Desde que Bichat exclamou “Abram-se os cadáveres!”, que a tecnologia médica em torno do corpo buscou desvelar os segredos de sua interioridade, não parando mais de crescer e refinar os mecanismos de busca desse pretenso segredo interior insofismável.
As discussões acerca da biologia dos sentimentos, das emoções, da identidade pessoal, da subjetividade humana e acima de tudo da identidade biológica, parecem não ter chegado a um fim, sobretudo do ponto de vista neurológico ou neurocientífico. É preciso que tenhamos em mente que cada cérebro, cada ínfima conexão de um neurônio com o outro, não é suficiente para identificar todos os seres humanos como sendo um só, dentro do ponto de vista daquilo que tem se configurado como o “sujeito cerebral”.
A idéia de um “sujeito cerebral” decorre, segundo historiador da ciência Fernando Vidal, da concepção de “personhood” (personalidade, em inglês), ou seja, se por personalidade entendemos a qualidade ou condição de sermos uma pessoa, um indivíduo ou um sujeito com um sentido de ipseidade e um centro de gravidade narrativa, “brainhood” ou “sujeito cerebral” é a qualidade ou condição de “ser um cérebro” e é essa propriedade que define um sujeito. Por sua vez a figura do sujeito cerebral foi determinada pela influência galênica na psicologia do século XVIII e tem transformado o futuro das ciências médicas, a exemplo das neurociências e da neurologia na contemporaneidade.
Mas nossa identidade biológica seria a identidade de uma pessoa considerada na sua totalidade? Seria o cérebro, o conjunto de conexões neuronais que nos individualiza, nos particulariza, nos torna únicos? Prescindimos de uma centelha divina em nossa demasiada escuridão visceral para compreendermos o ser humano, ou seria a mente, essa estranha personalidade “encarnada” na materialidade do nosso corpo, a grande responsável pelo sentido de ipseidade que tanto tentamos entender?
Quando biólogos, psicólogos cognitivistas, neurologistas e neurocientistas de várias ordens buscam provar que tudo o que nos particulariza diante do Outro e do mundo vem do interior, eles subestimam a nossa capacidade narrativa substituindo a materialidade metafísica por uma interioridade biológica.
Erik Kandel é um bom exemplo disso. Ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2000, ele mostrou as contribuições da neurologia e das neurociências no campo das ciências psis, defendendo, inclusive, a psicanálise como ferramenta teórica da mente. Não obstante, Kandel é crítico quanto à relutância dos psicanalistas no que se refere em aproveitar as oportunidades que as ciências de um modo geral têm a oferecer ao campo da mente.
Na sua perspectiva, a psicanálise tal como foi desenvolvida no século XX foi prejudicada por uma concepção mais cientificista da mente, relegando para segundo plano os aportes das ciências biológicas, não obstante Freud ter feito uso das idéias de Darwin ao descrever em seu “Projeto para uma psicologia científica” uma concepção neurológica de mente.
Mas de acordo com Eric Kandel a biologia pode transformar a psicanálise em uma disciplina cientificamente mais fundamentada. Kandel especifica oito áreas em que a biologia e a psicanálise poderiam cooperar: a natureza do inconsciente dos processos mentais; a natureza da causalidade psicológica; a causalidade psicológica e a psicopatologia; as primeiras experiências e a predisposição para as doenças mentais; o pré-consciente, o inconsciente e o córtex pré-frontal; a orientação sexual; a psicoterapia e as mudanças estruturais no cérebro e finalmente a psicofarmacologia como um acessório à psicanálise. Todas elas não privilegiam a fisicalidade dos processos psíquicos nem subestimam as descrições psicológicas e narrativas da mente, pelo contrário, tanto uma quanto a outra estão imbricadas.
O próprio Kandel, em outro momento, afirmou que “a biologia pode revigorar a exploração psicanalítica da mente. Devo dizer, de saída, que embora esboçamos o que poderia evoluir para uma significativa fundamentação biológica para a psicanálise, estamos recém nos primórdios deste processo. Ainda não temos uma compreensão satisfatória dos complexos processos mentais. Mesmo assim, a biologia tem feito progressos notáveis nos últimos cinqüenta anos, e os passos não estão diminuindo. Como os biólogos focalizaram seus esforços na compreensão do cérebro/mente, a maior parte deles está convencida de que a mente representará para a biologia do século XXI o que os genes representaram para a biologia do século XX”.
Para o autor, os estudos biológicos, neurológicos e neurocientíficos podem contribuir para aquilo que ele chama de uma “biologia da subjetividade, da consciência, da ipseidade e do conflito”.
O que a neurologia atual pode trazer de contribuição para as teorias da mente, entre tantas, é apontar não só o referente corporal da nossa subjetividade como também descrever de um modo fisicalista não-dedutivo, como essa subjetividade está predisposta em nosso cérebro, pois, segundo Kandel, o cérebro não espelha o mundo como uma câmera, ele o decompõe em imagens e sensações para então reconstruí-lo na mente.
É provável que, em um futuro muito próximo, estejamos usando as ciências médicas como a neurologia ou as neurociências como aporte de nossas teorias mentalistas acerca da subjetividade e da identidade, construindo novas narrativas da mente.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.
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