sábado, 23 de julho de 2011

Freud e o dualismo pulsional

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificados, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóveis tão freqüentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar”.
O longo trecho pertence ao livro “As intermitências da morte”, do escritor português José Saramago, que assinala o que aconteceria no mundo se a morte se recusasse a exercer a sua principal e única função, qual seja, a de levar consigo os doentes terminais, os moribundos, os suicidas, as vitimas de acidentes fatais, entre outros.
A morte é aquela que nos desafia, nos paralisa, nos amedronta, nos desestabiliza de nossas certezas e remete-nos diretamente para o nosso estado de desamparo original. O temor da morte é herdeiro do pensamento secular que valorizou a vida tornando-a sagrada e a morte como a justa medida paga por nossos pecados, sobretudo na tradição judaico-cristã.
É nesta perspectiva que a clínica psicanalítica cada vez mais tem nos convocado a lidar com a dor e o sofrimento humano, e não por acaso, foi com isto que Freud teve que se deparar: a guerra pulsional entre Eros e Tânatos ou o dualismo pulsional.
Raramente vimos Freud se referir a esse dualismo no que se refere à sua própria vida. Mas em uma entrevista ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926 e publicada na íntegra no volume “Psychoanalysis and the Future”, número especial do “Journal of Psychology”, Nova Iorque, em 1957, Freud tece algumas considerações ao que ele discute no seu livro “Além do Princípio do Prazer”. A entrevista foi publicada em português, pela primeira vez, no volume 15 da Revista Ide, em 1998, e reimpressa recentemente no Jornal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. É nessa entrevista que Freud afirma: “Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos. (...) A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal”.
Em um trecho adiante, quando perguntado sobre a persistência da sua personalidade após a morte, Freud responde: “Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem constituir uma exceção? (...) No que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo. (...) É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito, ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição”.  
Por fim, a referência direta às ideias contidas no seu texto “Além do princípio do prazer”, texto no qual ele introduz a ideia de uma pulsão de morte, marcando o dualismo pulsional: “Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e os impulsos de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro ‘Além do princípio do prazer’. No começo, a psicanálise, supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da ‘febre chamada viver’, anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a própria extinção”.
Vida e morte, nascimento e finitude, amor e conflito: eis aqui todo o conteúdo existente que marca o dualismo pulsional, colocado sobre a égide da estética da existência na vida e nas palavras do metapsicólogo. Um conflito marcado eminentemente por uma luta de forças (biológicas e psíquicas) cujo vencedor e o perdedor, se já não o conhecemos, ao menos podemos examinar suas vicissitudes.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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