sábado, 13 de novembro de 2010

UM PAIS DE SEVERINOS E FILOMENAS



 
No dia 31 de outubro de 2010, tivemos o segundo turno de mais uma eleição para presidente da república.
De um lado, a candidata do PT, a senhora Dilma Rousseff e do outro, o candidato do PSDB, o senhor José Serra.
Em meio ao que se viu na campanha dos candidatos durante o segundo turno e, malgrado o bate-boca de ambos os lados pela atenção dos eleitores em meio ao acúmulo de acusações do que se fez e do que deixaram de fazer, venceu a candidata do PT, agora a então Presidente Dilma Roussel, por mais de 56% dos votos válidos.
Desde o início, sabemos que o colégio eleitoral do sul-sudeste do país tem a maior representatividade do eleitorado brasileiro pela grande concentração de habitantes nessas regiões, apesar do nordeste ter mostrado a força política e participação decisiva nestas eleições.
Chama a nossa atenção o comportamento de uma estudante de Direito publicar no Twitter e no Facebook, duas grandes redes sociais na internet, palavras difamatórias contra os nordestinos que “contribuíram” na eleição da senhora Dilma Rousself para presidente da república, conforme reportagem da revista Época, N. 651, de 8 de novembro de 2010, nas páginas 96-97.
Apesar da revista ter publicado quais palavras difamatórias são essas, vale a pena repeti-las abaixo para sabermos do que se trata:

Nordestino não é gente. Faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”

AFUNDA BRASIL. Deem direito de votos pros nordestinos e afundem o país de quem trabalhava pra sustentar os vagabundos que fazem filho pra ganhar o bolsa 171”

Faça um favor ao nosso país: mate um nordestino”

Brasil!!! Um país de tolos!!! Parabéns jegues nordestinos!!! Tomarem que morram de fome eternamente, povo folgado que se refugia em sp!!!”

Não tenho orgulho do Nordeste. Prefiro sul/suldeste. Lá tem pessoas mais instruídas e inteligentes. Não me identifico com essa burrice local”

Os miseráveis e ignorantes do Norte/Nordeste, que sempre viveram de esmolas do estado, + uma vez decidem uma eleição. Vocês são escória!!!”

Danem-se. Continuo odiando qualquer lugar acima de Belo Horizonte. Espero que vocês morram... de fome ainda por cima”

O nordeste é um lugar onde nós, pessoas brancas de classe média alta, vamos fazer turismo sexual comendo umas baianinhas vagabundas”

Gente. O que nois do Sul/Sudeste estamos fazendo no Twitter? Vamos trabalhar para sustentar mais 4 anos de Bolsa família do Norte/Nordeste!”

Dividam o Brasil no meio, me nego a ser da mesma nação dos nordestinos”


Mas que abominação é essa? De onde vêm tanto ódio?
O que os pais da “classe média alta da região sul-sudeste” deste país estão ensinando aos seus filhos? A disseminação do ódio contra um povo que ajudou a construir o que Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro (entre outras grandes capitais) se tornaram na atualidade?
De acordo com o psicólogo da Universidade Federal de São Paulo, José Roberto Leite, em entrevista a mesma revista Época, parte da explosão de ódio pode ser explicada através do produto do ambiente onde essas pessoas vivem, pois são pessoas condicionadas ao comportamento social de sua família, de amigos e da escola. É provável que eles tenham esse tipo de conversa com pessoas próximas e achem normal”, diz o psicólogo.
Pois bem: agora então é normal incitar o ódio, desejar a morte ou fazer do nordeste um lugar para turismo sexual? Onde estão os pais, professores e educadores destes jovens que não os advertem e nem falam da história do seu próprio país, construído através de muito sangue e suor de severinos e filomenas ao longo de todo o século passado?
Não quero chamar aqui em defesa a Constituição Brasileira ou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, coisa que a estudante de direito deveria ter conhecimento e zelar pelos princípios e pelas conquistas que conseguimos após enfrentarmos duas guerras mundiais ou conseguirmos sobreviver a barbárie do regime e da ditadura militar, onde jovens estudantes ao lutarem pela liberdade neste país foram barbaramente torturados.
Esses jovens que usaram as redes sociais falam de um povo que não conhecem.
Pensam que os homens são “jegues” que levaram e ainda levam nas costas o tijolo, o calcário e o cimento para construir suas mansões e apartamentos onde moram ou trabalham.
Pensam que as mulheres são vagabundas que se prestam, no mais das vezes, à exploração do turismo sexual do qual fazem parte em Salvador, em Recife ou Fortaleza.
Desconsideram que grande parte da elite cultural deste país tem nomes como, entre outros, Alceu Valença, Luiz Gonzaga ou Elba Ramalho, só para citar os mais conhecidos na música.
Acreditam que a elite intelectual deste país é constituída apenas pelos filhos, netos e bisnetos dos descendentes e imigrantes europeus, acreditando que os nordestinos são burros, ignorantes e vagabundos, ou seja, restos do que foram seus descendentes negros ou índios.
Esquecem que a pluralidade da cultura brasileira nasceu justamente de um povo que sobreviveu e deixou como herança a sua história de vida e o seu hábito cultural, ensejado nas suas crenças, na sua religiosidade, na sua musicalidade, na sua tradição alimentar, na sua língua, no seu modo de vestir e no seu “remelexo”, ou seja, sua própria subjetividade.
Esquecem-se, também, que o nordeste foi e ainda é o lugar onde políticos corruptos usam o povo que lá vive e sobrevive como moeda de troca para a entrada no Congresso e no Senado Nacional, tirando proveito da pobreza e da miséria dos menos favorecidos, para dar vazão à corrupção e ao roubo dos cofres públicos.
Acontece que o povo nordestino nunca quis esmolas do governo federal. O povo nordestino quer trabalho, quer justiça social, políticas públicas para transformar o rico solo do qual sustenta parte da elite deste pais um lugar muito mais produtivo. Quer educação de qualidade, assim como há no sul-sudeste do país. Quer um sistema de saúde que funcione. Quer incentivos fiscais para o desenvolvimento da agricultura e de pequenas e grandes empresas que lá existem. Quer melhoria de vida. Quer saneamento básico. Enfim, quer uma estrutura mínima de vida digna.
Tenho muito o que lamentar ao saber que estes mesmos jovens que tentam denigrir a imagem do povo do nordeste possam um dia vir a dirigir este pais. Tenho medo do que a nova elite burguesa e “(des)intelectualizada” da qual esta estudante lamentavelmente deve fazer parte, pode fazer para destruir o que os meus irmãos do nordeste, do norte, do centro-oeste, do sul e do sudeste ajudaram a construir.
Sim, porque contrariamente ao que estes jovens pensam, sou nordestino radicado há pouco mais de sete anos no sudeste deste país, mas foi lá onde nasci que me ensinaram o valor de uma vida humana, e por saber o que é ser um “ser humano”, sou afetado pela dor e pelo seu sofrimento. E por ser “humano”, nada do que é humano me é estranho.
Mas não sou um total descrente. Acredito que as pessoas podem e devam mudar. Winnicott e Hannah Arendt acreditam nisso. O primeiro diz que desde nossa entrada no mundo estamos aptos a nos desenvolver e a melhorar, enquanto houver vida, existe o sentido de continuidade de existência. A segunda, diz que é justamente ao entrarmos no mundo na condição de recém-chegados é que podemos agir e transformar o mundo para os que ainda virão. É por acreditar nisso que tento ajudar pessoas em seu sofrimento psíquico.
Espero que a estudante de direito possa ter a oportunidade, ao menos uma única vez na sua vida, de se deixar afetar pela “humanidade” dos seres humanos que tanto quis destruir. Ou isso, ou a condição insofismável e lamentável do mundo bárbaro do qual faz parte.

Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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