sábado, 13 de novembro de 2010

BENT E A ABSTRATA NUDEZ DE SER UNICAMENTE HUMANO




Durante o período que marcou a Segunda Guerra Mundial, muitos foram os relatos históricos que chegaram até nós sobre as atrocidades cometidas contra os judeus devido a obstinação de Adolf Hitler em promover uma limpeza étnica, transformando o império germânico numa raça pura, única e superior.

Para tanto, como se sabe, Hitler mandou milhões de homens e mulheres para os campos de concentração, condenando-os a sobreviverem em condições desumanas, a trabalhos forçados, quando não, ao extermínio nas câmaras de gás.

Muito se sabe sobre o que aconteceu aos judeus durante a Segunda Guerra através dos sobreviventes do holocausto, mas nos campos de concentração, não foram apenas os judeus que tiveram sua história tristemente marcada pela intolerância. Registros mostram que além deles, ciganos, presos políticos, imigrantes, intelectuais e homossexuais foram perseguidos, torturados e mortos por agentes da gestapo, em plena ascensão do nazismo.

No que compete a este último grupo, não há estatísticas oficiais de quantos homossexuais foram exterminados nos campos de concentração - os arquivos também foram destruídos por soldados da SS, polícia nazista, mas estima-se que muito mais de 50.000 pessoas tenham sido condenadas por "homossexualismo" e morrido das formas mais perversas.

Uma boa oportunidade para ver parte dessa história ser contada é o filme “Bent” cujo roteiro de Martin Sherman foi baseado na peça homônima escrita por ele em 1978 e premiada com o Royal Court Theatre em Londres no ano seguinte. A peça já foi encenada em mais de 50 países, e por onde passa, tem ganhado prêmios por sua montagem tal como já aconteceu no Brasil.

Quando a peça foi estreada, não havia praticamente nenhuma pesquisa acadêmica nem informação pública sobre a perseguição aos homossexuais durante a Segunda Guerra Mundial pelos nazistas, nem muito menos sobre a destruição do “Institut für Sexualwissenschaft” (Instituto para o Estudo da Sexualidade) em Berlim.

O filme é dirigido por Sean Mathias e tendo nos personagens principais os atores Clive Owen (Max), Lothaire Bluteau (Horst) e Brian Webber (Rudy), excelente em seus personagens, cujo título refere-se ao termo que em alguns países da Europa se utiliza para referir-se aos homossexuais.

“Bent” conta a história de um amor entre dois homens em pleno campo de concentração. A história se passa no início da década de 30, em plena ascensão do nazismo e do Terceiro Reich, onde começa uma perseguição contra "o amor que não ousava dizer seu nome", para relembrar a expressão do escritor inglês Oscar Wilde. Na história, a dor e a humilhação de ser homossexual, a perseguição, o desespero, as torturas e a morte nos campos de concentração estão todos lá, postos a nú para qualquer um ver. Mas na história de “Bent” há também momentos de puro encanto, beleza, magia, paixão, ternura e amor quando homens lutam para defender seus sentimentos, não se rendendo as atrocidades realizadas pelo nazismo.

A história de “Bent” pode ser dividida em duas partes.

Na primeira, somos introduzidos na Berlin dos anos 30, através de um jovem casal, Rudy e Max, que sobrevivem indiferentes às atrocidades cometidas pelos soldados da gestapo contra os judeus, quando suas vidas são postas à prova.

Na noite em que Max decide levar para casa um soldado nazista que conhecera num famoso cabaré frequentado pela comunidade gay de Berlim, Hitler decide acabar com todos os judeus e "pervertidos sexuais" da cidade, incluindo aqueles que tinham ligações com altas patentes da SS, sobretudo, os frequentadores do cabaré de Greta (Mick Jagger), na noite em que ficou conhecida como sendo a "Noite dos Cristais Roxos". Berlim vira um caos, e os soldados vão até a casa de Max e Rudy, em busca do soldado alemão, matam-no, mas deixam escapar o jovem casal, dando início a uma perseguição e fuga sem precedentes.

Tempos depois, eles são presos e levados para o campo de concentração de Dachau. Na viagem, após o bárbaro assassinato de Rudy, Max conhece Horst, um jovem que também está sendo enviado ao campo de concentração, condenado por "homossexualismo" após assinar um panfleto em defesa dos direitos dos homossexuais, e com quem Max desenvolverá uma amizade e, posteriormente, virá a se apaixonar.

Obrigados a carregarem pedras de um lado para o outro, sem poderem se falar, sem poderem se olhar, sem poderem se tocar, sob a ameaça de serem sumariamente assassinados, eles vão descobrir o amor um pelo outro.

De modo geral, sabemos muito pouco sobre o que aconteceu aos homossexuais dentro dos campos de concentração durante o nazismo. “Bent” nos dá uma pequena amostra do que foi a barbárie desse sistema de governo, do horror da intolerância, da destituição do status de sujeito e cidadão, da banalização da vida humana em tempos em que o Brasil amarga o peso de ter aumentado em 30% o número de assassinatos a homossexuais durante o ano de 2007, segundo estatísticas oficiais divulgadas pelo Grupo Gay da Bahia e publicada pelo Jornal Folha de São Paulo.

“Bent” também é o que restou de uma triste história para ser contada: uma história de luta e de sofrimento, mas também uma história de resistência, de quem pôs a prova os limites humanos para sobreviver e viver a todo custo.

É importante que se relembre que, de acordo com a filósofa Hannah Arendt, que se debruçou exaustivamente ao analisar os sistemas totalitários, a genealogia do nazismo operava de modo a transformar a natureza humana em algo abjeto dentro dos campos de concentração. Havia lá uma fabricação de uma espécie humana semelhante aos outros animais. Produziam-se cadáveres vivos, através da aniquilação jurídica da pessoa moral do indivíduo e da identidade pessoal, eliminando sua espontaneidade, dando lugar a uma sociedade de moribundos, a uma sociedade de mortos-vivos (também chamado de muçulmanos) ou de indivíduos privados totalmente de sua vida e até mesmo de sua morte, categorias essas que foram esvaziadas de sentido.

É preciso ainda que se diga que nesse tipo de sistema, os indivíduos foram reduzidos à mera natureza humana, ao simples fato biológico, à vida nua, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben, ou até mesmo àquilo que Hannah Arendt descrevia como sendo "a abstrata nudez de ser unicamente humano".

Bem entendido, "vida nua" aqui é denominada aquela vida destituída de qualquer valor, é a vida que pode ser matável sem que ninguém seja responsável pela sua morte; é uma vida na qual um indivíduo ou grupo de indivíduo pode ser exterminado, banido da face da terra sem que ninguém sofra punição; é a completa destituição do estatuto de sujeito de direito e de dever, na qual a pessoa é despida de sua maior condição, qual seja, a de ser exatamente um indivíduo e daquilo que o distingue do resto dos animais: a sua condição de ser unicamente um “ser-humano”.

Neste caso, o horror e o grito mudo, desesperado e pungente de Max frente à morte do seu companheiro é a cena exata que traduz o horror do nazismo. Naquele mundo, o horror pode existir, mas ele tem de permanecer calado, vedado, não pode ser mostrado, exibido, ouvido. O grito, assim como o horror, tem de ser mudo!

“Bent” também serve para nos mostrar que o horror do nazismo e a violência cometida contra esse e outros grupos ainda não está extinta, nem é apenas uma página virada da nossa história. Ela permanece viva nas estatísticas oficiais e oficiosas que nos mostram todo o horror de um grupo que ainda não aprendeu a ser respeitado no que se refere a sua dignidade humana. Nós reconhecemos a violência, mas não estamos impassíveis diante dela!

Entre os pontos altos do filme, destaco três cenas de grande impacto e que representa toda a abjeção que os prisioneiros dos campos de concentração durante a Segunda Guerra sofreram:

A primeira é aquela em que Max descreve o que precisou fazer para conquistar a “estrela amarela” no seu uniforme. A estrela amarela designava os judeus nos campos de concentração e o “triângulo rosa” designava os homossexuais. Ser portador de um triângulo rosa significava estar no mais baixo escalão dos prisioneiros dos campos de concentração. Os homossexuais naquela época eram considerados como lixo, a escória da humanidade, podendo ser humilhados e torturados tanto por soldados quanto por seus companheiros prisioneiros. Pois bem, para provar que Max não era homossexual, os oficias obrigam-no a fazer sexo com o cadáver de uma menina de treze anos, morta pelos oficiais da SS. "Não me toque!", grita Max para Horst ao querer confortá-lo, com nojo de si mesmo. "Eu sou podre!", continua ele.

A segunda é a antológica cena de amor e sexo entre Max e Horst que faz com que “Bent” seja reconhecida no teatro e no cinema. É uma cena de um lirismo ímpar e de uma sensibilidade esmerada nunca antes vista. De igual modo é a cena em que Max tenta aquecer Hosrt em pleno inverno alemão.

Finalmente, a cena mais forte do filme, de grande apelo dramático, estético e carga emocional, na qual Max pela primeira vez abraça Horst em meio a um choro e um grito de horror, que pouco a pouco vai dando vazão a um clamor no peito de um homem que reconhece o seu sofrimento e o seu amor diante da bestialidade do nazismo: “Assim eu posso ficar abraçando você, assim eles vão ter que deixar eu te abraçar”. E reconhece, absorto em suas lágrimas: “É a primeira vez que eu tenho você em meus braços (...)”. Finalmente, o reconhecimento do sentimento nascido em um mundo onde o amor era o último dos sentimentos que poderia brotar naquele solo: “Sabe de uma coisa, eu acho que eu amo você. Não conta para ninguém, mas eu também amei um rapaz, mas não lembro mais o nome dele”. Seguido de uma pergunta que levamos conosco para casa, propositadamente para nos fazer pensar acerca da natureza humana: “Eu amo você, e o que há de errado nisso?".

É lirismo puro! É dor! É sofrimento diante da abjeta crueldade do nazismo. É realidade nua e crua de um povo que sofreu o horror por ter seu desejo esmagado diante da brutalidade e loucura de um homem que inflamou multidões com seu discurso maníaco. Mas também é o mais puro sentimento da uma alma de um povo que, assim como os judeus, sofreram todo o horror da perseguição dos nazistas e continuou sobrevivendo à duras custas, mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial, pois os homossexuais presos nos campos de concentração continuaram a serem tratados como criminosos e pessoas de menor valor até 1968 na Alemanha Oriental, e até 1969, na Alemanha Ocidental.

“Bent” é uma ótima oportunidade para aprender sobre a nossa "natureza humana". É um momento para olharmos para dentro de nós mesmos e vermos o que fomos capazes de fazer com seres demasiadamente humanos. É, na verdade, um exercício de introspecção pouco visto no teatro ou no cinema.

Todo aquele que tiver um mínimo de sensibilidade e comprometimento ético para com o ser humano, está intimado a conhecer essa história que se não nos fizer pensar, ao menos serve de alerta para que o horror do nazismo jamais volte a acontecer.


Publicado na Revista Atlaspsico, Curitiba-PR, N. 15, Agosto de 2009, p. 22-25.

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