quinta-feira, 11 de novembro de 2010

AS MODIFICAÇÕES CORPORAIS HOJE


 
A preocupação com o corpo, conforme sabemos, não é recente e nem muito menos chegou a um fim. Desde a última década vimos surgir um crescente interesse pelo corpo, seja através de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos, levando a formação daquilo que alguns autores vem alertando para a produção de novas identidades – bioidentidades, para ser mais exato, que deslocou a construção do nosso eu e da nossa interioridade para a superfície do corpo.
Hoje, verifica-se, com certo assombro, a quantidade de modificações corporais que se vivencia em nossa sociedade, através do apelo da mídia, da moda, do uso do "corpo modificado" como um novo lugar que o sujeito contemporâneo precisa ocupar no registro simbólico, tais como tatuagens, piercings, branding, próteses diversas implantadas sob a pele, cirurgias plásticas, bronzeamento artificial, musculação, só para citar os mais conhecidos.
A própria indústria da moda e dos cosméticos também entram no mesmo rol de categorias descritas acima, ao considerar que o sujeito vale por aquilo que ele apresenta ser, reforçando no nosso imaginário que a aparência, de fato, virou essência.
A segunda metade do século XX viveu um culto ao corpo e ganhou dimensão social inédita ao entrar na era das massas: industrialização, difusão generalizada das normas e imagens, profissionalização do ideal estético com a abertura de novas carreiras, inflação dos cuidados com o rosto e principalmente o corpo. A mídia, como não poderia deixar de ser, aliada à moda, teve influência sobre os indivíduos, generalizando a paixão pela moda, expandindo o consumo de produtos de beleza e tornando a aparência uma dimensão tão essencial da nossa identidade para um número cada vez mais crescente de homens e mulheres.
A saúde agora está subsumida àquilo que atualmente vêm sendo chamando de "healthism", ou seja, uma ideologia que combina um estilo de vida hedonista junto a uma corpolatria cada vez mais encerrada na aparência. Nesse sentido, o corpo passa a ser mote de higiene cuja impureza se dá através de corpos poluídos e depositários de gordura, colesterol e flacidez, solicitando uma purificação para atender ao apelo da nova moral ética e estética do corpo, para não falar do ideal de pureza digital, ou seja, se antes o corpo era depositário da boa vida e da saúde (no sentido ascético que os gregos davam), agora, a saúde está submetida aos ditames do que a cultura diz que é e o que não é saudável. Se a aparência virou essência, as modificações corporais dão o tom da nova moda do mercado fazendo com que quem não se enquadre nesta categoria, esteja fora do circuito, portanto, faz parte do mundo dos excluídos. Agora, a nova moral nos faz perguntar: "Com que corpo eu vou?".
Quem não consegue alcançar esse modelo ideal, ou tenta sobreviver ao ditame imperioso da aparência, ou sucumbe às novas patologias somáticas. Adicione a isso, o "modismo" das modificações corporais que ganhou forma de modo mais enfático a partir da segunda metade do século XX: cirurgias plásticas; lipoaspiração; piercings, tatuagens que fazem do corpo um espaço de arte (body art); a indústria da moda, cujas roupas (ou até mesmo a falta delas) formam uma espécie de "segunda pele natural" identificando valores estéticos coletivos; rígidas e variadas dietas de emagrecimento; fisiculturismo e diversas modalidades de ginástica; práticas mutilatórias, tais como próteses corporais, stretchin (abertura e alargamento de orifícios em determinadas partes do corpo – língua e orelha, principalmente); cirurgias para redução do estômago; as formas mais comuns de patologias somáticas encarnadas na superfície do corpo ou ainda de drogadição; a cultura do healthism ou bodysm, cuja ideologia e moralidade da saúde e do corpo perfeito, faz com que sejamos escravos da estética; branding (queimar a pele), que faz da superfície do corpo um território, um lugar, uma área fronteiriça entre natureza e cultura, interno e externo, eu e outro, que é o domínio privilegiado das identidades, e tem transformado a relação entre o nosso eu e o mundo como uma espécie de encenação nos mais variados "teatros do corpo", cuja exposição se dá tal qual uma ferida aberta em pleno ato cirúrgico, porém, apenas para ser apreciado como um espetáculo.

Assim, a pele tem atraído a atenção e interesse de diferentes especialistas. Estou me referindo não só a médicos dermatologistas, homeopatas, esteticistas, mas também a fisioterapeutas, higienistas, quiromancistas, polícia científica especializada em identificação digital, cartunistas, publicitários, fotógrafos, especialistas em imagens digitalizadas, para não falar de escritores, poetas, músicos, que vêem na própria pele toda a dimensão da nossa subjetividade, traduzindo sentimentos, emoções e sensações em palavras, ou ainda psiquiatras e analistas que vez ou outra se deparam com as graves somatizações na superfície da pele de seus pacientes.
A pele ainda é o lugar de investimento libidinal, lugar de sedução, reduto de prazer e dor, está submetida à recepção dos estímulos detectados pelo sistema nervoso central, é frágil para uns, adaptativas para outros de acordo com o clima e o tempo de determinada áreas ou região. É a mais perfeita encarnação de um corpo saudável ou doente na moral da estética vigente. Ela pode ainda comunicar, com poucos sinais, o estado de saúde, doença, bem ou mal estar. Empalidecemos quando ficamos surpresos ou ante a uma ameaça, ficamos ruborizados quando nos sentimos envergonhados, nos arrepiamos quando sentimos frio, medo ou estamos excitados. Enfim, a pele comunica-se com o mundo, e este também se comunica com o sujeito através da superfície da pele.
Sendo assim, o eu parece deixar de ser o mínimo denominador comum entre a interioridade e a exterioridade, para tornar-se o máximo denominador comum de uma cultura que tem se submetido a todas as formas de incitação, agora, não mais baseado no discurso, e sim, na "linguagem do silêncio dos corpos".

Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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