segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A METADE QUE NOS FALTA




Parafraseando Oscar Wilde, eu diria: amar o outro é o começo de um idílio que dura a vida inteira. Na atualidade, o amor passou a ser usado como objeto de fetiche, valorizado, idolatrado, desejado e requerido pela maioria de nós. É como se disséssemos em uníssono que “sem amor, estamos amputado da nossa melhor parte”, conforme a crítica formulada pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro “Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico”.

Segundo Jurandir Freire, o amor foi mais uma invenção da modernidade como tantas outras que hoje conhecemos, e apesar do prestígio que o amor tem em nossa sociedade, ele deixou de ser um puro momento de encanto para se tornar uma corvéia, pois 'quando é bom, não dura, e quando dura, já não encanta mais'.

Se pensarmos direito, ele tem razão: das revistas para adultos e adolescentes ao cinema e televisão, somos constantemente bombardeados com a necessidade insofismável de encontrarmos a nossa cara metade.

Hoje, você não é ninguém e nem pode candidatar-se ao papel 'fundacional' em ser, se não tiver quem lhe complete, um companheiro ou uma companheira, e tudo isso é dito de forma voraz através de um imperativo categórico que tem levado as pessoas a certos níveis de depressão, ou porque não conseguem alcançar o desejo da maioria, daí achando-se 'incompetentes' para amar, ou por não suportar a dor de ter perdido alguém que amou.

Ora, na contemporaneidade, as pessoas não querem tanto compromisso afetivo como outrora. Não conseguimos olhar para alguém e ver nela um projeto de vida duradouro, uma história pautada na parceria amorosa, afetiva e no companheirismo, porque todos querem amar, mas temem investir neste projeto.

Aliás, nem mais sabemos se com a perda dos grandes ideais e das grandes utopias, nos tornamos essencialmente narcísicos ou individualistas, já que o 'ficar' virou moda e substituiu o namoro cujo ethos amoroso era baseado em eros, na acepção grega do termo.

Na Grécia antiga, o amor era algo necessário à construção da cidadania, estava a serviço da 'pólis' (cidade grega) e destinado exclusivamente aos homens. O amor fazia parte da pederastia grega, que em nada se assemelha ao que hoje concebemos como 'homossexualidade'. Homossexualidade é a relação amorosa ou afetiva e sexual entre duas pessoas adultas do mesmo sexo que consentem partilhar essa experiência mútua de vida.

O amor entre os homens na Grécia antiga era acima de tudo uma medida pedagógica e visava alcançar o mundo de eros (o reino dos amores), seja através da contemplação do belo, seja através dos prazeres.

Existiam, portanto, dois reinos: o reino dos prazeres, denominado de 'afrodisias', e o reino dos amores, denominado de eros. Nos 'afrodisias', os prazeres sensuais ou físicos estavam na contemplação de prazeres da vida diária, tais como beber, comer, fazer ginástica, cantar a natureza etc.

No reino dos amores, eros era encontrado não só entre homens, mas entre deuses e deuses, deuses e homens, deuses e animais, animais e seres humanos, elementos da natureza e humanos, fabricando condutas diversas e diferentes das que temos hoje. Nesse sentido, o amor entre os homens era uma forma de culto ao próprio eros, como uma entre tantas das obrigações inerentes ao cidadão grego.

Contrariamente ao homoerotismo masculino, cuja relação sexual pode estar pautada em uma atividade e passividade, na Grécia antiga, o homem grego adulto estava impedido pelas leis da pólis de submeter-se a qualquer papel passivo na relação sexual. A prática de “cunilingus” (sexo oral) para com uma mulher era, igualmente, condenável e reprovável na cultura grega.

Não obstante, foram os próprios gregos que inventaram a metáfora da complementaridade, através do famoso mito de Aristófanes, no célebre livro 'O Banquete', de Platão.

Segundo Aristófanes, a origem do amor remonta o mito dos seres andrógenos e completos. Na antiguidade, os seres humanos eram essencialmente duplos e esféricos, constituídos de duas metades: o primeiro era constituído de duas metades homem, o segundo de duas metades mulher e o terceiro era constituído de metade homem e metade mulher. Certo dia, esses seres resolveram desafiar os deuses, e tiveram como castigo, a divisão de cada uma de suas partes, sendo condenados a vagarem errantes pelo mundo. O amor seria a tentativa de cada uma dessas metades retomarem a unidade perdida. Por isso, na cultura popular, dizemos que o amor não tem sexo, pois cada um de nós teve a sua cara metade um dia perdida em algum lugar, segundo o mito grego (o que explicaria, grosso modo, a existência de seres heterossexuais, homossexuais e bissexuais como constitutivas de nossas subjetividades).

Mas essa concepção mudou ao longo da história.

Na época do cristianismo, o amor passa a ser uma aberração e um desvio após os ensinamentos e doutrinas de Santo Agostinho. Ele dizia que o amor deveria ser destinado única e exclusivamente a Deus. O amor, e conseqüentemente o sexo, era uma forma de corromper o pacto feito entre Deus e o homem. A idéia de pecado vem desta época e perdura até os nossos dias. O pecador, por conseguinte, é o primeiro personagem sexual da história da humanidade.

Mas é no final do século XVIII com a idéia de sentimentalismo e romantismo que filósofos e escritores da época passarão a valorizar o amor romântico e o amor paixão, bem mais próximos daquilo que concebemos hoje. Jean Jacques Rousseau foi um dos mais representativos autores dessa época, na filosofia, e
Shakespeare, na literatura, e nos fizeram acreditar que o amor fazia parte da nossa interioridade. Porém, isso trouxe conseqüências negativas: foi nesta mesma época que a idéia de amor ficou atrelado à idéia de família e procriação, logo, só possível entre um homem e uma mulher, fazendo da família nuclear conjugal e burguesa a norma, e todo e qualquer outro tipo de união, o desvio.

É por esta razão, acredito eu, que a nossa sociedade é incapaz de associar o amor, a cumplicidade, a amizade e o companheirismo às relações homoeróticas. Vêem a relação entre dois homens ou duas mulheres como patologia, degenerescência, vulgaridade, anomalia, anormalidade, falta de vergonha, imoralidade, patologia passível de cura, repreensão ou repressão. Daí associar a falta de comprometimento afetivo e promiscuidade como constitutiva e inerentes a todos os homossexuais e lésbicas. Isto é uma inverdade. A falta de comprometimento afetivo e amoroso não tem sexo e é perfeitamente encontrada nas relações interpessoais de homens e mulheres heterossexuais.

Quem pode pensar no amor de outrora em um mundo onde se valoriza cada vez mais o corpo e a imagem como objetos de desejo? Como podemos planejar o futuro com alguém se não acreditamos que este alguém  tenha condições de investir suficientemente em um projeto de vida semelhante ao meu? E o que é pior: esquecemos que o outro, aquele que desejamos, está pensando a mesma coisa de nós! Ora, se não existe uma perspectiva mínima de se construir uma relação baseada em sentimentos, porque logo “eu” vou insistir nisso? Quero mais é curtir a vida! Deixe para os caretas, aos otários, acreditar que um dia, vão encontrar esse tal de amor. Enquanto isso, eu me divirto, “fico”, “beijo”, “transo”, “acabo a noite em uma cama qualquer”, mas levo comigo a minha noite de “prazeres indescritíveis”, e no dia seguinte, “nem sei mais quantas bocas eu beijei ou qual o nome daquele(a) que acordou ao meu lado”. Passado a euforia, vem a depressão, a angústia, trazendo-nos de volta à realidade: “Estou só. Não tenho amor nem ninguém para amar. Só existe esse espaço vazio ao meu lado, levemente aquecido pelo calor de um corpo de quem há minutos lá esteve”.

Por um momento, a depressão, assim como a angústia e a euforia desaparecem, dando lugar a uma sensação de “abstinência de prazer”, semelhante ao que sente um viciado em drogas.

Resultado: 'Que venha o próximo fim de semana!'. Olha só a novidade: viciamo-nos em 'sexo casual' e nos tornamos escravos da cultura das sensações! Isso é que é modernidade! Voltemos a falar de amor.

Todos concordam que ainda valorizamos o amor como objeto de desejo, mas esquecemos dele em algum baú guardado em nossos armários. As pessoas querem amar, mas não estão aptas para amar. Querem ser desejadas, mas investem muito pouco no seu desejo. Querem uma relação estável, mas não acreditam que isso seja possível. Querem uma vida em comum, mas são narcísicas o suficiente para não construírem uma vida ao lado de uma outra pessoa.

Querem um 'príncipe' e uma 'princesa' como objeto de veneração, mas esquecem de usar o próprio espelho como medida do seu desejo. Valorizam um gesto de afeto, carinho, amor e paixão, mas são incapazes de fazer isso com a verdade merecida, e sucumbem ao próximo corpo mais perfeito e mais bonito que encontram pela frente, seja o músculo mais bem trabalhado, ou a bunda e os seios mais inflados.

Sonham com jantares à luz de velas, mas buscam quem sentar à mesa em ambientes duvidosos, tais como darkrooms de boates ou salas de chat.

Planejam um dia dividir suas vidas e um espaço a dois, mas o máximo que conseguem é dividir o metro quadrado de uma pista de dança ou da cama de um motel. Desejam o corpo do outro, mas apenas como objeto de predação e gozo, já que nos transformamos em “objetos” no extenso mercado de corpos construídos em academias de ginásticas ou mesas cirúrgicas, a base de muito suor e esforço físico ou através de anabolizantes, lipoaspiração ou silicone.

Querem reconhecimento entre seus pares, mas não reconhecem a si mesmos, uma vez que se vêem como projetos falidos, fadados ao fracasso, sucumbindo a fruição do corpo usado como medida da felicidade possível, cujo gozo orgástico é o fim dessa trágica trajetória de vida.

Descobrimos também, por ensaio e erro, que se amar é sofrer, quem deseja amar, deve estar preparado para o sofrimento das dores de amor, ou então, deve de imediato abandonar esse projeto, através de um dos modelos de vida descritos acima.

Enfim, amar não é fácil! Demanda tempo, paciência, sentimento, fantasia, ciúme, rejeição, doação de si, compreensão do outro, cumplicidade, esperança, mágoa, conquista, dor, sujeição, etc., mas também uma boa dose de prazer e felicidade. Freud já dizia que somos incapazes de amar o outro na sua incondicionalidade, porque somos eminentemente narcísicos e só nos constituímos na presença do outro, ou seja, só existe um “eu” porque existe “um outro”, ou “um nós”, como queiram.

Assim, não amamos o outro de fato. Amamos o que de nós mesmos conseguimos enxergar nesse outro. Ele é a medida exata do “nosso eu”. Sem ele, não somos nada nem ninguém. Uma das funções do amor, é preencher um vazio naquele que ama.

Por isso, quando amamos, estamos transbordados de plenitude e, proporcionalmente, quando perdemos o objeto amado, somos tomados por um sentimento de perda irreparável, de um completo vazio. Essa é, ao menos, a idéia do amor que persiste em nosso imaginário na atualidade, e desse modo, é pela via do narcisismo também que o ser apaixonado esquece quem está a sua volta, pois como dizia a filósofa Hannah Arendt, “quem ama, abandona o mundo!”. Mas é bom lembrar que temos também a liberdade de escolher com quem vamos nos identificar, com quem vamos estar acompanhados.

Nós temos a liberdade de escolher quem será a medida do “nosso eu”.

Definindo o outro como a medida do nosso eu, afirma Jurandir Freire, o novo ethos amoroso propôs aos indivíduos uma dura tarefa: 'a de introduzir o sofrimento na economia do desejo. Acontece que o outro a quem amamos pode dizer não ao que pedimos. Eis a antinomia da felicidade individual contida no amor romântico: se o outro não pode fazer-me sofrer com sua ausência ou sua recusa, não sei o que é amar, e se sei o que é amor, estou exposto ao sofrimento do 'não'. A este impasse a felicidade de mercado respondeu dizendo: 'ame os objetos, eles jamais dizem 'não' ! São dóceis e programados para realizar o que julgamos saber sobre a satisfação de nossos desejos'.

O corpo está entre esses objetos fabricados pela sociedade de consumo. Hoje, produzimos corpos como produzimos alimentos enlatados, peças de automóveis, roupas ou eletrodomésticos, ou seja, em série.

Transformamo-nos não só em objetos, mas em 'coisas', na acepção marxista e freudiana do termo, conforme descreve Jurandir Freire. Para Marx, coisa é uma mercadoria com valor de troca. Para Freud, coisa é o objeto de nossa fantasia com vistas à satisfação dos nossos desejos. Neste caso, sou veemente crítico a qualquer cultura que transforme o corpo como objeto de predação, desejo, posse e gozo do outro, mercantilizando a sua economia libidinal à idéia narcísica de corpolatria, até mesmo porque, nem toda a dieta do mundo, nem todos os aparelhos de musculação ou ginástica existentes, ou ainda nem todas as cirurgias plásticas disponíveis podem transformar o corpo do “homem ou mulher comuns' em objetos de consumo tais como vemos nos desfiles de moda, nos out-doors nas ruas e praças ou nas capas de revistas ilustradas pelas notórias beldades e celebridades nacionais e internacionais.

Não sou um completo descrente no amor romântico ou no amor paixão. Gostaria de poder encontrar mais pessoas, tanto na vida diária quando na clínica, que pudessem padecer e suportar as dores de amor ao invés de ser incapaz de projetar para si uma relação pautada em eros. Gostaria de encontrar mais pessoas que pudessem chorar um amor perdido do que a falta que ele lhe faz.

Alguém que não usasse a palavra eros como um sinônimo elegante para a palavra sexo. Alguém cujo amor durasse o tempo necessário para que ele pudesse nascer, crescer e morrer, como todas as coisas vivas no mundo, aliás. Alguém em que o tempo do amor não durasse apenas o tempo de um beijo, de uma transa ou de um orgasmo, visto que amar alguém demanda discurso dos bons, e não meras palavras soltas de um discurso vazio e sem sentido.

Gostaria, finalmente, de pensar também o amor, bem mais próximo da definição dada pelo poeta barroco Gregório de Matos que diz: 'O amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias, uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um reboliço de ancas e quem diz outra coisa é besta'.

Mas nunca esqueça que o outro ainda é a medida do nosso desejo.

Portanto, cuidado com o que você deseja. Aliás, diante de tudo o que acabamos de falar, cabe aqui perguntar: você realmente quer aquilo que você deseja?


Publicado em Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro - RJ, Ano 27, N. 343, p. 34-37, 2005.

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