sábado, 23 de julho de 2011

Oliver Sacks e a neurologia



neurologia foi uma das ciências que mais se desenvolveu nos últimos tempos, sobretudo após os avanços das tecnologias do imageamento cerebral. Os diversos distúrbios neurológicos tais como perda da fala, da linguagem, da memória, da visão, da percepção dos sentidos e da identidade, foram estudados largamente e construído um conjunto de conhecimento específico para cada um deles, e muito do que se pensava sobre as causas fisiológicas ou psíquicas desses danos, caiu por terra com o avanço da tecnologia médica.
Desde o final do século XIX, a pesquisa científica de inúmeros neurologistas sobre o cérebro humano foi a responsável por estabelecer definitivamente uma relação entre cérebro e mente, cérebro e corpo e, finalmente, corpo e mente.
Paul Broca foi um deles. Ao descobrir uma área específica do hemisfério esquerdo do cérebro como a responsável pelos distúrbios da fala em 1861, ele abriu caminho para que outro neurologista famoso, Freud, atribuísse uma base fisiológica aos problemas da fala. Desde então, as pesquisas e o mapeamento do cérebro humano não pararam mais.
A neurologia tornou-se, portanto, uma “ciência personalista” ao comprovar que os acidentes vasculares cerebrais ou demais danos ao cérebro, tal como foi vítima Phineas Gage, também afetava a personalidade e a identidade do sujeito, suapersona”, sua subjetividade, seu próprioeu”.
Numerosos casos clínicos comprovaram essa sentença, tais como aqueles analisados por Oliver Sacks. Seus pacientes, transformados em personagens em uma vasta produção literária, trouxeram à tona uma gama de distúrbios do comportamento com origens eminentemente causadas por danos ao cérebro: um pintor que passou a enxergar tudo em preto e branco, uma mulher que perdeu a sensação da propriocepção, o homem que passou a perceber membros fantasmas no seu corpo, um jovem que perde a noção do tempo tendo sua memória restrita à década de sessenta, quando ocorreu seu acidente; o cirurgião que passa a ter tiques nervosos ou ainda um neurologista famoso que perde a sensação e percepção da própria perna, entre outros, são todos personagens do fantástico universo de Oliver Sacks. Muitos dos seus personagens tiveram suas histórias publicadas em revistas tais comoThe New Yorker” e “The New York Times”, mais tarde em livros e posteriormente em filmes e peças de teatro.
Os filmes são: “At First Sight”(À Primeira Vista) – Direção de Irwin Winkler – MGM/United Artists, 1999; “Awakening” (Tempo de Despertar) – Direção de Penny Marshall – Columbia/Tristar Pictures, 1990. A peça de teatro chama-se “The Man Who Mistook his Wife for a Hat” (O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu)  Direção de Peter Brooks, Royal Natinal Theatre, Junho de 1994.
Em todos os casos, verificamos vividamente o esforço do neurologista em não deixar de lado as ferramentas que a ciência médica dispõe. Mas o que transforma Sacks em um neurologista diferente da maioria, é que ele apontou para algo que ainda não havia sido feito: ele passou a deixar seus pacientes falarem sobre si mesmos e sobre seus distúrbios, tais como psicólogos e psicanalistas tem feito há décadas, dando passagem para a subjetividade de seus pacientes.
Sacks se tornou um proeminente intérprete das desordens neurológicas na cultura anglo-americana, tornando-se uma celebridade no mundo acadêmico. No início de sua carreira ele inspirou a prática daquilo que ele chamou de “neurologia romântica”, ou seja, uma neurologia que recobre a subjetividade de seus pacientes ao invés unicamente das condições fisiológicas engendradas pela neurologia tradicional.
Com isso, o neurologista Sacks praticamente “atualiza” o neurologista Freud naquilo em que ele fez de mais singular e específico – a cura pela palavra: Sacks não desperdiça os laudos médicos de exames neurológicos complexos, mas deixa a palavra e as descrições narrativas e subjetivas de seus pacientes tomarem forma.
Munido de seus conhecimentos como neurologista e somado a uma leitura particular da filosofia, da psicologia e, sobretudo, da psicanálise, Sacks busca as raízes da subjetividade humana através de uma atenta observação do comportamento de seus pacientes e de uma escuta clínica sobre o que eles têm a dizer antes e depois de lesões cerebrais, muitas das vezes graves, sobre sua história de vida, sobre o que eles foram, sobre o que eles se tornaram e sobre o que eles pensam como serão daí para frente. Sacks não se reduz a uma descrição biológica, nem fisicalista nem mentalista da vida subjetiva, mas se utiliza da mesma técnica que fez da psicanálise ser conhecida como uma “talking cure”.
A consequência disso é que Sacks, apesar de não construir uma teoria inovadora acerca da construção da imagem do corpo, da subjetividade e da identidade pessoal, ele passa fazer uso das teorias disponíveis no campo fenomenológico para auxiliá-lo nas descrições subjetivas de diversos distúrbios neurológicos de seus pacientes sem, no entanto, desprezar a descrições dos mesmos distúrbios através das mais modernas técnicas médicas para análise e tratamento.
Assim sendo, ele não restringe ao seu arsenal de conhecimentos médicos e científicos, nem faz da cadeia de redes neuronais predicativa de nossas subjetividades. Ele não as nega, mas não se restringe a elas.
O que Sacks propõe não é a compreensão da subjetividade humana, da identidade e da construção da imagem do corpo a partir de uma entidade exterior ao corpo. O cérebro é um órgão integrado à visceralidade da matéria do próprio corpo, e como tal, necessita desse corpo e de todos os seus dispositivos necessários para conhecer, reconhecer e decodificar todos os estímulos providos pelo ambiente e pela interioridade de sua carne, construindo imagens de si, narrativas de si e fundamentando o seueu” e a sua identidade a partir do seu equipamento lingüístico. Com isso, Sacks quebra definitivamente o modelo clássico do dualismo cartesiano e aponta para uma possível compreensão de uma neurologia mais voltada para a identidade do que para as descrições dos distúrbios neurológicos.
Este neurologista vem apontando para algo novo no campo da ciência do século XXI: a possibilidade de uma “neurologia romântica” como ele bem a definiu no início de seus estudos, ou quem sabe, uma “neurologia da identidade”, uma “neurologia do self” ou ainda uma “neurologia do ‘eu’”.
No campo da subjetividade, não podemos nos fechar para os avanços que as ciências médicas têm proposto para as nossas certezas diante da mente e da alma humana. Aprender com o olhar clínico de pesquisadores como Oliver Sacks, é se abrir para as mudanças que Freud já havia referido na primeira metade do século passado e buscar, na atualidade, novas narrativas da mente.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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