sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"A FERIDA DA EXISTÊNCIA NÃO TEM CURA"



Em 1936 a Europa estava em plena ascensão do nazismo. Este movimento fez com que muitos judeus se refugiassem para fugir da morte e dos campos de concentração. Não obstante, a psicanálise já havia se firmado como uma terapêutica para aliviar o sofrimento, as dores e os males da alma e Freud já havia ganhado notoriedade tanto na Europa como nos Estados Unidos.

É nesse mesmo ano que Freud receberá uma carta de uma senhora norte-americana, mãe de um jovem homossexual. Nesta carta desesperada, ela pede ajuda ao psicanalista para tratar das condutas, comportamentos e desejos sexuais do seu filho, apesar de não fazer uso nem do termo “homossexual” nem do termo “desejos sexuais”. Não temos acesso a essa carta. Mas conhecemos a resposta de Freud a esta mãe:

“Eu apreendo de sua carta que seu filho é um homossexual. Estou muito impressionado pelo fato de que a senhora não mencionou este termo nas informações que deu sobre ele. Posso perguntar-lhe por que evitou esta palavra? Homossexualidade, seguramente, não é uma vantagem, mas não é nada de que tenhamos que ter vergonha. Não é vício, degradação e não pode ser classificada como uma doença. Consideramos a homossexualidade como uma variação da função sexual, produzida por uma certa parada no desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram homossexuais (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime e também uma crueldade. [...] Perguntando-me se posso ajudá-la, a senhora pergunta, suponho, se posso abolir a homossexualidade substituindo-a pela heterossexualidade normal. A resposta é: de maneira geral, não podemos prometer isto. Em um certo número de casos, somos bem sucedidos, desenvolvendo os germes das tendências heterossexuais que estão presentes em todo homossexual. Na maioria dos casos isto não é possível. [...] O que a análise pode fazer por seu filho, caminha na linha diferente. Se ele é infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer-lhe harmonia, paz de espírito, plena eficiência, quer ele permaneça homossexual ou mude”.

O que Freud tentou nos ensinar não foi curar a homossexualidade. Em se tratando da sexualidade, o que aprendemos com o metapsicólogo corre em direção contrária, ou seja, não há referentes fixos no tocante à sexualidade, seja ela heterossexual ou homossexual. Não obstante, nossa cultura fez parecer natural haver uma sexualidade normal e uma sexualidade que precisasse ser tratada e curada.

Que sociedade é esta que impõe tamanho sofrimento psíquico para homens e mulheres gays e como tal, o que nós analistas estamos fazendo para aliviar a dor de quem nos pede ajuda em meio a uma sociedade herdeira da moral sexual que Freud tanto nos advertia?

No campo do sofrimento psíquico, há algo mais que pode ser dito: se há sofrimento por parte dos homossexuais, a ponto de alguns buscarem ajuda psicológica para a sua angústia e a sua dor (inerentes ou não à sua sexualidade, tais como falta de amor ou sentimento nos seus relacionamentos, stress, depressão, solidão face à tirania das grandes cidades, ou qualquer outro sintoma), isto se deve a dois grandes movimentos que fazem com que estes sujeitos não se sintam adequados à sociedade em que vivem.

O primeiro movimento refere-se à força repressora e violenta com que ainda tratamos a homossexualidade em nossos dias. Apesar dos avanços conseguidos para se quebrar a barreira do preconceito, ainda tratamos a homossexualidade de forma negativa e pejorativa, a despeito das campanhas contra AIDS, da publicização da violência contra os homossexuais e lésbicas, da maior aceitação da homossexualidade entre nós ou dos avanços legais conseguidos através dos movimentos de cidadania homoerótica.

Como um sujeito homossexual pode se identificar e não insurgir em algum tipo de sofrimento, em nossa sociedade, se esta é eminentemente masculinista, patriarcalista e heterosexista? Em nenhum momento encontramos em nossa sociedade exemplos morais dignos de aceitação e que possam servir de referência para a vida pública ou privada de sujeitos homoeróticos.

A homossexualidade hoje, ainda está escondida sob o véu do preconceito e da discriminação de modo velado. Um exemplo disto é que não há uma música sequer na nossa ou em qualquer outra cultura que fale do amor homossexual, sem ser de forma pejorativa. Também não há nenhuma campanha publicitária de massa nos jornais, revistas ou na televisão em que um casal homossexual masculino ou feminino possa servir para vender um produto de consumo qualquer, salvo aqueles que fazem parte da “cultura de consumo gay”, anunciados em revistas específicas ou em programas de televisão a cabo específicos para a comunidade gay ou lésbica. Não há muitas histórias de amor em livros, filmes ou telenovelas brasileiras feitas em torno do casal homoerótico, sem representá-los de modo pejorativo, ou sem que a tragédia faça parte de suas vidas (O filme “O segredo de Brokeback Mountain”, de 2006, é um deles). Lembremos que até hoje, o amor romântico parece ser herdeiro apenas do casal heterossexual, que por sua vez está baseado no ideal de família e nos padrões de família nuclear burguesa constituída de um pai, uma mãe e filhos. De modo contrário, o submundo do crime ou do vício parece servir perfeitamente como referente da cultura de sujeitos homossexuais, tais como representado em livros de grandes escritores como foi Proust, Gide ou Oscar Wilde.

O adolescente gay, por consequência, não encontra modelos identificatórios com os quais possa servir de espelho no mundo em que vive, e quando encontra, são modelos estereotipados de homens feminilizados, mulheres masculinizadas, marginais, homens de pouco sucesso afetivo, sexual, financeiro ou profissional, muito embora a sociedade conheça (e reconheça) em seu meio, sujeitos com tais características.

Isto gera um segundo movimento, que não é novo, qual seja, a subcultura gay, do gueto e da linguagem camp.

A subcultura camp foi criada ou construída para escapar da sociedade repressora, através de modos e hábitos de comportamentos exagerados, escandalosos e efeminados de certos homossexuais, buscando romper com o preconceito da mesma forma impulsiva com que a sociedade os trata. Para alguns antropólogos e sociólogos, o equivalente no Brasil da cultura camp é a “cultura da fechação” no mundo ou “submundo gay”.

Às vezes, esse é único espelho que o jovem homossexual tem para construir sua identidade, para descrever a si mesmo ou ainda para descrever aquilo que as pessoas esperam que eles devam ser. Não me admira, portanto, que esta seja sede de grande parte dos conflitos de homens e mulheres gays relatados na clínica.

Acredito que muitos dos conflitos intersubjetivos ligados à identidade sexual de homossexuais e lésbicas na clínica refletem a falta desse modelo identificatório hegemônico que possa descrever a pluralidade de suas subjetividades. Esses conflitos ainda podem estar ligados a percepção da “intolerância” de muitos no que se refere à vida privada de gays e lésbicas, aliada à crença de que ainda exista uma normatividade e uma normalidade frente às subjetividades sexuais, sentido este que Freud, não obstante as teorias que criou, lutou para derrubar.

Talvez este tenha sido um dos maiores legados que Freud deixou para a sociedade e seus seguidores: a possibilidade de acreditar na contingência de nossa sexualidade, sem as grades impostas pela prisão identitária fomentada pela nossa cultura.

A contribuição deste cientista que derrubou barreiras e abriu caminho para uma melhor compreensão de nossas subjetividades, é fantástica. Porém, Freud ficaria espantado se soubesse que 100 anos depois, ainda encontramos sujeitos em consultórios que procuram ajuda psicológica referindo-se a sua homossexualidade como queixa, e que alguns profissionais inadvertidamente se deixam seduzir pela tão viva e ainda ativa “moral sexual civilizada”, procurando curar o que não tem cura, pois não se trata de doença, e sim de aflições, angústias, medo, culpa, vergonha, desamparo afetivo e tantos outros sofrimentos psíquicos quanto a maioria das pessoas que procuram o divã de um psicanalista, pois conforme afirma o psicanalista Jurandir Freire Costa “uma vez no divã, somos todos iguais diante da falta, do rochedo da castração, da inveja do pênis, da viscosidade da libido, do real ou da insustentável divisão do não-ser. [...] Aos tolos, a busca do Santo Graal erótico; a nós, a consciência trágica, contida, heróica e dilacerada de que a ferida da existência não tem cura”.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br .

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