domingo, 28 de novembro de 2010

MADAME SATÃ: DO PROFANO AO SAGRADO



Vivia na maravilhosa China, um bicho tubarão, bruto e cruel, que mordia tudo e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia todo dia uma oferenda com sete gato maracajá, que ele mordia antes de pôr no sol. No ímpeto de pôr fim a tal ciclo de barbaridades, chegou Jamacy, uma entidade da floresta da Tijuca. Ela corria pelos mato e avoava pelos morro. E Jamacy virou uma onça dourada, de jeito macio e de gosto delicioso. E começou a brigar com o tubarão, por mil e uma noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucado que ninguém mais sabia quem era um, e quem era outro. E assim, eles viravam uma coisa só: A Mulata do Balacochê”.

O longo trecho é um monólogo interpretado pelo ator Lázaro Ramos, através do personagem João Francisco dos Santos, mais conhecido como Madame Satã, título que dá nome ao filme de Karin Aïnouz (Brasil, 2002).

João Francisco dos Santos, ou melhor, Madame Satã, viveu no Rio de Janeiro dos anos 1930. Nasceu em 25 de fevereiro de 1900, na cidade de Glória do Goitacá, no sertão Pernambucano, numa família de 17 filhos, entre homens e mulheres.

Sua mãe era descendente de escravos, e o pai, descendente de ex-escravo filho da elite latifundiária, vindo a morrer tão logo João fez sete anos.

Sua infância não foi fácil: um ano após a morte do pai, foi trocado por um égua pela mãe, e veio morar no Rio de Janeiro. Aos 13, passou a viver na rua dormindo nos degraus das casas antigas do bairro da Lapa. Por volta dos 18 anos, passou a trabalhar em um bordel como garçom, assim como trabalhava a maioria dos “homossexuais” da época. De acordo com as pesquisas realizadas por James Green para o livro “Além do Carnaval”, João era malandro autêntico e até certo ponto honesto, digno, consciente de sua profissão. Era limpo, usava camisa de seda-palha com botões brilhantes, gravata de tussot branco, sapatos com salto carrapeta, chapéu panamá e muitos anéis.

Quando adulto, tornou-se malandro, artista transformista, pai adotivo, capoeirista, cozinheiro, presidiário, preto, pobre e pederasta passivo, assim como é definido logo no início do filme. João Francisco viveu a maior parte de sua vida nas ruas boêmias da Lapa, no seu círculo de amigos, amores, amantes. Não levava desaforo para casa e sua agilidade de capoeirista e o bom uso que fazia de uma navalha o fizeram uma figura temida, dos frequentadores da noite onde circulava, aos policiais que o perseguiam. Sobrevivia praticando o jogo, a prostituição, a cafetinagem, o roubo, compondo sambas ou aplicando golpes. Sua imagem, na maioria das vezes, sugeria masculinidade e virilidade. Talvez pelo uso habilidoso que fazia de sua navalha, usada quando ofendiam sua honra, o enganavam no jogo ou traíam sua confiança. Viveu durante 76 anos, 27 dos quais na prisão. Definia-se como “filho de Iansã e Ogum”.

Sua história começa no Cabaré Lux, onde Vitória dos Anjos, interpretada por Renata Sorrah, canta os sucessos de Josephine Baker, de quem João Francisco se dizia devoto. Nos bastidores da apresentação de Vitória, ele reproduzia cada gesto e cada palavra da cantora decadente. Venerava, desse modo, Vitória dos Anjos e Josephine Baker, enquanto era explorado e humilhado por Gregório, seu patrão e amante de Vitória.

Mas é no cortiço em que vive no coração da Lapa, que João Francisco comanda o seu mundo, compartilhado por Laurita (Marcélia Cartaxo), prostituta e esposa, Firmina (Giovanna Barbosa), filha de Laurita, adotada por ele como se fosse sua filha e Tabu (Flávio Bauraqui), seu cúmplice nos pequenos golpes e escravo.

Nesse universo sujo e decadente, onde a beleza plástica de um sonho artístico se mistura à sujeita viscosa por onde perpassam drogas, sexo e pequenos crimes, João Francisco conhece a glória, o amor, o sexo e o gozo miserável de se viver em um mundo onde a ignomínia de ser preto, pobre e pederasta passivo limitava veementemente o “mundo dos que têm” e o “mundo dos que tentar ter” um pouco de dignidade humana.

No filme, as contradições beiram o surrealismo: um mundo onde a película registra tenazmente o calor, a brilhantina, a gordura, o suor, o odor miserável de se viver no Rio de Janeiro no início do século passado. Ruas podres, odores que não sentimos, a sarjeta dos bares e botequins, cujo luxo, pobreza e violência se intercalam constantemente com o lúdico e o trágico, como um mesmo elemento que faz João Francisco se tornar Madame Satã, a Mulata do Balacochê ou o Gato Maracajá, todos personagens inventados por ele para encenar a sua glória de artista da sarjeta. Quem conhece o bairro da Lapa do jeito em que hoje se encontra, pode vislumbrar como poderia ter sido há mais de setenta anos o universo em que Madame Satã trafegava. Mas era no palco que João Francisco se transformava, e como diz o seu monólogo, não sabendo mais “o que era um e o que era o outro”.

O palco para ele era sagrado, e sua profanidade só se dava através do “desejo perverso” por Renatinho (Felippe Marques), um garoto de programa com quem viveu uma grande paixão, sem nunca confirmar que o amava de verdade.

É impossível não ver sequer um pouco de Jean Genet nas cenas que se desenrolam, em que os personagens de Querelle e Nossa Senhora das Flores parecem querer invadir o espelho rachado que marca o tempo, a narrativa do momento e do local onde cada uma das histórias se passa, visto que em Madame Satã, toda a história se dá em um universo à parte do Brasil dos anos de 1930, época em que a política fervilhava, os impérios dos cafés ruíram diante da crise econômica de 1929, quando a burguesia e a elite carioca tentavam se sustentar a duras penas, a repressão militar e a “carioquicidade” dos grandes bordéis, bares e vida boêmia conquistavam seu espaço, sobretudo em um Brasil que praticamente havia deixado o século XIX sob a égide da abolição da escravatura.

Violência, sexo, boemia, perversão, ternura, amor, paixão, morte... são essas categorias que inscrevem o trágico em Madame Satã. Tudo o que João Francisco mais amava, morre com seu ato de violência. É como que fora dos palcos, o sagrado se transformasse, de fato, em profano, cuja redenção se daria através do corpo imaculado da personagem que ele inventou, em um ato de cópula, engendrando o não-engendrável!! O artista satã, cujo nome tanto nos incomoda, torna-se homem pecador pela via mesma da sexualidade marginal que fora patologizada pela medicina e pela sexologia da época. Duas décadas antes, Freud já dizia que o mal dos nervos só poderia trazer más consequências para uma sociedade que reprimia o desejo e cuja moral sexual era muito rígida. No caso de João Francisco, não há o que recalcar. Ele não escondia a sua preferência por homens e pelo sexo que gostava de praticar.

De acordo com James Green, ao contrário de outras figuras de destaque da época, Madame Satã gostava de fazer sexo com homens: “porque ele se tornou uma figura de certo modo folclórica, sua vida foi bem mais documentada que a de outros jovens observados pela investigação de médicos e estudantes de criminologia nos anos de 1930, ou de incontornáveis outros que desapareceram no registro histórico”.

Daí o feminino encarnado em Madame Satã surgir desse apelo desesperado por um outro, que pode ser visto no amante Renatinho, nos furtos que comete, na “esposa” despudorada e prostituta ou na filha adotiva que cria.

Sem máscaras, sem subterfúgios, em um mundo que aceita menos o diferente numa época tão castradora, João Francisco não precisou construir um armário para poder sair. Admite sua homossexualidade como uma blasfêmia dita em pleno ato carismático; joga sua pederastia passiva contra a mesma sociedade que impõe segredo ante a sua anormalidade; daça e inventa personagens, caricaturas do feminino, como que para agredir, não fortuitamente, a mesma cultura que diz não ao seu apelo artístico. É a mais perfeita encarnação da contracultura brasileira que impõe o gueto à chamada homossexualidade no Brasil e no mundo da década de 1930.

Como homossexual, ou melhor, “pederasta passivo” tal como era definido pela criminologia e sexologia da época, o sexo que praticava promovia uma rachadura entre aquilo que ficou convencionado entre as classes sociais (dominador/ativo – dominado/passivo) que separavam público e privado, pessoal e político. Fazia do seu “anus” objeto de gozo e revolução, de revolta e de ação contra a elite burguesa, tal como apresentado por Guy Hocquenghem no livro “A Contestação Homossexual”. Retomando as palavras de Gilles Deleuze, o autor afirma: “O buraco do cu permanece a única zona vergonhosa do corpo do burguês. Ele não se beneficia com a ambivalência do pênis. (…) O anus é a zona particular por excelência do corpo burguês. (…) O uso do 'buraco do cu' é a pedra de toque do conflito entre 'pessoal' e 'público' (político). A descoberta prática dos homossexuais revolucionários [tal como João Francisco/Madama Satã o foi] é que o 'pessoal' não é outra coisa que não um fechamento e o 'político' só é uma expressão possível da libido”. Dito em outros termos, continua Hocquenghem, “o 'buraco do cu' não é nem vergonhoso, nem pessoal, é público e revolucionário”.

Daí, portanto, a dupla imagem engendrada por João Francisco em um só corpo: uma figura que nem é andrógeno por definição, nem caricata por vontade própria. Ele funde a homossexualidade à virilidade, a masculinidade à marginalidade, a malandragem ao boêmio, deixando à magia do carnaval ou às suas performances, o transbordamento de sua fluidez como figura folclórica e artística do bairro da Lapa.

Desse modo, conforme afirma José Arthur Gianotti, João Francisco “retira de seu homossexualismo qualquer traço de violência e de marginalidade, sente-se macho gostando de garotos a ponto de se viciar na pederastia, mas no fundo, tudo se passa segundo as inversões costumeiras durante o Carnaval, por certo com algum exagero. É homem casado, com seis filhos adotivos, que se diz pederasta e normal; se recusa a manifestar qualquer sentimento íntimo, o que resta são práticas a serem consideradas como se estivessem desfilando num bloco carnavalesco”.

Nisto reside a dualidade de João Francisco: pai, amante, ladrão, drogadito, pederasta, artista, não importa. Fez da sua vida até o fim, estética de toda sua existência. Viveu em um mundo bruto e marginalizado, amou e matou, fez arte e de boa qualidade para o universo que o reconhecia e venerava. Foi homem, foi diabo, foi santo, foi bandido. Também não importa. A personificação e a compleição de um artista que só um grande ator pode vivenciar, tal como fez Lázaro Ramos, sagazmente faz de Madame Satã algo para se refletir como que estamos fazendo da nossa vida, o que estamos fazendo da vida do outro, o que estamos fazendo na nossa própria cultura.

Madame Satã é, acima de tudo, um olhar do que restou de uma cultura que o Brasil demorou tanto a reconhecer. Mas também é um olhar do que pior e do que melhor podemos fazer com a nossa própria vida. Uns transformam o palco na razão do seu próprio viver [aqui poderiam se encontrar os verdadeiros atores e artistas em geral, que fazem da sua arte, a razão de sua própria existência]. Outros transformam o ideal de uma vida unicamente em subir no palco [aqui se encontrariam todos aqueles que querem muito mais do que quinze minutos para sobreviver às custas da própria fama, ou seja, figuras passageiras do mundo artístico]. Finalmente, outros são como João Francisco. Faz valer da sua vida, o reconhecimento de sua arte e do seu espetáculo pelo seu público, e não da mídia, como algo que ele tão bem aprendera a desejar, respeitar e a valorizar [aqui se encontram, além dos verdadeiros artistas, todos aqueles que entram para a história e fazem com sua arte, parte da cultura de um povo].

Nada mais justo para uma figura como Madame Satã.



Publicado na Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro, v. 26, n. 336, p. 29-31, 2004


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br .

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