro, não apenas de forma política, socialmente desejável e válida nos regimes democráticos, mas igualmente devida ao respeito ético inerente ao reconhecimento do Outro. Por outro lado, o sentimento de intolerância na contemporaneidade, criado na Europa em plena era do nazismo, não foi totalmente derrubado, como podem pensar alguns. Pelo contrário, ele se desenvolveu, se modernizou e se atualizou, multiplicando-se numa velocidade tal que sequer temos condições de controlá-lo: assassinatos de índios em pontos de ônibus, massacres em presídios públicos, guerras em países de cultura mulçumana, escravização de crianças no campo, prostituição, tráfico e turismo sexual com menores de idade, assassinatos em massa nos grandes centros urbanos, extermínio de homossexuais por grupos neonazistas, violência física e psicológica contra mulheres, humilhação pública de idosos e portadores de necessidades especiais, mutilação de órgãos genitais em mulheres africanas, guerras entre facções do narcotráfico das drogas nas favelas do Brasil, e assim por diante.

Tudo parece perfeitamente justificável em nome da "pretensa normalidade ou superioridade" daqueles que se consideram estar acima desses atores sociais, ou mesmo das diferenças culturais. O que se revela aqui, de maneira brutal e insofismável é a impossibilidade do reconhecimento e do convívio com a alteridade que se funde num horror da experiência da diferença, pois é insuportável o reconhecimento da diferença e da alteridade pelo sujeito da atualidade, em parcelas significativas do mundo, sem que aquelas sejam imediatamente transformadas em signos hierárquicos infalíveis de superioridade e de inferioridade de ser melhor e de ser pior do que os outros. Ou seja, é a ação da pulsão de morte, já anunciada por Freud no seu texto "Além do Princípio do Prazer", que faz suas vítimas e tem explicado não só a ação do nazismo como também todos os atos cuja vítima é o ser humano.

Tolerar, portanto, é respeitar nosso semelhante naquilo que ele tem mais de singular e específico. É compreender a sua individualidade e sua alteridade reconhecendo o outro como a referência do "nós".

Richard Rorty (1931-2007), filósofo norte-americano falecido em 2007, nunca se debruçou exaustivamente sobre o assunto nesses termos, mas expôs suas idéias de forma clara naquilo que compreendo ser o sentimento de tolerância para com o nosso semelhante como o correlato do que ele define e defende como sendo o sentimento de solidariedade. Rorty diz que o sentimento de solidariedade depende necessariamente das semelhanças e dessemelhanças que surgem em função do vocabulário de um determinado grupo, ou seja, o desejo de solidariedade não está calcado apenas na concepção banal do amor ao próximo, tal como proposto pelos ideais cristãos ou nos ideais humanistas na era do Iluminismo, mas sim, no reconhecimento de determinados grupos como fazendo parte de uma grande comunidade liberal, atados através dos atos ou jogos de linguagem. Para este filósofo, quanto mais o sentimento de solidariedade humana, maior a capacidade de compreender e estender a referência do "nós" a um número cada vez maior de pessoas. Quanto mais nos colocamos no lugar do outro, quanto mais tendemos a enxergar nós mesmo no outro, maior será a nossa tendência de incluí-lo no grupo do qual fazemos parte.

Nesse sentido, Rorty opõe crueldade à solidariedade. Ele diz que cruel é todo aquele que não sabe ou não pode identificar-se com a dor e a humilhação dos outros, e solidário é aquele que aprendeu a se colocar na posição de quem sofre, de modo a descrever crueldade como aquilo que de pior podemos fazer ao nosso semelhante. Quanto mais nos colocamos no lugar do outro, quanto mais tendemos a enxergar nós mesmo no outro, maior será a nossa tendência de incluí-lo no grupo do qual fazemos parte.

Nesse sentido, Rorty opõe crueldade à solidariedade. Ele diz que cruel é todo aquele que não sabe ou não pode identificar-se com a dor e a humilhação dos outros, e solidário é aquele que aprendeu a se colocar na posição de quem sofre, de modo a descrever crueldade como aquilo que de pior podemos fazer ao nosso semelhante.

Seu objetivo, enquanto herdeiro do pragmatismo, é alcançar uma sociedade liberal, através da construção de novos laços discursivos, fazendo da igualdade ou da solidariedade, um desejo para muitos de nós, reconhecendo um pouco (senão muito) de nós mesmos nesse outro que nos é estranho, diminuindo o preconceito, a discriminação, o desrespeito e a intolerância. O que Rorty propõe, portanto, é a construção de uma cultura da ética e da solidariedade, baseado fundamentalmente na igualdade.

Ora, quando desqualificamos ética e moralmente esse grande Outro que nos é estranho, estamos fomentando a "ética do alheamento do outro", que consiste em uma atitude de distanciamento, hostilidade e perseguição ao sujeito, onde só o ideal de igualdade poderia diminuir esses sentimentos hostis.

Para o sociólogo Zigmunt Bauman, o ideal de igualdade é um ideal perfeitamente possível quando associado ao ideal de humanidade e solidariedade humana. Para ele, é pelo direito do outro que meu direito se impõe, diminuindo os espaços vazios que separam as dicotomias igualdade/diferença, tolerância/intolerância, ou seja, o repúdio à barbárie e a toda sorte de regimes totalitários.

Vale lembrar que "no projeto democrático, o ideal de igualdade é a condição de possibilidade de que as diferenças possam emergir, livres de coerção de um modelo normativo totalizante", ou seja, "é por defender uma sociedade mais justa para todos que singularidades e aspirações particulares se candidatem ao reconhecimento e à legitimidade".

A igualdade funciona, pois, não só como ideal regulador dessas dicotomias, como também um horizonte político que estimula e legitima a redução progressiva das desigualdades injustas e da tolerância. Agora, tirem os X-Men do fronte de batalha, e ponham todo o rol de excluídos e de minorias sociais que fazem parte no nosso país (negros, mulheres, índios, homossexuais, nordestinos, pobres, psicóticos, portadores de necessidades especiais, idosos, crianças, etc.), e talvez essas palavras façam mais sentido.

Os movimentos que lutam pelos direitos específicos de grupos estão nada mais do que contribuindo para a construção de uma igualdade universal da democracia moderna, visto que "a igualdade, a liberdade e a solidariedade só se realizam nesse processo ininterrupto de avaliação crítica de seus limites e de ampliação de suas fronteiras, formando parte de um processo coletivo de construção de uma sociedade melhor para um número cada vez maior de pessoas".

Mas conforme nos lembra a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), não é verdade que todos nós nascemos livres e iguais em dignidade e direitos. Nós nos tornamos iguais, e isto só é possível pela organização de uma "comunidade política" através do exercício de nossos direitos políticos.

Neste sentido, as lutas fomentadas pelas minorias sociais aí estariam colocadas, quando grupos de indivíduos requerem direitos que lhes são negados por outros que coadunam com as leis que constroem. É esta luta, por exemplo, da comunidade negra (quando requerem direitos pautados na condição hereditária da cor de sua pele ou pelo passado de escravidão que sofreram), ou homossexual (por causa da sua escolha afetivo-sexual), mas também poderia ser perfeitamente a luta de comunidades indígenas (por conta do seu passado histórico que dizimou em quase sua totalidade os que aqui já se encontravam), ou dos sem-terra (pela burocracia insana que reina neste país, adiando a reforma agrária), ou ainda dos X-Men, quando estes requerem seu status de cidadania.

Ora, a igualdade de direitos é tudo o que os X-Men, liderados pelo Professor Xavier acreditam e desejam para si e para o resto da humanidade. Sabemos muito bem que este ideal de uma comunidade liberal é constantemente ameaçado pelo poder e a influência das desigualdades sociais e pela hegemonia do poder representado pela lógica concreta do capital.

Assim, o X-Men do Professor Xavier lutam não só contra o grupo liderado por Magneto, que vê nos humanos uma ameaça para os da sua espécie, como também contra uma sociedade que suporta e tolera menos as suas diferenças. Acontece que este mecanismo de diferenciação do outro de nós mesmos é capaz de gerar terríveis atos de violência e crueldade, conforme foi visto durante a Segunda Guerra Mundial e foi definido por Freud de "narcisismo das pequenas diferenças", pilar mestre de todo o preconceito, discriminação e intolerância. Isto porque o "narcisismo" suporta menos a convivência com o diferente e suporta menos ainda o convívio com o minimamente diferente, para lembrar as palavras da psicanalista Maria Rita Kehl.

Os negros, os homossexuais, as mulheres, os índios, os portadores de necessidades especiais, os judeus ou os muçulmanos não têm culpa de terem nascido com alguma particularidade que os diferencie da "grande maioria". Os mutantes do Professor Xavier e do Magneto também não. Ou alguém concorda que o destino de jamais poder tocar outra pessoa, é bem aceito pela Vampira? Ou procurar a "cura do gene X" seria a melhor solução para resolver os problemas de ser considerado "diferente" em uma "sociedade de iguais"? Ou quem sabe, é satisfatório carregar os dilemas e a dor de sua existência como tão bem expõe os conflitos internos do Wolverine, toda vez que ele precisa fazer uso de suas garras? "Dói?", pergunta Vampira comovida com a sua história de vida. "Muito!", responde Wolverine. Afinal, quem consegue ter prazer ao exibir as feridas de sua própria existência?

Portanto, o que os X-Men fazem nada mais é do que um apelo à tolerância, pois sufocados pela dor de terem que esconder seus poderes dos seus semelhantes suplicam a esta humanidade que relembrem do horror que ela mesma foi capaz de provocar. Suplicam por um mundo mais justo, por mais utópico que possa parecer, e de modo análogo, recordam as palavras de Adorno (1904-1969), retomadas por Jurandir Freire, quando aquele afirmava: "Barbárie, é pensar que nada faço para que o outro morra, mas também nada faço para que ele viva". A utopia, juntamente com os ideais humanistas de solidariedade, fraternidade e igualdade, e aliados ao sentimento de tolerância, é a crença na possibilidade de construirmos um mundo infinitamente melhor. A utopia, juntamente com os ideais humanistas de solidariedade, fraternidade e igualdade, e aliados ao sentimento de tolerância, é a crença na possibilidade de construirmos um mundo infinitamente melhor.



Publicado na Revista Atlaspsico, Curitiba-PR, N. 11, Dezembro de 2008, p. 22-25.