segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O PROBLEMA BROKEBACK



A Revista O Globo, n.85 de 12 de Março de 2006 publicou o sugestivo artigo intitulado "Casamento Brokeback", de autoria de Katy Butler, relatando uma pesquisa mostrando como é a vida das mulheres casadas com homossexuais nos Estados Unidos.

O referido artigo, discute os problemas encontrados por várias mulheres americanas (mas que perfeitamente poderiam ser mulheres argentinas, brasileiras, italianas, inglesas, entre outras) que são surpreendidas pela descoberta de que seus maridos são homossexuais ou "bissexuais não assumidos", tal como é mostrado no filme "Brokeback Mountain", do diretor Ang Lee, premiado com o Oscar de 2006 por melhor direção.

Um fato e vários problemas a serem discutidos!

Primeiro, o velho questionamento entre a homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade, chama a atenção do leitor mais atento. Mais uma vez, a homossexualidade é posta contra a heterossexualidade, fazendo parecer que esta última seja mais natural do que a primeira. O fato dos heterossexuais terem reconhecimento civil de sua união, já há algum tempo vem deixando claro que isso não é apenas privilégio da chamada "maioria". Todos nós sabemos que a união entre um homem e uma mulher, resguardada pelos valores tradicionais da família, da legitimação dos filhos e respaldada não só pela Igreja Católica como também pelo código civil, é uma questão que vem sendo posta em dúvida constantemente, visto o número decrescente de casamentos nos últimos anos, o aumento do número de separação e divórcio e os crescentes ganhos na justiça da adoção de crianças por casais do mesmo sexo, tal como publicado no Jornal O Globo, de 06 de abril de 2006, onde um desembargador concedeu a adoção de uma criança a duas mulheres justificando para isso que "é hora de abandonar de vez os preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes. (...) O que mais importa é a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que [as crianças] serão inseridas e que as liga a seus cuidadores", disse o desembargador Luiz Felipe Brasil, da sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Segundo, abordar o tema pela via do "naturalismo" é um risco, visto que, "natureza" e "sexualidade" nem sempre caminham de mãos dadas. O filósofo francês George Canguilhem (1904-1995) já nos advertia de que a patologia e a normalidade podem variar de acordo com o meio, com a cultura e com o que foi denominado, disseminado e posto como status de verdade tanto na biologia, como na sociedade. Nesse caso, o que definimos como sendo normal e como sendo patológico em relação à sexualidade, pode ser muito bem mudado ao longo da história, de acordo com nossas crenças, valores culturais e sociais e o que um dia foi condenado, pode muito bem vir a ser recomendação moral no futuro.

Terceiro, é a abordagem do artigo em tentar pautar assuntos tais como desejo, paixão, afetividade, amor, sexualidade, escolha do parceiro amoroso, baseado em circuitos neuronais no cérebro, quando traz para apoiar seus argumentos, a tese da antropóloga Helen Fischer, da Rutgers University, ao afirmar que os tais circuitos neuronais no cérebro são responsáveis pela atração sexual, pelo envolvimento romântico e pelo compromisso a longo prazo.

Não quero discutir que tais circuitos não existam, não é esse o caso, pelo contrário, quero justamente tentar esclarecer que atração sexual, romantismo e compromisso afetivo não foram criações genéticas nem produto de circuitos neuronais ou ainda de produções hormonais, e sim, bens que a nossa sociedade construiu para resguardar valores outros que fazia com que nos distinguisse das outras espécies animais. Ora, nenhum hormônio, nenhum gen e nenhuma célula cerebral ou neurônio, como queiram chamar, é um grande apreciador das peças de Shakespeare, das músicas de Chico Buarque ou Elis Regina, nem muito menos um estudioso dos trabalhos de Jacques Rousseau, todos estes, legítimos divulgadores do romantismo e do credo amoroso, todos ao seu tempo e à sua época.

Por fim, e este é o ponto que eu quero chegar, é a abordagem do artigo frente à pesquisa, quando esta se refere à divisão natural entre a legitimação do casamento heterossexual baseada na parceria e relação amorosa e as "escapadas sexuais" de homens casados predominantemente homossexuais ou bissexuais, que teimam em pautar seu desejo via "gozo orgástico" diante de um "relacionamento heterossexual de aparências", tal como mostrado no filme "Brokeback Mountain". Neste, Ennis Del Mar sofre ao se ver diante do seu desejo por Jack Twist, com todas as dores de uma paixão romântica, que fez de "Romeu e Julieta", "O Morro dos Ventos Uivantes", "Irmão Sol, Irmã Lua", "A Dama das Camélias", "Love Story" e até "Titanic" também legítimos herdeiros do credo amoroso de nossa cultura, cada um em seu tempo. Por que então para homens e mulheres gays, seu desejo por uma outra pessoa do mesmo sexo é entendido sempre como sendo uma "aventura sexual", "um desvio de conduta", "uma abominação moral" dando margem a entender que entre homens ou mulheres gays, não existam afetividade, carinho, respeito mútuo, companheirismo, ou seja, comportamentos e sentimentos típicos de qualquer relação e parceria amorosa?

Minha hipótese é a de que nossa cultura criou um caminho um tanto perigoso para determinar as identidades sexuais desses sujeitos. No senso comum, o caminho percorrido pela homossexualidade, é um caminho sem volta. Na cultura popular, fala-se que um homem heterossexual até pode abandonar seu desejo sexual por mulheres, mas essa recíproca não é verdadeira para os homens gays, pois uma vez gay, sempre gay. "Alguém já ouviu falar em ex-gay?", diz-se aos quatro cantos. Por que não? Por que os gays teriam a marca insofismável da determinação sexual? Por que os homossexuais masculinos e femininos teriam sua identidade sexual única e exclusivamente determinada pelo que muitos chamam de destino, karma, genética, gosto ou desvio de conduta, que seja, não podendo conceder-lhes à contingência de seu desejo e da sua sexualidade a hipotética vontade de mudar o objeto amoroso ou sexual, de quem melhor lhe completa, se não há pre-determinação no que se refere à sexualidade da maioria do homem ou mulher comuns? Por que seria mais fácil "um camelo passar pelo fundo de uma agulha" do que um homossexual ou lésbica mudarem seu "destino" afetivo?

Se lêssemos e tivéssemos prestado mais atenção nas palavras do pai da psicanálise, talvez saberíamos que a "sexualidade não tem objeto fixo", daí a sua noção de bissexualidade originária da qual Sigmund Freud (1856-1939) já falava nos seus "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade". Não é que todos nós somos determinantemente bissexuais, mas sim que em algum dado momento da nossa vida, iremos fazer alguma escolha de um objeto amoroso e sexual. O fato de alguém ser homem e ser mulher, este sim, é um determinante da cultura que fazemos parte.

O problema do "Casamento Brokeback" está na dificuldade em homossexuais aceitarem seu desejo amoroso (vejam bem, falo de desejo amoroso, e não sexual). Conseqüentemente, desejo amoroso e sexual reprimido, só tem duas saídas: uma é o que chamamos de sintoma (uma manifestação de um comportamento consciente ou não, mascarado pelo desejo reprimido), a outra é o reconhecimento desse desejo e sua conseqüentemente manifestação a posteriori.

Nisso é como entendo uma parte dos bissexuais: sem poderem manifestar seu desejo pelo mesmo sexo, sucumbem à repressão social e sexual da qual fazem parte e transformando sua vida em um jogo duplo de "esconce-esconde", desrespeitando o ser humano com quem está se relacionando. Não é a toa que há algum tempo, a incidência de mulheres casadas soropositivas vem crescendo, face à manifestação sexual dos seus companheiros.

Nesse sentido, não sou contra a bissexualidade, sob hipótese alguma. O sexo (masculino ou feminino) da pessoa que realiza o prazer amoroso e sexual é do gosto e do desejo de cada um. Quanto a isso, tanto fez como tanto faz. Sou contra, isto sim, a qualquer tipo de relação, parceria amorosa e desejo afetivo manifesto por alguém que não assuma as conseqüências de sua fragilidade psíquica diante do seu conflito, ou dito de outro modo, sou contra a toda e qualquer relação onde o outro seja submetido às neuroses de seu companheiro, fingindo um sentimento que não há, mascarando seu desejo por outra pessoa, independente do seu sexo, traindo a relação e o compromisso mantido por dois sujeitos adultos e, assim espero, responsáveis. Sou contra a indisciplina da libido que faz com que sejamos fracos diante do prazer orgástico e da cultura do consumo e que ainda fez do sexo um produto frágil, fácil e descartável, ou seja, praticamente um enlatado na fruidade das prateleiras amorosas e sexuais.

Sou contra ao desmantelamento da ética e parceria amorosa diante de um corpo eminentemente que suplica ou clama por consumo, que faz com que pessoas, gays e não gays, sejam presas fáceis do consumismo desenfreado de corpos na nossa sociedade atual trazendo a infelicidade afetiva para homens e mulheres que não conseguem entender porque falharam no seu dever de manter uma relação pautada no respeito ao outro.

Daí, como conseqüência, os consultórios psicoterápicos terem como queixa principal, a fatalidade do descompromisso afetivo. Daí os cartórios inflarem de pedidos de separação. Daí o desaparecimento de casais das cerimônias de casamento em igrejas. Daí a sujeição de milhões de pessoas ao espaço virtual e à neurose coletiva diante da internet que proporcionou mais um meio para que essas mesmas neuroses dessem vazão. Daí, o ficar. Daí, o beijaço. Daí à pouco, um renovado, objetável e admirável mundo novo nas relações amorosas. Quem (sobre)viver, verá!



Publicado na Revista Atlaspsico, Curitiba-PR, N. 14, Junho de 2009, p. 10-12.

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