sábado, 13 de novembro de 2010

O PESO DA NOSSA EXISTÊNCIA




Um bom filme, não conta só uma boa história. Ele tem a habilidade de nos arrancar do mundo real e nos jogar na fantasia da história que está sendo contada. Nesse sentido, o paradigma de um bom filme pode estar entre uma grande e uma pequena fantasia, um relato de um fato verídico, um exercício de imaginação, um deslocamento de tempo, uma tradução de uma boa idéia, uma megalomania high tech audio-visual, ou a proposição de uma catarse, tal qual experimentada em uma sessão de análise.

De algum modo todo filme, bem como toda análise bem sucedida, é catártica: quando vemos um filme nós rimos, choramos, nos divertimos, sofremos, nos espantamos, tememos, nos aventuramos, amamos, odiamos, etc., juntamente com todos os personagens com quem nos identificamos. Na análise, nós podemos reviver cada um desses sentimentos. Mas os “filmes catárticos”, no sentido que eu quero dar, vão um pouco mais além. Há filmes que ao sairmos do cinema sequer nos lembraremos dele, permanecendo esquecidos em nossa memória. Há outros que por mais que o tempo passe, ele fica reverberando em nossas mentes, como um eco no espaço vazio. São esses tipos de filmes que eu estou denominando de “filmes catárticos”, onde funcionam como uma sessão de análise. Eles nos incomodam, nos inquietam, nos comovem, nos faz pensar, rir ou chorar.

Há vários filmes que se enquadram nessa definição. Entre eles está o recém “21 Gramas” (Estados Unidos, 2004), segundo filme dirigido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu, que concorre ao Oscar de 2004 nas categorias de melhor atriz e melhor ator coadjuvante. Chega a estranhar como a academia não o indicou para melhor filme, mas deixemos isso de lado. “21 Gramas” é catarse pura.

O termo é originário da palavra grega e significa purificação, purgação e foi usado por Aristóteles para designar o efeito produzido no espectador durante a exibição da tragédia grega. Breuer e, posteriormente, Freud fizeram uso do termo para exprimir aquilo que, na psicanálise chamamos de “ab-reação”, ou seja, uma descarga emocional através da fala, que possibilita que o indivíduo liberte o afeto ligado ao acontecimento traumático, de modo a não mais vivê-lo como patogênico.

Dito de outro modo e a grosso modo, é o efeito conseguido através da técnica psicanalítica quando libertamos o afeto do seu ideal patogênico, revivendo no setting analítico o que provocou o trauma, ou o motivo que provocou o sintoma que levou o paciente a procurar uma análise. Mas o que tudo isso tem a ver com um filme que foi denominado de “catártico”? “21 Gramas” é um filme que faz pensar sobre os desígnios da vida e da morte. Nos coloca de frente com essa realidade, essa dura certeza que é a nossa finitude diante da vida. Ele nos solapa direto para o nosso inescapável desamparo diante do mundo, dos outros e de nós mesmos. O desamparo faz parte da nossa condição humana desde o nosso nascimento até a morte, mas ele também pode ser compreendido a partir de uma certa leitura de mundo que fazemos dele, sendo, portanto, criticável. De acordo com um de seus personagens, 21 gramas é o peso que se perde no exato momento da morte, mas também é o peso que devemos carregar por toda uma vida. E o que mais pesa 21 gramas? Vinte e um gramas é o peso de cinco moedas de cinco centavos, ou de uma barra de chocolate, ou ainda o peso de um beija-flor. As perguntas ao final do filme são claras: quanto pesa a sua vida? Quantas vidas nós podemos viver? O que se leva e o que se deixa quando morre? O quanto se perde? O quanto se ganha? E para cada um de nós, quanto pesa vinte e um gramas? É o peso da nossa existência ou seria, talvez, o peso da alma humana quando nos abandona?

O filme retrata a história de vida de três pessoas, cujos destinos são cruzados por um acidente de carro. Paul (Sean Pean) é um matemático e fumante inveterado que está na fila de transplantes de coração à beira da morte, e vive um dilema conjugal quando sua mulher espera engravidar dele por inseminação artificial. Cristina (Naomi Watts) é uma ex-viciada em drogas, que encontra no casamento e nas duas filhas, o segredo para uma vida mais digna e mais feliz. E Jack Jordan (Benício Del Toro) e sua mulher Marianne (Melina Leo), lutam para criar os filhos quando ele, após várias idas e vindas da prisão, encontra na fé religiosa o conforto para uma vida mais justa, servindo à Deus e à sua congregação.

Ora, acontece que “aquilo que Deus dá com uma mão, ele tira com a outra”. A fé de Jack, o amor de Cristina e a vida de Paul serão colocados à prova, fazendo com que cada um deles chegue ao seu limite.

Qual é o sentido da vida para nós? Aliás, há um sentido? “Se Deus consegue saber até quando um fio do seu cabelo vai cair de sua cabeça”, diz o personagem de Benício Del Toto, por que este mesmo Deus tem que nos colocar à prova? Acontece que se Jack tivesse lido Freud, talvez ele desconfiasse das promessas ilusórias que a religião pode nos dar, encobrindo o quanto nós mesmos somos responsáveis pelo nosso futuro e pelos nossos atos. Por mais que Freud tenha afirmado que “não somos senhores nem mesmo dentro da nossa própria casa”, quando trouxe à tona a idéia do inconsciente, é preciso aprender que na vida, somos todos responsáveis, por nós, e pelos outros. Daí o mandamento reativo referido por Freud: “ama o teu próximo como a ti mesmo”.

Claro que entre escolher um mundo onde não existe nada após a morte e a crença em Deus, é preferível esta última, visto que a religião orienta nossas escolhas morais e é necessária a manutenção do laço social. É porque somos tão voltados para o culto à onipotência do nosso próprio eu (narcisismo egóico) que nos sentimos tão desamparados diante da ideia de morte, e para aqueles que acreditam que a morte pode ser um passo para um outro mundo infinitamente melhor, é que ela deixa de ser vivida como desamparo e passa a ser vivida como esperança, tal como encontramos nas experiências de filosofias asiáticas, como o budismo.

No espetáculo da vida, não há desculpas: por mais que sejamos movidos por uma força que nos faça acordar todas as manhãs e sair para trabalhar, estudar, alimentar-se, fazer sexo, planejar nosso futuro, apaixonar-se, pagar as constas, construir novos ideais, etc., a qual Freud denominou de pulsão de vida, é a pulsão de morte que está o tempo todo batendo à nossa porta para nos lembrar da nossa fragilidade diante da insustentável dureza de se viver em um mundo convulsionado pela violência, desemprego, guerras, assassinatos, falta de dinheiro, doenças, fome, crises familiares, mágoas, culpas, preconceitos, drogas, etc.

Por isso, no meu entender, Jack não suportar o peso de se viver com a culpa pelas mortes que provocou. E se há culpa não recalcada, me parece ser insuportável se viver dignamente com tamanho peso na consciência, ainda mais quando este peso está estampado nos olhos dos seus próprios filhos.

De igual modo, é o que ocorre com Cristina, quando não compreende como o pai pode ainda viver tão bem quando ele perdera quem mais amara nesse mundo – sua esposa, e ainda assim poder sorrir, conversar, levar a vida adiante. “A vida não continua”, diz Cristina para o seu pai. E não tem razão de continuar mesmo, se perdemos quem amamos.

Acontece que para pessoas como Cristina, o sentido da vida se restringe às pessoas a quem amava e devotou seu tempo até aquele instante. Sem elas, a vida não faz mais sentido, pois sem amor, estamos amputados da nossa melhor parte. Nem Jack, nem Cristina são capazes de enxergar o óbvio, até mesmo quando a fé daquele e o amor por si desta são colocados à prova. Cristina, por um lado, e Jack, por outro, se revoltam contra Deus e contra o mundo, mas é a mulher dele quem melhor traduz de forma insofismável a tragicidade que suas vidas: “A vida tem de continuar, com ou sem Deus”. Ela parece querer dizer: “a vida tem que continuar, com ou sem amor”. Ou simplesmente, “a vida tem que continuar”.

É desse modo também que Paul se sente em dívida com aquele que lhe doou o coração. Dívida esta que só pode ser paga com amor a quem sobreviveu a toda uma tragédia que a vida fez o favor de fazê-lo experienciar. Mas se uma dívida humana só pode ser paga com um amor incondicional, o peso de uma vida culposa ou desesperada pelo amor de quem já partiu, só pode ser diminuído com a vingança e com a morte de quem o provocou.

Nesse sentido, “21 Gramas” se sustenta como um filme que trata da vida e da morte, do amor e do ódio, da solidariedade e da vingança, várias faces da mesma moeda, marcados eminentemente pelo trágico. Se sairmos do cinema nos questionando sobre todo esse peso, além de outros que cada um de nós podemos, por ventura, carregar, é porque seu papel foi cumprido à risca, na visão do diretor. Levamos as nossas dúvidas e incertezas para casa onde só um filme como este poder fazer aflorar, não importa se saiamos do cinema com um peso nos ombros semelhante ao de uma barra de chocolate ou de um beija-flor. É porque somos humanos, que podemos nos angustiar com a nossa fragilidade diante da morte.

A filósofa Hannah Arendt diz que uma das possibilidades de superar essa condição de mortalidade do ser humano, de transcendê-la e negociar com ela é a possibilidade de criação e de trabalhos coletivos, de criar algo novo, de dar início ao que antes não existia, pois só existimos na coletividade e na pluralidade. Ser homem é viver entre outros homens nos espaços públicos, criar alguma intervenção política no espaço público e existir como cidadão, pois os homens, diz Arendt, embora devam morrer, eles não nascem para morrer, mas para recomeçar.

Viver é ter a certeza disso, e poder está aberto para o novo. Mas viver é também ter uma outra grande certeza, qual seja, “a consciência irrestrita, trágica e dilacera de que a ferida da existência, não tem cura”.


 
Publicado na Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro-RJ, v. 27, n. 342, p. 35-37, 2005.



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