sexta-feira, 22 de julho de 2011

A era do cérebro

A mente humana. Um terreno ainda pouco conhecido e ainda há muito que ser descoberto em sua complexidade, desde que a filosofia grega antiga até a mais moderna tecnologia de imageamento cerebral se propôs a desvendar esse mistério. Não é simplesmente um desejo de uma raça (humana, é preciso que se diga), mas assim como a origem do universo para alguns astrônomos ainda é uma incógnita e tem levantado novas teorias acerca de quando e como o mundo se originou, o funcionamento da mente e sua relação com as funções cerebrais tem inquietado ainda mais vários neurocientistas na contemporaneidade.

Essa preocupação passou a fazer parte das neurociências após uma década que foi celebrada como sendo a década do cérebro e tende a constituir o século presente como sendo o século cerebral, dado a quantidade de investimentos em pesquisas que buscam explorar o órgão que tem sido descrito como a sede do “sujeito cerebral”.

É preciso que se diga que de acordo com o filósofo Francisco Ortega nas últimas décadas o cérebro, mais do que um órgão, vem se tornando indiscutivelmente um ator social através do progresso das neurociências e do intenso processo de popularização, através da mídia, de imagens e informações que associam a atividade cerebral a praticamente todos os aspectos da vida cotidiana produzindo, no imaginário social coletivo, a ideia de que o cérebro é autor das propriedades que define o que é um ser humano. Na atualidade, o cérebro tem cada vez mais respondido por aquilo que nós atribuíamos à uma pessoa, um indivíduo e um sujeito tornando-se o único órgão indispensável para a existência de um eu (self), definindo nossa individualidade.

Após mais de uma década de rápido crescimento da discussão a respeito do impacto social das neurociências, termos como “cerebralidade” e “sujeito cerebral” podem auxiliar a conectar processos sociais, representações culturais, desenvolvimentos científicos e desenvolvimentos em medicina, filosofia, educação, mídia e outros campos, que historiadores, filósofos, antropólogos e sociólogos têm estudado a partir de suas próprias perspectivas. Das políticas públicas às artes, das neurociências à teologia, os humanos são geralmente tratados como reduzíveis aos seus cérebros.

É preciso lembrar também que o século XXI acabou de completar a sua primeira década e vivemos hoje na aurora de um novo mundo cujo cérebro transformou nosso pensamento acerca do conceito de vida, morte, saúde, doença, ateísmo, religiosidade, entre tantos outros conceitos, pois o que os neurocientistas, juntamente com a mídia, têm proposto ao público em geral é o conhecimento cada vez mais exacerbado acerca das nossas potencialidades cerebrais. Hoje se sabe que o cérebro é muitíssimo aberto, sumamente maleável, plástico, passível de ser transformado e de transformar interações sociais de todos os tipos, determinando ou transformando nossa relação com o mundo a partir de um ponto de vista cada vez mais biológico, porém o biológico aqui não é concebido a partir de um ponto de vista reducionista, pelo contrário, o biológico é cada vez mais dinâmico, aberto, passível de transformação. “E para todos que trabalham nessa área – não, não para todos, mas para os mais interessantes entre aqueles que trabalham nessa área – isso torna essas novas ciências do cérebro tremendamente otimistas” afirma o filósofo Nikolas Rose.

Do século XIX até a algumas décadas, o cérebro tem funcionado como um mediador e como uma superfície de projeção para a medicina e para a lei, pois ambos não são independentes de representações, valores, esperanças e práticas cujas origens estão fora de suas fronteiras profissionais.

Mas hoje, com o avanço das tecnologias médicas de visualização de imagens cerebrais e com a perspectiva de que você pode ser definido pelo seu cérebro é que podemos observar o impacto do sujeito cerebral em nossa vida cotidiana e em nossa interação social, tais como apontado por Ortega e Vidal em seus estudos.

De modo mais enfático, as pesquisas de Francisco Ortega, no que tange ao impacto das neurociências em nossa vida, têm apontado para aquilo que o autor vem chamando de neuroasceses, neurodiversidade e neurocultura.

O que o autor tem chamado de neuroasceses refere-se ao impacto sociocultural das neurociências na atualidade, uma conseqüência da figura antropológica do sujeito cerebral. As neuroasceses são definidas como discursos e práticas referentes a modos de agir sobre o cérebro para maximizar sua performance, dando abertura para o aparecimento de produtos que incluem (a) livros de auto-ajuda cerebral, que por sua vez promove o desenvolvimento de determinadas áreas do cérebro, aumentando o desempenho do raciocínio e da memória, combate à depressão, ansiedade, adicções e compulsões diversas, melhora o desempenho sexual e promove a felicidade ou estabelece um contato direto com Deus. Consequentemente, a promoção das neuroasceses também possibilitou o aparecimento de (b) softwares e programas de fitness cerebral para computador, constituindo verdadeiras academias para o cérebro (brain gyms), além de (c) vitaminas e todo tipo de suportes alimentares e psicofármacos para aprimorar o funcionamento cerebral e são esses elementos que constituem as ferramentas do sujeito cerebral. As neuroasceses incluem ainda além da literatura de best-sellers de auto-ajuda cerebral e de programas de softwares para aumento da performance cerebral, sugere a (d) manipulação do cérebro para promover estados alterados da consciência capazes de conectá-lo com as forças do universo e com uma inteligência superior, a Mente Cósmica ou Divina

O termo neurodiversidade, de acordo com Ortega, foi cunhado pela socióloga e portadora da síndrome de Asperger Judy Singer em 1999 em um artigo intitulado “Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida? De um ‘problema sem nome’ para a emergência de uma nova categoria de diferença” (‘Why can´t you be normal for once in your life?’ From a ‘problem with no name’ to the emergence of a new category of difference). O termo tenta ressaltar uma “conexão neurológica” atípica (ou neurodivergente) ao invés de classificar os diversos quadros clínicos que se enquadram nessa definição como uma doença passível ou não de cura. Trata-se mais de uma diversidade ou diferença humana do que propriamente uma doença ou nosologia clínica, assim como são compreendidos hoje as diferenças sexuais ou de raça. De acordo com o autor, os indivíduos autodenominados de “neurodiversos” não se consideram doentes, mas “neurologicamente diferentes” ou “neuroatípcos”, tais como os portadores de autismo ou da síndrome de Asperger estudados pelo autor.

Por fim, a neurocultura está subsumida ao impacto propriamente dito das neurociências em nossa cultura, perfomando aquilo que o autor define também como cultura somática, indivíduos somáticos ou de biossociabilidade. Nesta perspectiva, crenças, desejos e comportamentos que antes eram descritos através da linguagem, agora são frequentemente descritos em um vocabulário cerebral ou neuroquímico, reduzindo a pessoa humana ao seu cérebro ou a sua identidade cerebral. Isto está diretamente ligado às neuroasceses pontuadas pelo autor, fazendo com que o sujeito cerebral se torne critério biossocial de agrupamento diferenciado de sujeitos (sejam portadores de doenças neurodegenerativas e seus familiares, grupos de testagem de performance cerebral ou ainda sujeitos portadores de alguma neurodiversidade).

Assim, a grande quantidade de redes onde as neurociências têm penetrado, constitui-se em novos ramos de estudos a exemplo da neuroeducação, neuropsicanálise, neuroética, neuromarketing, neuroteologia e algumas dezenas de campos onde as neurociências tem penetrado.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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