sábado, 16 de julho de 2011

Foucault, o silêncio e a hermenêutica do sujeito

Em uma entrevista a Stephen Riggins intitulada “Silêncio, sexo e verdade” e publicada no quarto volume da coletânea “Dits et Ecrits”, Michel Foucault afirma: “[...] Eu penso que o silêncio é uma das coisas às quais, infelizmente, nossa sociedade renunciou. Não temos uma cultura do silêncio, assim como não temos uma cultura do suicídio. [...] Ensinava-se aos jovens romanos e aos jovens gregos a adotarem diversos modos de silêncio, em função das pessoas com as quais eles se encontrassem. O silêncio, na época, configurava um modo bem particular de relação com os outros. O silêncio é, penso, algo que merece ser cultivado. Sou favorável que se desenvolva esse êthos do silêncio”.

Nessa entrevista, e também no primeiro volume de História da Sexualidade, Foucault afirmará que existem diferentes modos de falar e de discurso assim como numerosas formas de silêncio.

Entre janeiro e março de 1982, Foucault proferiu aulas no College de France sobre  as relações suscitadas pela prática ou análise histórica entre “sujeito” e “verdade”, através da noção de “cuidado de si” (epiméleia heautoû). Essas aulas foram publicadas com o título de “A Hermenêutica do Sujeito”.

O cuidado de si diz respeito ao modo de como ocupar-se e preocupar-se consigo mesmo, constituída a partir da fórmula “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), formula esta fundadora da relação do sujeito com a verdade, que percorre do pensamento grego, helenístico e romano até chegar aos nossos dias, com as práticas do cuidado de si, da qual o modelo psicoterápico proposto pela psicanálise é seu herdeiro e tem suas raízes. Em outra entrevista em 1984, publicado em Dits et Ecrits, Vol. IV, Foucault vai afirmar que o cuidado de si é definido essencialmente como a renúncia a todos os laços terrestres e a tudo que possa ser amor de si, apego ao eu terrestre.

Segundo o autor, todo o homem durante o dia e a noite, ao longo da sua vida, deve ocupar-se com a sua própria alma através do emprego da therapeúein, ou seja, therapeúein refere-se tanto aos cuidados médicos da alma quanto aos serviços prestado ao seu mestre pelo seu discípulo, além de referir-se a um culto dirigido a uma divindade ou poder divino. Foucault nos informa que o verbo therapeúein não se acha diretamente nos escritos de Epícuro senão em uma sentença que diz: “É preciso curar (therapeutéon) os sofrimentos pela grata lembrança daquilo que se perdeu, e por saber que é impossível tornar não consumado aquilo que aconteceu”.

Em dois momentos distintos, o cuidado de si se constitui então como uma prática na qual o sujeito deve buscar a sua verdade, através aquilo que Foucault denominou de “asceses gregas” e “asceses cristãs”, matriz do ascetismo cristão.

Logo, o cuidado de si diz respeito não só a uma atitude para consigo e para com os outros e com o mundo, mas também uma forma de atenção e de olhar para o interior. É preciso que o olhar para o mundo seja retirado e reinvestido para dentro de si mesmo para que nos tornemos atento ao que se passa ao nosso pensamento – ou dito em outras palavras, um momento de introspecção. A introspecção é, em si mesma, um dos primeiros momentos de busca da interioridade e da verdade do sujeito. Ao olhar para dentro, buscamos encontrar o nosso “eu” com vistas ao melhoramento da nossa vida exterior.

Por fim, o cuidado de si designa também ações que são exercidas para consigo com o objetivo de nos modificar, purificar, transformar e transfigurar. Aqui se insere as práticas de meditação, de rememorização do passado, do exame das representações da consciência na medida em que elas são apresentadas ao espírito.

Reparem que, tanto na atenção e de olhar para o interior através do exercício da introspecção quanto no cuidado de si através das práticas de meditação e rememorização do passo, há um trabalho árduo, um exercício intrínseco de busca pela verdade e pela interioridade. Esse trabalho não passou despercebido pelas disciplinas do cuidado de si e, mutatis mutandis, foi esta prática que constituiu o exercício clínico da psicanálise de Freud até os nossos dias.

Ao longo de mais de mil anos de transformação, podemos ver diferentes formas de exercícios, práticas filosóficas ou espirituais: “o princípio do cuidado de si foi formulado, convertido em uma série de fórmulas como 'ocupar-se consigo mesmo', 'ter cuidados consigo', 'retirar-se em si mesmo, 'recolher-se em si', 'sentir prazer em si mesmo', 'buscar deleite somente em si', 'permanecer em companhia de si mesmo', 'ser amigo de si mesmo', 'estar em si como numa fortaleza', 'cuidar-se', ou 'prestar culto a si mesmo', 'respeitar-se'”.

Das práticas do cuidado de si em busca da verdade do sujeito, Foucault contrapõe dois tipos de pensamento: o pensamento filosófico e o pensamento espiritual.

Para o autor, filosofia é a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, ou seja, uma forma de pensamento que permite ao sujeito ter acesso à verdade. Contrariamente, para ele, espiritualidade é o conjunto de buscas, práticas e experiências com vistas à purificação, às asceses, às renúncias, às conversões do olhar, às modificações da existência que levam o sujeito a ter acesso à sua verdade. Nesta última, a verdade jamais é dada ao sujeito, é preciso um trabalho de elaboração de si sob si, uma busca de autoconhecimento do sujeito para que este se modifique, se transforme. É necessário, portanto, um trabalho progressivo de autoconhecimento e autoengendramento permanente. A verdade, para Foucault, é o que ilumina e dá tranquilidade ao sujeito.

Este é o momento cartesiano do qual o autor fala, pois o sujeito só tem condições de ter acesso à sua verdade através do conhecimento e é no interior do conhecimento que são definidas as condições de acesso às verdades do sujeito. A gnose (do grego gnôsis) significa conhecimento. Para Foucault, o conhecimento designa um conhecimento esotérico capaz de oferecer  a salvação a quem a ele tem acesso e representa para o iniciado o saber da sua origem e do seu destino, bem como os segredos do mundo exterior. As práticas ascéticas das espiritualidades cristãs encerradas na obra de autores tais como Santo Augustinho, São Tomás de Aquino, Santa Tereza D'Ávila e São João da Cruz diz respeito a essa busca pelo conhecimento (e verdade) interior através da prática da oração, da meditação e da transcendência do eu, todas elas dadas em silêncio.

Foucault centra suas análises no cuidado de si em três períodos distintos na história: o período socrático-platônico na reflexão filosófica, que é caracterizado pelo surgimento do cuidado de si; o período da idade de ouro da cultura e do cuidado de si mesmo, situado nos primeiros séculos de nossa era, e ,por fim, na passagem do século IV para o século V das asceses filosóficas pagãs para o ascetismo cristão. Em todas elas, a construção da verdade do sujeito estava intrinsecamente correlacionada a uma prática do silêncio.

Por conseguinte, as práticas do cuidado de sí são caracterizadas pela necessidade do cuidado de si vinculadas a um exercício do poder ou da situação estatutária do poder, como bem frisa Foucault, visto que, para governar a pólis era necessário poder se governar (governo de si); segundo, o cuidado de si e o governo de sí são indicados especificamente quando se apresentam no período da atividade política, e, por fim, o cuidado de si é uma atividade que os jovens devem exercer através da relação com o seu mestre e amante. Mas esta atividade, como sabemos, não é exercida única e exclusivamente através da palavra, mas também através da atividade reflexiva que leva o sujeito a indagar-se sobre si mesmo.

De modo geral, podemos dizer que houve duas culturas do silêncio na antiguidade: uma na Grécia antiga e outra constituída a partir do advento do cristianismo. Em ambas, é o conceito de ascese que vai ser ressaltada por Foucault. É na aula de 3 de março de 1982 que Foucault passará a detalhar as práticas de si distinguindo as asceses gregas das asceses cristãs, correlacionando-as com a cultura do silêncio.

As asceses, para o autor, é o que permite adquirir os discursos da verdade do sujeito, constituindo os acontecimentos da vida de cada um a fim de estabelecer uma relação adequada , plena, acabada consigo mesmo, assegurando o que Foucault denominou de “subjetivação do discurso verdadeiro”. As asceses como subjetivação do discurso verdadeiro se dará através de um conjunto de atividades que vão desde a leitura, a escrita, a arte de falar e a arte de saber escutar.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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