De acordo com o cientista Daniel Dennet, a maioria das pessoas no mundo diz que a religião é muito importante em suas vidas e que suas vidas não fariam sentido sem a religião. Com isso, ele questiona: quem poderia querer atribuir sentido à vida das pessoas? Será que qualquer religião poderia conferir sentido de uma maneira que todos nós pudéssemos respeitar e honrar a vida que temos de igual modo, indiferente às singularidades culturais e sociais em cada uma das religiões existentes no mundo? Muito pouco provável.
De fato, essa é uma questão de difícil resolução. Nas culturas ocidentais, não sabemos se o sentido que damos para o sagrado tem o mesmo sentido que é dado nas culturas asiáticas ou em países de tradição muçulmana, porém, sabemos que o ocidente viu ao longo dos séculos esse sentido do "transcendente", do sagrado ou do religioso mudar.
Essas mudanças são referidas pelo psicanalista Dany-Robert Dufour no seu livro “A arte de reduzir cabeças”, quando trata das "fraturas" que a modernidade sofreu. Segundo o autor, os sintomas característicos dessas mudanças se deram através da perda de duas grandes narrativas de legitimação: a narrativa religiosa e a narrativa política. Além destas, Dufour ainda argumenta que o quadro se completaria com o progresso da democracia, o desenvolvimento do individualismo, a diminuição do papel do Estado, a supremacia progressiva da mercadoria, o reinado do dinheiro, a sucessiva transformação da cultura, a massificação dos modos de vida combinando com a individualização e a exibição das aparências (cultura do espetáculo, já analisada por Guy Debord), o achatamento da história na imediatez dos acontecimentos e na instantaneidade informacional (ensejada fortemente pela internet e pelos outros meios de mídia), o lugar ocupado pelas tecnologias, ampliação da duração da vida e a demanda da saúde perfeita (já pontuada por Lucien Sfez), a desinstitucionalização da família, as interrogações sobre a identidade sexual, o conflito e a desafetação progressiva ao político e finalmente a publicização do espaço privado e a privatização do domínio público.
A perda desses grandes ideais em nossa cultura, fez com que a ideia de vida, religião e transcendência fossem abaladas na atualidade. Hoje, vivemos em um mundo que viu o sentido de vida ser banalizado e despido de qualquer significado, sobretudo após o advento da Segunda Guerra Mundial. Mas com o fim desta, a luta e a esperança em um mundo infinitamente melhor pareceu não dar lugar face ao que hoje encontramos em grandes e pequenos centros urbanos: crianças jogadas no lixo, pelas janelas de apartamentos de classe média ou ainda às margens de rios; perseguição e assassinatos de cidadãos comuns por aqueles que deviam resguardar a vida destes; o paraíso desenfreado da guerra dos narcotráficos; banalização e corrupção cada vez maior da política e dos políticos; virtualização e publicização dos espaços privados, sem contar o prolongamento cada vez maior da vida em termos em que a ciência pode almejar, recrudescendo o sentido empregado por Dufour, bem entendido, a vida tornou-se hoje nada mais do que um mero aglomerado de processos metabólicos em interação com o meio.
Verificamos, pois, que essas mudanças provocaram uma verdadeira "crise" no sentido de transcendência e do credo religioso. A crise da transcendência não significa apenas a perda de todos os ideais religiosos e a banalização do conceito de vida, o que poderia engendrar uma sociedade na qual a violência seria predicativa dessa crise. De acordo com o psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro “O ponto de vista do outro”, a atual crise de valores não significa ruptura, mas uma nova relação do sujeito com o transcendente. Na perspectiva do autor, “continuamos referidos ao Outro transcendente, isto é, aquilo que dá sentido à nossa existência como seres livres e autônomos, e que este Outro se corporifica no cânone da racionalidade grega e da espiritualidade judaico-cristã”.
Consequentemente, na atualidade, não mais conseguimos zelar pela valorização da vida de modo que esta possa ser pensada como um valor e ou um bem comum a todos os homens e a todas as mulheres.
Assim sendo, para Jurandir Freire o "transcendente" é o que ultrapassa a primeira natureza do sujeito, a que está contida no equipamento instintivo prévio à expressão linguística de sua capacidade imaginativa.
Se há uma crise da transcendência, ela se justificaria porque a vida perdeu seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar, destronadas pelo impacto imaginário da ciência, da economia e da indústria do espetáculo.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.
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