terça-feira, 26 de julho de 2011

A contingência da solidariedade: Rorty & Bauman




Segundo Lynn Hunt, autora de “A invenção dos Direitos Humanos”, a igualdade é uma ideia relativamente nova na história da humanidade. Ela nasceu juntamente com os ideais revolucionários da burguesia francesa que trouxe como consequência a “invenção dos direitos humanos”. De acordo com a autora, o surgimento do regime capitalista no século XVIII criou novas exigências econômicas e políticas, assinalando que a ideia de igualdade não era nem solução nem conclusão para um novo modo de estilo de vida, pois na medida em que os cidadãos abandonaram o horizonte de uma “vida tradicional” e se tornaram capazes de enxergar e a sofrer com a dor e a humilhação do seu semelhante, foi necessário um movimento para que essas desigualdades não fossem recrudescidas. É justamente nesse mesmo momento histórico que a solidariedade entra em cena, malgrado o seu esquecimento por parte dos defensores dos Direitos Humanos.

Da Revolução Francesa até os dias de hoje, muito se tem escrito acerca dos ideais humanitários na defesa e primazia dos Direitos Humanos, mas pouco se tem escrito sobre a sua relação com o sentido de solidariedade.

Não obstante, vários são os autores que se debruçaram sobre este tema.

Para o filósofo Richard Rorty, o sentimento de solidariedade depende necessariamente das semelhanças e das diferenças que surgem em função de um vocabulário de um determinado grupo, ou seja, o que Rorty entende por desejo de solidariedade não está única e exclusivamente na concepção mais banal do amor ao próximo, nos modelos propostos pela “caritas cristã” ou nos ideários humanistas propostos por Rousseau mas, sobretudo, no reconhecimento da ideia de pertencimento a determinado grupo ou comunidade de tradição à qual estaríamos atados por vocabulários, crenças e laços de linguagem”.


Através dos atos de linguagem, seríamos capazes de inventar diversos modelos de convivência com o outro através daquilo que Rorty define como “jogos de linguagem”, fazendo uso da expressão de Wittgenstein. A linguagem, assim concebida, possibilita uma vida em contingência. Viver em contingência para Rorty significa a possibilidade de gerenciar nossa própria vida de modo a produzir novas formas para nos definir e definir o sujeito que me é próximo, através de vocabulários que podem ou não prescrever a marca hegemônica do preconceito, daí o reconhecimento que pertenceríamos a determinados grupos ou comunidades de tradição.

Quanto maior o sentimento de solidariedade humana, segundo Rorty, maior a possibilidade de alcançarmos um progresso moral, de modo a admitir a dor e a humilhação do Outro, propondo a inclusão do “diferente” no nosso grupo social, aumentando os nossos acordos intersubjetivos e a referência do nós.


Ao retomar o pensamento de Rorty, Zigmunt Bauman afirma que a linguagem da necessidade, da certeza e da verdade absoluta não pode senão formular a humilhação do outro, do diferente, daquele que não satisfaz os padrões ora então vigentes. Neste caso, para o autor, a contingência da linguagem pode criar a possibilidade de ser gentil e evitar a humilhação dos outros, favorecendo, assim, uma cultura da tolerância. Ser gentil e tolerante são símbolos do comportamento e da linguagem humana, predispondo os homens à construção da solidariedade.

Neste sentido a solidariedade seria uma chance dada à tolerância construída na pós-modernidade, que por sua vez, é uma chance da modernidade. A solidariedade, para Bauman, é uma chance em terceiro grau. Isto significa que “a solidariedade não pode derivar sua confiança de nada sequer remotamente sólido e, portanto, confortador como as estruturas sociais, as leis da história ou o destino das nações e raças, de que os projetos modernos extraíram seu otimismo, autoconfiança e determinação”, afirma Bauman em seu livro “Modernidade e Ambivalência”.

Como resultado do medo e sob a perspectiva de “ser gentil”, a única saída possível, segundo Bauman, seria evitar a humilhação do outro, considerá-lo no que ele tem de mais de singular e específico, respeitar as suas diferenças para considerá-lo na sua alteridade. Ser diferente, então, resignaria o nosso dever para com o outro, e deveria nos forçar a respeitá-lo para que possamos conviver em harmonia. Seria este o sentido dado por Rorty no seu desejo de solidariedade, ou seja, o respeito pelas nossas diferenças, para que evitássemos a dor e a humilhação do outro. 

Poderíamos pensar, então, que para Bauman, a solidariedade seria uma forma de agrupamento de sujeitos livres que compartilham de “sentimentos” e “ações” coletivas unidos através de um sentimento de pertencimento coletivo e não através de uma política identitária, isto porque uma política identitária e a reivindicação de direitos, tais como a política de cotas para negros, o movimento de cidadania de gays e lésbicas que batalham pelo direito à união civil, ou até mesmo o movimento feminista, não nos dão o sentido exato de um agrupamento de sujeitos e de indivíduos compartilhando uma mesma comunidade, pelo contrário, ele particulariza e individualiza os sujeitos de um dado grupo.

Um agrupamento de sujeitos livres em uma mesma comunidade, apesar de poder ser compreendido como um horizonte de ideais possíveis, mas sem serem utópicos, significa reconhecer as diferenças desses grupos e considerá-los naquilo que os particularizam enquanto grupo, ou dito de outro modo, reconhecimento de sua cidadania e reconhecimento enquanto sujeitos de direito.

Aqui entra em questão uma outra ideia defendida por Bauman, qual seja, a ideia de liberdade. Só uma sociedade livre pode propor que as diferenças hierárquicas não imponham um sentido de valor entre os hierarquizados, muito embora, este valor por si mesmo já esteja implícito na ideia de hierarquia social tornando as sociedades contemporâneas tão segmentárias, transformando os indivíduos que fazem parte dela em dois novos grupos: “os incluídos” e os “excluídos”. 

Mas como Bauman nos lembra, o indivíduo livre, longe de ser uma condição universal da humanidade, é uma criação histórica e social, e como tal, a liberdade do indivíduo não pode ser encarada unicamente como uma physis, no sentido grego da palavra, tal como nos lembra Hannah Arendt quando se refere à igualdade. Pelo contrário: ela deve ser entendida como uma qualidade inerente a todo o ser humano, ou melhor, uma condição universalmente humana das sociedades modernas e capitalistas. Mais do que isso: a liberdade deve ser uma condição necessária à integração social, que mantém os indivíduos unidos, reconhecendo-os como um grupo humano que compartilha dos mesmos direitos e deveres, sonhos, desejos, crenças, valores, oportunidades, entre outros.

Quando ampliamos o sentido de “reconhecimento” entre os humanos, aumentamos a nossa tolerância, ampliamos a quantidade e a qualidade de horizontes possíveis passando então, a construir um outro sentido, qual seja, o sentido de tolerância mútua na qual afirma “se eu te tolero, tu me toleras e me reconheces na minha singularidade”. 

Isto posto, para os problemas relacionados à queixa do diferente e para o sentido de intolerância com determinadas comunidades e grupos, Bauman responde com o “sentimento de tolerância mútua”, no reconhecimento e aceitação das nossas diferenças para alcançarmos um ideal de igualdade: um ideal possível, talvez, fosse o ideal de humanidade que nos manteria unidos através de um destino comum cuja humanidade precisa aprender a valorizar: a solidariedade humana. 

Para Bauman, é pelo direito do Outro que o meu direito se impõe, e neste caso, ser responsável pelo Outro também significa ser um pouco responsável por si mesmo. Neste sentido, para o autor, a solidariedade do contingente está baseada no silêncio, ou seja, ao procurar evitar fazer certas perguntas e buscar certas perguntas, ela se satisfaz na sua própria contingência, recebendo a sua devida importância quando a linguagem do isolamento, da discriminação e da humilhação sai de uso. 

Portanto, para alcançarmos uma sociedade liberal ideal, deveríamos aprender a construir novos laços discursivos, fazendo da solidariedade um “desejo de solidariedade” no qual reconheceríamos nos outros, um pouco (senão muito) de nós mesmos, aprendendo a ser tolerante com este Outro que nos é familiar, que nos parece semelhante.

Preferir a solidariedade é preferir julgamentos éticos juntamente com a ideia de contingência de nossas crenças, lembrando sempre que somos organismos humanos que um dia criaram a ideia de que existe um sujeito moral que delibera, age e é responsável por suas ações. Nenhuma outra imagem nos pareceu mais feliz e bem sucedida para preservar os valores que tanto necessitamos para manter o nosso ideal de solidariedade e humanidade, ou nas palavras de Rorty, uma sociedade liberal ideal.

Para alcançar a sociedade liberal ideal, na qual a solidariedade para com quem nos é próximo seja uma verdade universal, é preciso quebrar a dicotomia imperativa diferença/igualdade, tolerância/intolerância de modo a não fomentarmos o desrespeito, a humilhação, o preconceito e muito menos a violência para com este Outro.

É na compreensão de um ser humano como um “ser solidário”, ou seja, é na compreensão de que o sofrimento e a dor que eu infrinjo ao outro podem ser a minha dor, ou ainda é na compreensão do outro como sendo “um de nós” que eu posso me colocar na posição de quem sofre para descrever a crueldade como aquilo que de pior podemos fazer a um ser humano e, portanto, posso imaginar um mundo possível de ideais, um mundo construído a partir de uma comunidade solidária e livre, enfim, uma sociedade liberal ideal, nos moldes como propõe o filósofo Richard Rorty.






Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Imagem e esquema corporal



A expressãoimagem do corpo” é usada mais frequentemente para fazer referência à aparência física sobre os distúrbios de comportamentos alimentares ou a deficiência física. Ela pertence ao mesmo tempo à linguagem da neurologia, da psiquiatria e da psicanálise e adquiri significados diferentes segundo a época, a disciplina ou os pressupostos teóricos dos diversos especialistas que a empregaram ou a empregam.
Para Paul Schilder a imagem corporal é uma “figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós” cuja representação é dada através de várias sensações advindas da superfície do corpo, dos músculos, das vísceras, etc. Por outro lado, ele define esquema corporal conforme a percepção da postura do corpo, ou seja, uma imagem tridimensional que todos nós temos de nós mesmos. Toda a construção da imagem e do esquema corporal, para Schilder, está baseada na percepção do corpo como uma unidade. Ele, portanto, faz uso dos termos como se fossem sinônimos.
Em um determinado momento, Schilder chega a afirmar que a imagem corporal pode se encolher ou se expandir, e como tal, podemos anexar objetos externos à imagem do nosso corpo. “Quando tocamos um objeto com a extremidade de uma vareta, a sensação é percebida na ponta da vareta. Esta se torna, realmente, parte da imagem corporal”. Até mesmo uma peça de roupa, pode mudar a imagem que temos do nosso corpo! Schilder, portanto, confunde imagem com esquema corporal ao afirmar que a imagem do corpo pode incorporar objetos. Mas uma coisa é a construção da imagem do corpo em nossas mentes, outra é como os objetos externos são incorporados como umacessório” ao nosso corpo para que ele faça parte de nosso esquema corporal, tal qual um objeto externo a ele.
Apesar de seus estudos se darem no âmbito das lesões neurológicas, Schilder não avança na discussão quando deixa de abordar a questão pela via do mental versus físico a exemplo de outros autores.
Para a fenomenologia, o corpo é um objeto intencional e consciente, logo, a imagem do corpo é uma imagem ou representação consciente, abstrata e desintegrada que se diferencia do resto do ambiente. Por outro lado, o esquema corporal é definido como um conjunto de sensações proprioceptivas que fornecem ao organismo sua posição gravitacional no ambiente e não apenas o seu modelo postural, no qual, através dos órgãos dos sentidos, o corpo estaria apto a agir e reagir aos estímulos do ambiente.
O primeiro necessita de um fato mental com intencionalidade - pois está sempre se referindo a um outro que lhe é exterior; de uma privacidade - pois é constantemente solicitada a representar à sua própria existência e o seu próprioeu”; por fim, necessita de uma representacionalidade – que pressupõe um mínimo de competência lingüística do sujeito, ou dito de outro modo, a imagem do corpo é linguisticamente organizada de modo reflexivo ou pré-reflexivo, consciente ou inconsciente, afirma o psicanalisa Jurandir Freire Costa.
O esquema corporal, por outro lado, nem é uma compreensão perceptiva, nem cognitiva, nem emocional, ele se distingue da imagem do corpo, pois ele é uma performance inconsciente sem uma intencionalidade. Nessa performance, o corpo adquire uma organização ou estilo em relação ao ambiente podendo incorporar objetos externos a ele. O esquema corporal é a forma como o corpo experiencia o ambiente em que se encontra. Ele envolve um conjunto de capacidades motoras, habilidades e hábitos que capacita os movimentos e a postura do corpo no eixo gravitacional, e como tal é um sistema de funções motora e postural que opera em um nível inferior da intencionalidade auto-referente, muito embora essas funções possam ter uma atividade intencional.
Para experienciar o mundo, o corpo precisa agir, e para que o corpo possa agir no mundo ele necessita de uma intencionalidade e um mínimo de competência linguística para poder se representar nesse mundo.
Vários são os exemplos que podemos usar para ilustrar esse fato. O mais comum refere-se à vareta que um deficiente visual usa para caminhar – o seu corpo não se resume apenas a seus membros, mas prolonga-se até a última ponta da vareta que ele usa para construir mentalmente o caminho a percorrer. Do mesmo modo, o corpo do piloto de um avião não se resume à sua matéria corporal, mas sim a toda aeronave que ele pilota. Por extensão, um exímio digitador ou pianista tem a ponta de seus dedos prolongados pelo teclado ou do computador ou do piano, praticamente incorporando esses objetos ao seu esquema corporal. É ao esquema corporal que podemos anexar objetos externos ao nosso corpo e não à nossa imagem corporal.
Esquema e imagem corporal, portanto, são formas fenomênicas do corpo experienciar o mundo que o cerca e participam da constituição subjetiva do nosso eu (self), através de uma ação sobre o mundo (intencionalidade) e de uma competência linguística (descrições narrativas de si). Com o aporte fenomenológico, unido ao conhecimento neurológico, podemos entender melhor determinados distúrbios da identidade pessoal e da imagem corporal.
A possibilidade de usamos as ferramentas do conhecimento neurológico e da fenomenologia da percepção, tais como descrevemos acima, aliado ao nosso conhecimento das teorias da subjetividade e das descrições narrativas de si, seja um caminho que se abre notadamente para o tratamento de pacientes com distúrbios neurológicos ou com distúrbios de imagem corporal.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

O silêncio para Lacan, Dolto e Aulagnier

Representado eminentemente a partir das contribuições de Jacques Lacan, o silêncio vai ser compreendido sobre dois eixos teóricos, a palavra plena e a palavra vazia e o binômio silere e tacere. Além de Lacan, pretende-se enfatizar também as contribuições de Piera Aulagnier e a questão do segredo na psicanálise, e Françoise Dolto e o silêncio como resposta da solidão.
Para Lacan, a palavra é plena na medida em que realiza a verdade do sujeito; em oposição, a palavra é vazia em relação àquilo que tem de fazer no aqui e agora com seu analista, em que o sujeito se perde nas maquinações do sistema de linguagem a que está subsumido, no labirinto dos sistemas de referência que lhe dá o estado cultural do qual faz parte, em suma, é através desses dois paradoxos que, segundo afirma Lacan, dá-se uma série de desdobramentos de realização da palavra. Mas insiste: é na medida em que a palavra é a mais plena no discurso do sujeito que o analista pode mais intervir. Do contrário, quanto mais o discurso é vazio, o analista tende a buscar algo para além do seu discurso, além daquilo que o sujeito tem a realizar, mas ainda não realizou.
Quanto ao segundo eixo teórico, Lacan proporá o paradoxo do silêncio original ao silêncio produzido pela situação do calar-se: sileo e taceo.
De acordo com Jacques-Alain Miller Silet em latim é a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo “silere”, que pode ser traduzido como a atividade de “permanecer em silêncio”, no sentido de um verbo ativo. Para ele, quando se diz “calar-se”, imaginamos que alguém nos faz calar, porém, trata-se de uma atividade de guardar silêncio. Por conseguinte, “taceo” seria o silêncio da palavra não-dita, o calar-se, o silenciar-se ou ser silenciado. Sileo é um silêncio fundante, estruturante e sugestivo da ausência essencial da palavra, ou dito de outro modo, o buraco, o vazio da significação. Segundo Lacan, “sileo não é taceo. O ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem apesar de que a essência do sujeito culmine nesse ato; se exerce a sombra de sua liberdade, o calar-se permanece carregado de um enigma por ter passado tanto tempo na presença do mundo animal ”.
Com isso, Lacan postula que haveria, entre tantos, dois tipos de silêncio: um silêncio que é, em sua forma original, o nada a dizer, o calar-se, ressaltando que a palavra guarda em si mesma o vazio do silêncio. O sileo é o nada dizer, é permanecer de boca fechada ressaltando os poderes e o valor da palavra diante de um discurso que não se apresenta. O analista põe-se sempre a falar do silêncio do seu analisando posto que, quando fala, fala ou deveria falar a partir do silêncio daquele. Há, portanto, afinidades diante do silêncio e do gozo, satisfação dita inconsciente, satisfação esta da qual não se sabe absolutamente nada. Aqui há uma condição fundante do sujeito, a do “fala-a-ser”. Existe, porém, de acordo com Jacques-Alain Miller, o gozo de não falar, o taceo. Se um discurso dirigido a um Outro que permanece em silêncio, encontra a si mesmo, então a experiência do calar-se, do taceo, diz de uma outra condição, qual seja, a de um “falta-a-ser”.
Para Françoise Dolto o silêncio está muito próximo do sentimento de solidão. Para a autora, a solidão é o lugar da comunhão e da construção inacabada e frágil da vida – logo, suscita o desejo de comunhão com o transcendente e da própria vida interior. Na tradição cristã, há a consciência que o discurso sobre a Trindade nos obriga a trocar as palavras por balbucios, ou seja, para a metapsicóloga, o esquema trinitário está próximo da experiência que todo o sujeito faz na organização do seu mundo interior, na maturação de si. Diz a autora: “Acho maravilhoso encontrar em Deus a Trindade, essa relação de amor a três. É algo que encontramos justamente no desejo de viver de cada um de nós. Assumimos aí o nosso papel no interior de uma situação triangular: pai, mãe, filho. […] O facto de remontar à Trindade, ou seja, aos três desejos divinos circulantes, é extraordinário, pois foi assim que fomos concebidos”. Mas não só. Todos os “segundos nascimentos”, sempre que a vida nos impele a um recomeço, seja a partir de feridas e perdas, seja a partir de encontros e esperanças, o “esquema trinitário” nos torna imprescindível. “A nossa solidão só pode ser curada quando expressa criativamente e quando ajudada por alguma outra pessoa, que cria assim uma situação triangular. Somos dois, conversamos: o terceiro é a palavra. A palavra, que vem sempre  de outro, prova que somos três”.
Por fim, para Pierra Aulagnier o silêncio ora se coaduna com pensadores da Escola Inglesa ora com pensadores da Escola Francesa, mais especificamente da escola lacaniana de psicanálise.
Em seu texto “Direito ao Segredo – condição para poder pensar”, a autora propõe um novo paradigma, qual seja, a de que o imperativo de dizer tudo numa análise possa também se sustentar pelo direito ao silêncio, ao calar-se (ticeo) e, portanto, guardar segredo.  Para ela, pensar secretamente não precisa ser necessariamente interpretado. O direito a guardar segredo em silêncio, na verdade, é uma aquisição mais elaborada do EU (ego), e é uma condição para que se possa pensar, elaborar, fantasiar, criar, ou seja, uma dimensão elaborada da interioridade e, porque não dizer, do próprio inconsciente. Para Aulagnier “perceber que a singularidade da experiência e da relação analítica não está tanto, como se acreditava, no fato de dever exprimir pensamentos, afetos, que nos dizem respeito e de não receber nenhuma resposta, mas sim nessa estranha injunção interiorizada que obriga ao analisando a falar como se estivesse privado de todo direito de escolha sobre o dito e o não dito”. Dito de outro modo, a autora sustenta a autonomia de que guardar segredo e permanecer em silêncio é, antes de tudo, uma aquisição do próprio EU necessário ao próprio aparelho psíquico, o que a aproxima, por um lado da “capacidade de estar só” em Winnicott, mas também da dicotomia lacaniana entre o sileo e o taceo.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

O silêncio em Winnicott




Os analistas da Escola Inglesa de Psicanálise sustentavam que o silêncio deveria ser manejado para sustentar e reparar falhas ambientais nas quais o analisando passaria ao longo da sua vida, mas principalmente na infância.
A Escola Inglesa de Psicanálise se baseou fundamentalmente sobre as relações de objeto a partir de três grupos: os kleinianos, os annafreudianos e grupo do meio (middle group) ou grupo independente do qual Winnicott entre outros faziam parte.
Para Winnicott, o silêncio é necessário para a construção do “verdadeiro self” e do “processo criativo”. Ele é o elo necessário para o amadurecimento do desenvolvimento emocional, sobretudo na relação entre a mãe e o bebê. Por isso Winnicott justapõe o silêncio com a “capacidade de estar só”.
A comunicação silenciosa com os objetos subjetivos está na raiz do sentimento de ser real, e não apenas a serviço do recalque, dos mecanismos de defesa ou da pulsão de morte, como afirmam a maior parte dos teóricos da escola francesa ou do circulo de Viena. Pelo contrário, o silêncio é uma das condições para que o self se desenvolva e possa se sentir em vida na presença de outro, ou nas palavras de Winnicott, é preciso desenvolver na linguagem da interioridade, uma “capacidade de estar só”, mesmo que na presença do outro.
Na verdade, ele é um sinal dos mais importantes do amadurecimento emocional do indivíduo e depende da existência de um objeto bom internalizado na vida psíquica desse indivíduo para que este não venha desenvolver determinados estados patológicos tais como a depressão ou a solidão patológica resultante desta.
O silêncio, nesse sentido, é uma condição necessária, porém, não suficiente, para aquilo que Winnicott chamou a atenção, ou seja, uma das modalidades do desenvolvimento emocional do individuo e uma eminente “capacidade de estar só”.
Enfim, a capacidade de estar só, não significa estados patológicos ou depressivos. A capacidade de estar só, para Winnicott, supõe uma confiança no mundo através de hábitos maternos suficientemente bons, de modo a promover a integração do sujeito com o mundo e fornecendo os alicerces para uma vida criativa. Logo, para o autor, a comunicação silenciosa com objetos subjetivos está na raiz do sentimento de ser real, condição necessária para que o self se sinta vivo e se desenvolva.
O sentido de ser real está subsumido a noção de “acontecer enquanto sujeito”. Winnicott afirma que este é um estado originário é a base da qual o ser surge do não ser, no qual o indivíduo pode, inclusive, retornar a um estado de solidão ou solitude.
Solitude, segundo o psicanalista Gilberto Safra é um estado no qual o indivíduo inicia a experiência de si, como só. É um paradoxo winnicottiano, ou dito em outras palavras, o indivíduo acontece como sujeito a partir do momento que ele pode experimentar “ficar só” na “presença de outro”, momento este marcado pela dependência absoluta do bebê com sua mãe-ambiente.
É um encontro fundamente e necessário pelo qual o bebê deve passar, mas também é um momento sustentado pelo holding e handling maternos. De igual modo é importante ressaltar que esse silêncio na interioridade do si mesmo é uma oferta à morada do núcleo do self que jamais se comunica. Este é o lugar onde cada ser humano é silêncio. No bebê encontramos esse momento fundante através do uso do objeto transicional e do fenômeno transicional. De igual modo, este é o lugar da criatividade, do pensar e do espaço potencial que definirá a subjetividade de cada sujeito no mundo quando adulto.
O sujeito adulto que experimentou esse primeiro encontro fundante, em análise, pode experimentar estar só na presença do seu analista, sem experimentar um sentimento de despedaçamento, esvaziamento ou fratura do núcleo do seu self. Para tanto, é preciso que o analista se coloque na posição de mãe-objeto e mãe-presença e ao mesmo tempo seja um rosto “hospitalar” e fundamente, ou dito em termos winnicottiano, seja uma “face estética ao self” desse eu que se apresenta em análise.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

domingo, 24 de julho de 2011

Self - por Donald W. Winnicott



In regard to this article, the main thing has to do with the word self. I did wonder if I could write something out about this word, but of course as soon as I came to do it I found that there is much uncertainty even in my own mind about my own meaning. I found I had written the following:

For me the self, which is not the ego, is the person who is me, who is only me, who has totality based on the operation of the maturational process. At the same time the direction interior-exterior in the course of the operation of the maturational process, aided as it must be (maximally at the beginning) by the human environment which holds and handles and in a live way facilities. The self finds itself the body or the body from it. The self essentially recognizes itself in the eyes and facial expression of the mother and in the mirror which can come to represent the mother’s face. Eventually the self arrives at a significant relationship between the child and the sum of the identifications which (after enough of incorporation and introjection of m ental representations) become organized in the shape of an internal psychic living reality. The relationship between the boy of girl with his or her own internal psychic organization becomes modified according to the expectations that are displayed by the father and mother and those who have become significant in the external life of the individual. It is the self and the life of the self that alone makes sense of action or of living from the point of view of the individual who has grown so far and who is continuing to grow from dependence and immaturity towards independence, and the capacity to identify with mature love objects without loss of individual identity.

You may find this unhelpful but at any rate it seemed to me to be a valuable thing to do to try to write it down. Certainly I might want to alter it.

You of course are left with the same word that you would use to translate the ego. Let me try to be more helpful. I think that the user of the term self is on a different platform from the user the term ego. The first platform has to do with life and living in a direct way; the second, where the word le moi is used, the speaker or writer is more detached, less involved, perhaps clearer because of being able to use all that there is of the intellectual approach.

I fell that your use of the word le moi corporel way be necessary but one would like to leave it that the self is not always putting emphasis on the body to the exclusion of a more abstract self that certainly does, however, belong to the concept of a healthy functioning brain.


Dr. Donald W. Winnicott 

In: Nouvelle Revue de Psychanalyse (Lieux du corps), N. 3, Printemps, 1971, p. 47-48.

sábado, 23 de julho de 2011

O fenômeno dos membros fantasmas


Historicamente o fenômeno do membro fantasma é conhecido desde a antiguidade, mas a primeira percepção deste, na literatura médica, foi observada no século XVI pelo cirurgião francês Ambroise Pare, a partir da perda do braço direito de um combatente em guerra, levando a crer que a sensação do “fantasma” seria a prova mais do que definitiva da existência da “alma humana” no nosso corpo pois, se um braço pode existir mesmo após ter sido retirado, por que a pessoa inteira não poderia sobreviver à aniquilação física do corpo? Não seria esta a prova definitiva de que o "espírito" continuava existindo muito tempo após de ter se livrado de sua carcaça?
Outra prova pôde ser encontrada através dos relatos de Lord Nelson, que após ter perdido um braço durante um ataque a Santa Cruz de Tenerife, experienciou dor no membro fantasma, incluindo uma estranha sensação de dedos tateando a palma da sua mão. A emergência dessas sensações levou o Lord Nelson a proclamar que ele tinha a prova direta da existência da alma, pois, mais uma vez, se um braço pode resistir fisicamente à sua aniquilação, porque não toda a pessoa?
Não obstante, a primeira descrição clínica do membro fantasma foi feita por Silas Weir Mitchell em um artigo “Injuries of Nerves and Their Consequences” em 1872. A palavra “membro fantasma” foi introduzida por Weir Mitchell ao verificar a experiência do membro perdido em alguns pacientes que tiveram uma extremidade amputada como ainda estando presente no corpo e, em alguns casos, também experienciaram dor ou câimbras6. O termo também é usado para designar uma associação entre a posição perdida do membro e sua atual posição, tais como ocorre durante uma obstrução espinhal ou do “plexo braquial”. É importante notar que em todos esses casos os pacientes reconhecem que as sensações não são verídicas, eles experimentam uma ilusão e não um engano.
Já em março de 1887, portanto, quinze anos depois de Mitchell, William James também publicava um artigo científico intitulado “The Consciousness of Lost Limbs” no periódico “Proceeding of the American Society for Psychical Research”, reafirmando a demanda da existência de membros fantasmas e fazendo algumas observações e críticas ao trabalho de Weir Mitchell.
Segundo James, as principais questões que se precisava pontuar era a de que (1) alguns pacientes preservam a consciência do membro depois de tê-lo perdido, outros não; (2) em alguns casos, a sensação sempre aparece em uma posição fixa, em outros, sua aparente posição muda e, por fim, (3), a posição pode mudar de acordo com algum esforço ou a própria vontade do sujeito, mas em outros casos, nenhum esforço ou vontade pode fazer esta mudança; em raríssimos casos o desejo de mudar pareceria cada vez mais impossível. Porém, a consciência do membro perdido varia de acordo com “a dor, picada, coceira, queimação, câimbra, preocupação, topor, etc., no calcanhar ou em outro lugar, sentidos que são duramente perceptíveis, ou que se tornaram perceptíveis apenas depois de se pensar sobre ele. O sentimento não está presente na condição do “coto”, e “cotos saudáveis” e “dolorosos” podem estar presentes ou ausentes”.
Até mesmo Descartes em “Os Princípios da Filosofia” fizera referência ao fenômeno, ressaltando o dualismo “mente-corpo”. De acordo com o autor, algumas vezes algumas doenças podem afetar o cérebro fazendo-nos perder o sentido de algumas partes do corpo através da obstrução de um nervo que conecta o cérebro ao corpo.
Descartes chega até mesmo a fazer referências às sensações de dor na mão e no braço de uma garota que tivera o membro amputado. Mas a neurologia só veio dar mais alguns passos adiante após a década de 1930, sobretudo na União Soviética, com os estudos de A. R. Lúria, com a criação da “neuropsicologia”.
Não obstante, os estudos contemporâneos dos membros fantasmas têm se dado sistematicamente desde os primeiros anos da década de 90 através de achados científicos que comprovam mudanças nos mapas somatópicos do cérebro.
Ora, a neurologia clínica tem sido uma ciência mais descritiva do que experimental. Ela caminhou alguns passos a mais após os estudos desses “fantasmas” e pôde corroborar (ou não) alguns pressupostos entre o dualismo mente-corpo/mentecérebro, reforçados nos últimos anos pelos estudos das neurociências e pelas técnicas de imageamento do cérebro.
Para tanto, o ponto básico estava na investigação da relação entre a anatomia do cérebro com várias partes do corpo distribuídos e mapeados no córtex cerebral, pelo grande revestimento convoluto da superfície externa do cérebro.
A ressurgência dos estudos sobre os “fantasmas no corpo” ou “membros fantasmas” só vieram a tomar forma a partir dos experimentos laboratoriais os quais possibilitaram mostrar como os mapas sensórios motores poderiam mudar no córtex cerebral.
Um dos experimentos mais famosos foi descoberto a partir daquilo que ficou conhecido como sendo o “homúnculo de Penfield” (veja na foto acima). O “homúnculo de Penfield” é uma representação artística de como diferentes pontos da superfície do corpo estão “mapeados” nos dois hemisférios do cérebro, algumas vezes, através de traços deformados para indicar que tais partes do corpo têm localização específica em alguma das regiões.
O “mapa” foi construído a partir de experimentos feitos com seres humanos durante cirurgias realizadas pelo canadense Wilder Penfield. Nessas cirurgias o cérebro de alguns sujeitos fica exposto sob anestesia local e determinadas regiões do cérebro eram estimuladas por Penfield com um eletrodo que lhes perguntava o que sentiam. O resultado era a produção de imagens, sensações corpóreas ou lembranças e memórias. A partir disto, várias áreas do cérebro puderam ser correlacionadas com partes do corpo.
A ideia é que o cérebro corresponde a um mapa genérico de várias partes do nosso corpo sendo o homúnculo, portanto, um mapa neural, desafiando as bases materialistas da ciência.
O mapa cerebral representado pelo “homúnculo” reflete a capacidade que o cérebro possui de discriminação sensorial e sua importância motriz referente a cada uma das partes de nosso corpo visto que ele está distribuído ao longo de todo o córtex cerebral nos dois hemisférios. A ocorrência de um membro fantasma ilustra, portanto, a capacidade do cérebro de perceber, agir e gerenciar cognitivamente a imagem do corpo, visto que ele é uma máquina sensóriomotora, ou seja, possui a função de discernir os estímulos das respostas, de decidir, tomar decisões e etc., cuja representação corporal se prolonga por toda a sua superfície em ambos os hemisférios.






Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

Freud e o dualismo pulsional

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificados, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóveis tão freqüentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar”.
O longo trecho pertence ao livro “As intermitências da morte”, do escritor português José Saramago, que assinala o que aconteceria no mundo se a morte se recusasse a exercer a sua principal e única função, qual seja, a de levar consigo os doentes terminais, os moribundos, os suicidas, as vitimas de acidentes fatais, entre outros.
A morte é aquela que nos desafia, nos paralisa, nos amedronta, nos desestabiliza de nossas certezas e remete-nos diretamente para o nosso estado de desamparo original. O temor da morte é herdeiro do pensamento secular que valorizou a vida tornando-a sagrada e a morte como a justa medida paga por nossos pecados, sobretudo na tradição judaico-cristã.
É nesta perspectiva que a clínica psicanalítica cada vez mais tem nos convocado a lidar com a dor e o sofrimento humano, e não por acaso, foi com isto que Freud teve que se deparar: a guerra pulsional entre Eros e Tânatos ou o dualismo pulsional.
Raramente vimos Freud se referir a esse dualismo no que se refere à sua própria vida. Mas em uma entrevista ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926 e publicada na íntegra no volume “Psychoanalysis and the Future”, número especial do “Journal of Psychology”, Nova Iorque, em 1957, Freud tece algumas considerações ao que ele discute no seu livro “Além do Princípio do Prazer”. A entrevista foi publicada em português, pela primeira vez, no volume 15 da Revista Ide, em 1998, e reimpressa recentemente no Jornal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. É nessa entrevista que Freud afirma: “Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos. (...) A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal”.
Em um trecho adiante, quando perguntado sobre a persistência da sua personalidade após a morte, Freud responde: “Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem constituir uma exceção? (...) No que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo. (...) É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito, ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição”.  
Por fim, a referência direta às ideias contidas no seu texto “Além do princípio do prazer”, texto no qual ele introduz a ideia de uma pulsão de morte, marcando o dualismo pulsional: “Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e os impulsos de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro ‘Além do princípio do prazer’. No começo, a psicanálise, supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da ‘febre chamada viver’, anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a própria extinção”.
Vida e morte, nascimento e finitude, amor e conflito: eis aqui todo o conteúdo existente que marca o dualismo pulsional, colocado sobre a égide da estética da existência na vida e nas palavras do metapsicólogo. Um conflito marcado eminentemente por uma luta de forças (biológicas e psíquicas) cujo vencedor e o perdedor, se já não o conhecemos, ao menos podemos examinar suas vicissitudes.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

Vida e criatividade em Winnicott



Donald Winnicott nunca se preocupou explicitamente em escrever sobre o conceito de vida e muito menos sobre o conceito de morte ao longo de seus textos. Quando o fez, foi através de outras discussões teóricas que o permitia distinguir entre a vida normal e a patológica, entre a saúde e a doença. Porém, é possível pinçar no escopo de sua obra, o que seria sua “pedra de toque”, seu “elan vital” para o desenvolvimento de um indivíduo saudável: a criatividade.
Para esse psicanalista inglês sua compreensão de vida saudável estava indubitavelmente imbricado com a noção de vida criativa, pois só na criatividade o sujeito é capaz de ser saudável e viver a vida satisfatoriamente. Criatividade aqui está sustentada naquilo que o autor denomina da capacidade insofismável de brincar, ou, em suas palavras, “é através da percepção criativa mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. É no brincar que podemos manifestar a nossa criatividade e é somente no brincar que o indivíduo, seja ele criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar a sua personalidade integral, ou dito de outro modo, é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu “eu”. O brincar e a criatividade, portanto, são inerentes ao próprio fato de viver; são características particulares da vida e da existência humana. Todavia, necessitamos do ambiente para que essa capacidade possa se realizar. Winnicott diz que a criatividade, em si, nada tem a ver com a criatividade artística, bem entendida, a criatividade artística é uma das modalidades que o sujeito pode vir a desenvolver durante a sua vida, mas não é condição fundamental do nosso “eu”, do nosso “self”.
E o que seria, afinal, viver criativamente?
Para ele, a criatividade além de se relacionar diretamente com a capacidade de estar vivo, também se refere à capacidade que os seres humanos têm de se relacionar com a realidade externa.
A capacidade criativa, diz Winnicott, está diretamente relacionada à característica particular que faz os seres humanos serem demasiadamente humanos, de poder perceber o mundo à sua volta de modo criativo. Ser criativo refere-se às singularidades que fazem os seres humanos diferentes uns dos outros, ou seja, não é unicamente a capacidade consciente e racional de se relacionar com o mundo e com os outros seres humanos, mas de poder fazer planos para o futuro, amar e ser amado, ter atividades profissionais, inventar novos modos de vida, criar seus filhos, brincar e participar de jogos de linguagem, enfim, interagir com o mundo através de todos os órgãos do sentido, inclusive ter a possibilidade de criar objetos de arte ou ainda capacidades intelectuais tais como compor uma música, uma partitura, escrever um livro, inventar receitas culinárias ou até mesmo uma nova teoria ou fórmula química. O sujeito criativo e saudável interage com o mundo a sua volta.
No campo dos sentimentos e das sensações, “a vida de um indivíduo saudável é caracterizada [ainda] por medos, sentimentos, conflitos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por características positivas. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidades pela ação e pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas”, diz Winnicott.
Para tanto, é preciso estar sujeito ao impulso criativo. Estar sujeito ao impulso criativo é, para o autor, “algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical”. Mas vale lembrar que, de acordo com Winnicott, a criatividade só pode ser estabelecida pela provisão de um “ambiente suficientemente bom”.
Não obstante, prossegue o autor, “descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser vivida ou, então, que não podem viver criativamente e tem dúvidas sobre o valor de viver. Essa variável nos seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases primitivas da experiência da vida de cada bebê”, mas também na experiência de vida de cada ser humano adulto.
A relação entre as provisões ambientais, ou seja, o ambiente suficientemente bom e a criatividade, é referida por Winnicott como sendo o ambiente cultural em que estamos inserido. Logo, a criatividade estaria na capacidade singular do indivíduo experimentar os diferentes universos culturais, experimentando o mundo à sua volta como fazendo parte de si mesmo, como produto de sua potência. O homem suficientemente sadio é aquele que têm experiências culturais variadas e de riquezas infinitas. A cultura, portanto, é o “lugar onde vivemos”, é a parte sadia da nossa vida emocional, a própria morada da ação criativa, bem como a possibilidade de compreender a vida como um bem em potencial.
De acordo com Winnicott, para nos constituirmos como um indivíduo saudável, devemos experimentar três modos singulares de vida, a saber: a) a vida no mundo: onde as relações interpessoais constituem a chave até mesmo para o uso de um ambiente não humano; b) a vida da realidade psíquica pessoal ou interna: visto que a pessoa é mais rica, mais profunda e mais interessante do que outra quando é criativa [aqui podemos também incluir o material que surge dos sonhos] e c) a vida cultural: que começa como um jogo, conduz ao domínio da herança humana, incluindo artes, mitos históricos, pensamento filosófico e das ciências em geral, da religião, etc., e é parte integrante da existência humana, subproduto da saúde.
Logo, a vida criativa, pensada através da provisão de um ambiente suficientemente bom e espelhada na cultura, nada mais seria do que a capacidade de criar o mundo. Para criar o mundo, precisamos ter um sentimento de existência, precisamos estar vivo, precisamos ter a sensação de que somos nós mesmos. É a vida como potência da qual nos fala esse grande psicanalista inglês e sua indubitável sensibilidade criativa.





Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

As experiências religiosas e o sistema límbico


De acordo com o cientista Francisco Varela, em seu livro “Sobre a competência ética”, nosso cérebro é o resultado de uma evolução biológica e supõe um diálogo com o meio e sua consequente configuração neuronal. Esse sistema assim constituído é um sistema autorreferente, autônomo, determinista e relativista, que faz com que se possam gerar inúmeras narrativas de si, inúmeras descrições mentalistas e linguísticas de um determinado fenômeno, alimentado pela interação social. O corpo surge qual verdadeira máquina ontológica que com suas redes neuronais, com sua coordenação sensório-motora, com seu centro cerebral presidido pela lei da reciprocidade das suas diversas regiões, e com seu trabalho de rede, faz emergir o mundo.
Na verdade, faz surgir não só um novo mundo, mas também faz surgir um novo sujeito que a partir de então é definido e identificado pelo seu cérebro: o sujeito cerebral. Cada vez mais temos visto a necessidade de nos definir a partir das interações internalistas e externalistas mediadas pela mente e pelo cérebro, fazendo com que este seja necessário para nos identificarmos e sermos nós mesmos.
Não são imbróglio as pesquisas do neurologista indiano radicado nos Estados Unidos Vilayanur Subramanian Ramachandran, em seu livro “Fantasmas no cérebro”, ao considerar as experiências religiosas como pertencentes aos lobos temporais do cérebro, de modo com que fosse possível localizar através das mais modernas técnicas de imagem cerebral o exato “ponto de Deus no cérebro”.
Em suas pesquisas históricas e empíricas, baseados em casos clínicos, Ramachandran identificou que as crenças religiosas não são meramente o resultado de um desejo mágico religioso ou um anseio pela imortalidade da alma, mas também encontrou dados de intenso êxtase religioso experimentado em pacientes que tinham ataques no lobo temporal esquerdo, cuja experiência resultou na sensação de que Deus falara diretamente com esses pacientes tais como nos delírios do presidente do senado Daniel Paul Schreber, ou Santa Tereza D’Ávila e seus êxtases religiosos, ou ainda como as visões de São Paulo.
Seria então possível considerar que o sistema límbico é o responsável por todas as experiências religiosas já que ele é o principal responsável por todas as experiências e registros das emoções, tal como afirma o neurologista António Damásio em seu livro “O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si?
O registro das emoções é mediado pelas conexões neuronais intensas presentes nos lobos frontais e grande parte da interação das emoções depende dessa conexão entre os neurônios presentes nessa região do cérebro.
O sistema límbico, ainda é preciso considerar, é um sistema composto por uma série de estruturas interconectadas circundando um ventrículo cheio de fluído do cérebro e forma a borda interna do córtex cerebral. As estruturas, de acordo com Ramachandran, ainda incluem o hipocampo, amígdala, septo, núcleos talâmicos anteriores, corpos mamilares e córtex cingulado, mas não é um sistema nem sensorial nem motor, mas constitui o núcleo central do processamento das emoções humanas e é essencial no registro das experiências místicas ou religiosas.
Aqui não se discute a existência ou não da presença divina, mas sim que sem o repertório “biológico” do sistema límbico, dificilmente as pessoas poderiam experimentar as sensações que descrevem quando se encontra em êxtase religioso ou místico. Caberia também aqui questionar se uma pessoa descrente, um ateu, poderia experimentar as mesmas sensações divinas ou místicas do que uma pessoa fervorosamente religiosa.
Seria possível que nosso equipamento cerebral estivesse “formatado” para esse tipo de experiência, desenvolvendo um conjunto especializado de circuitos neuronais com o objetivo de mediar a experiência religiosa ou justamente porque temos esse equipamento cerebral é que somos capazes de observar essa experiência e descrevê-la como sendo um fenômeno divino, sem que para isso descartemos toda a construção do caldo cultural, social e linguística da religião e de nossas crenças?
Mas há ainda de se ponderar que essas experiências religiosas também fazem parte de nossa capacidade cognitiva e que se dão de modos distintos nos mecanismos neuroanatômicos e neurofisiológico tal como pontuado pelos neurocientistas D’Aquili e Newberg em seu livro “The mystical mind: probing the biology of religious experience, ainda não publicado no Brasil.
De acordo com esses autores, o comportamento religioso começa com uma operação e uma “inter-relação desses dois mecanismos do cérebro. No primeiro deles, é a percepção de sequências causais na organização da realidade”. Isso resulta, segundo os autores, “na tentativa de impor controle além do mundo através da manipulação de construtos causais opostos como deuses, demônios, espíritos ou outros agentes causais personalizados”. O segundo mecanismo é o resultado da “evolução neurofisiológica culminando no potencial de estados alterados desenvolvidos da consciência”.
Esse tipo de experiência é frequentemente interpretado como um rápido olhar dentro do mundo sobrenatural e tendem a confirmar a existência do poder personalizado gerado pelo primeiro mecanismo (neuroanatômico). Além disso, para algumas pessoas, “esse tipo de experiências podem facilitar a reorganização da estrutura da personalidade do indivíduo e realinhar sua concepção de mundo frente ao cosmos”, afirmam D’Aquili e Newberg.
A neuroteologia, assim, tem se firmado como uma ciência que tem buscado interpretações possíveis para fenômenos religiosos de diversas ordens, desnaturalizando o fenômeno religioso como uma mera construção cultural, social ou histórica das sociedades primitivas ou modernas ou por outro lado, reforçando e reafirmando a fidedignidade de nossas crenças de acordo com nosso equipamento biológico.
Caberia aqui, como ilustração, tomar de exemplo os experimentos de D’Aquili e Newberg ao escanear o cérebro de oito budistas americanos, praticantes da meditação tibetana e de três freiras franciscanas em oração contemplativa, buscando mostrar como em ambos os grupos poderíamos observar um aumento da atividade neural do córtex pré-frontal e uma diminuição da atividade lobo parietal posterior superior. O objetivo de tal experimento foi mostrar a relação entre a atividade mental e o seu correlato cerebral nas práticas de meditação de ambos os grupos.
De acordo com o filósofo e pesquisador das neurociências Francisco Ortega, a crítica a esses experimentos refere-se mais ao dualismo cartesiano clássico do que a obviedade de uma tradução materialista das experiências mentais ou espirituais.
Caberia perguntar se esses dados, procedentes do polo cerebral, fornecem alguma informação importante sobre o polo mental, para além do fato óbvio (se não quisermos reeditar alguma versão do dualismo clássico) de que toda a experiência mental (inclusive as espirituais) possui correlatos cerebrais. Podemos identificar a experiência espiritual de vazio, o Nirvana dos budistas, com o sentimento de comunhão com o Deus das freiras? Seria ingênuo se acreditássemos na identidade das duas. Obviamente, trata-se de duas experiências subjetivas completamente diferentes, correspondentes a duas visões de mundo, a concepções teológicas e espirituais diversas e a contextos socioculturais distintos, ainda que possuam o mesmo correlato neural. A riqueza e a diversidade do polo mental (espiritual) perdem-se na pretensa redução ao polo material, cerebral. Trata-se de uma tradução grosseira, simplificadora e ingênua, afirma Ortega. As variedades das experiências religiosas, segundo o autor, não são traduzíveis à monotonia e à uniformidade de seus correlatos neurais, pois nenhum mecanismo neural pode dar conta da totalidade e variedade de nossas experiências espirituais.
Assim, para usar a expressão do neurocientista John Horgan, poderia a “neuroteologia nos salvar” diante de nossa fragilidade diante de um mundo convulsionado por guerras religiosas, por fenômenos paranormais, místicos ou entidades superiores trazendo a imagem de Deus bem mais próxima do que a realidade científica tem tentado provar? É possível “fotografar Deus” no cérebro? As patologias cerebrais tais como epilepsia ou as convulsões do lobo temporal esquerdo que tanto afetam a experiência da vida e da realidade de um indivíduo, fazendo com que este perceba o fenômeno como uma experiência mística de contato com santos ou deuses pode dizer mais do que a própria existência de Deus nos mais variados sistemas de crenças religiosas que conhecemos? Se Deus existe, seriam estas pessoas selecionadas para experimentar sua presença do que o resto das pessoas ditas normais, tal como aconteceu com Santa Tereza D’Ávila, Joana D’Arc, São Paulo ou Van Gogh? E se assim o fosse, o fato de não ter esse tipo de distúrbio cerebral nos afasta ou nos aproxima ainda mais de Deus?
As respostas a estas questões são inúmeras. Por enquanto, os neuroteólogos não têm afirmado nem a presença nem a ausência de Deus no mundo, mas sim, em nosso cérebro. O terreno do ser é sempre mais do que nós podemos compreender e mais do que podemos articular. Deus é sempre mais do que nossa ideia de Deus.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.