sábado, 23 de julho de 2011

As experiências religiosas e o sistema límbico


De acordo com o cientista Francisco Varela, em seu livro “Sobre a competência ética”, nosso cérebro é o resultado de uma evolução biológica e supõe um diálogo com o meio e sua consequente configuração neuronal. Esse sistema assim constituído é um sistema autorreferente, autônomo, determinista e relativista, que faz com que se possam gerar inúmeras narrativas de si, inúmeras descrições mentalistas e linguísticas de um determinado fenômeno, alimentado pela interação social. O corpo surge qual verdadeira máquina ontológica que com suas redes neuronais, com sua coordenação sensório-motora, com seu centro cerebral presidido pela lei da reciprocidade das suas diversas regiões, e com seu trabalho de rede, faz emergir o mundo.
Na verdade, faz surgir não só um novo mundo, mas também faz surgir um novo sujeito que a partir de então é definido e identificado pelo seu cérebro: o sujeito cerebral. Cada vez mais temos visto a necessidade de nos definir a partir das interações internalistas e externalistas mediadas pela mente e pelo cérebro, fazendo com que este seja necessário para nos identificarmos e sermos nós mesmos.
Não são imbróglio as pesquisas do neurologista indiano radicado nos Estados Unidos Vilayanur Subramanian Ramachandran, em seu livro “Fantasmas no cérebro”, ao considerar as experiências religiosas como pertencentes aos lobos temporais do cérebro, de modo com que fosse possível localizar através das mais modernas técnicas de imagem cerebral o exato “ponto de Deus no cérebro”.
Em suas pesquisas históricas e empíricas, baseados em casos clínicos, Ramachandran identificou que as crenças religiosas não são meramente o resultado de um desejo mágico religioso ou um anseio pela imortalidade da alma, mas também encontrou dados de intenso êxtase religioso experimentado em pacientes que tinham ataques no lobo temporal esquerdo, cuja experiência resultou na sensação de que Deus falara diretamente com esses pacientes tais como nos delírios do presidente do senado Daniel Paul Schreber, ou Santa Tereza D’Ávila e seus êxtases religiosos, ou ainda como as visões de São Paulo.
Seria então possível considerar que o sistema límbico é o responsável por todas as experiências religiosas já que ele é o principal responsável por todas as experiências e registros das emoções, tal como afirma o neurologista António Damásio em seu livro “O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si?
O registro das emoções é mediado pelas conexões neuronais intensas presentes nos lobos frontais e grande parte da interação das emoções depende dessa conexão entre os neurônios presentes nessa região do cérebro.
O sistema límbico, ainda é preciso considerar, é um sistema composto por uma série de estruturas interconectadas circundando um ventrículo cheio de fluído do cérebro e forma a borda interna do córtex cerebral. As estruturas, de acordo com Ramachandran, ainda incluem o hipocampo, amígdala, septo, núcleos talâmicos anteriores, corpos mamilares e córtex cingulado, mas não é um sistema nem sensorial nem motor, mas constitui o núcleo central do processamento das emoções humanas e é essencial no registro das experiências místicas ou religiosas.
Aqui não se discute a existência ou não da presença divina, mas sim que sem o repertório “biológico” do sistema límbico, dificilmente as pessoas poderiam experimentar as sensações que descrevem quando se encontra em êxtase religioso ou místico. Caberia também aqui questionar se uma pessoa descrente, um ateu, poderia experimentar as mesmas sensações divinas ou místicas do que uma pessoa fervorosamente religiosa.
Seria possível que nosso equipamento cerebral estivesse “formatado” para esse tipo de experiência, desenvolvendo um conjunto especializado de circuitos neuronais com o objetivo de mediar a experiência religiosa ou justamente porque temos esse equipamento cerebral é que somos capazes de observar essa experiência e descrevê-la como sendo um fenômeno divino, sem que para isso descartemos toda a construção do caldo cultural, social e linguística da religião e de nossas crenças?
Mas há ainda de se ponderar que essas experiências religiosas também fazem parte de nossa capacidade cognitiva e que se dão de modos distintos nos mecanismos neuroanatômicos e neurofisiológico tal como pontuado pelos neurocientistas D’Aquili e Newberg em seu livro “The mystical mind: probing the biology of religious experience, ainda não publicado no Brasil.
De acordo com esses autores, o comportamento religioso começa com uma operação e uma “inter-relação desses dois mecanismos do cérebro. No primeiro deles, é a percepção de sequências causais na organização da realidade”. Isso resulta, segundo os autores, “na tentativa de impor controle além do mundo através da manipulação de construtos causais opostos como deuses, demônios, espíritos ou outros agentes causais personalizados”. O segundo mecanismo é o resultado da “evolução neurofisiológica culminando no potencial de estados alterados desenvolvidos da consciência”.
Esse tipo de experiência é frequentemente interpretado como um rápido olhar dentro do mundo sobrenatural e tendem a confirmar a existência do poder personalizado gerado pelo primeiro mecanismo (neuroanatômico). Além disso, para algumas pessoas, “esse tipo de experiências podem facilitar a reorganização da estrutura da personalidade do indivíduo e realinhar sua concepção de mundo frente ao cosmos”, afirmam D’Aquili e Newberg.
A neuroteologia, assim, tem se firmado como uma ciência que tem buscado interpretações possíveis para fenômenos religiosos de diversas ordens, desnaturalizando o fenômeno religioso como uma mera construção cultural, social ou histórica das sociedades primitivas ou modernas ou por outro lado, reforçando e reafirmando a fidedignidade de nossas crenças de acordo com nosso equipamento biológico.
Caberia aqui, como ilustração, tomar de exemplo os experimentos de D’Aquili e Newberg ao escanear o cérebro de oito budistas americanos, praticantes da meditação tibetana e de três freiras franciscanas em oração contemplativa, buscando mostrar como em ambos os grupos poderíamos observar um aumento da atividade neural do córtex pré-frontal e uma diminuição da atividade lobo parietal posterior superior. O objetivo de tal experimento foi mostrar a relação entre a atividade mental e o seu correlato cerebral nas práticas de meditação de ambos os grupos.
De acordo com o filósofo e pesquisador das neurociências Francisco Ortega, a crítica a esses experimentos refere-se mais ao dualismo cartesiano clássico do que a obviedade de uma tradução materialista das experiências mentais ou espirituais.
Caberia perguntar se esses dados, procedentes do polo cerebral, fornecem alguma informação importante sobre o polo mental, para além do fato óbvio (se não quisermos reeditar alguma versão do dualismo clássico) de que toda a experiência mental (inclusive as espirituais) possui correlatos cerebrais. Podemos identificar a experiência espiritual de vazio, o Nirvana dos budistas, com o sentimento de comunhão com o Deus das freiras? Seria ingênuo se acreditássemos na identidade das duas. Obviamente, trata-se de duas experiências subjetivas completamente diferentes, correspondentes a duas visões de mundo, a concepções teológicas e espirituais diversas e a contextos socioculturais distintos, ainda que possuam o mesmo correlato neural. A riqueza e a diversidade do polo mental (espiritual) perdem-se na pretensa redução ao polo material, cerebral. Trata-se de uma tradução grosseira, simplificadora e ingênua, afirma Ortega. As variedades das experiências religiosas, segundo o autor, não são traduzíveis à monotonia e à uniformidade de seus correlatos neurais, pois nenhum mecanismo neural pode dar conta da totalidade e variedade de nossas experiências espirituais.
Assim, para usar a expressão do neurocientista John Horgan, poderia a “neuroteologia nos salvar” diante de nossa fragilidade diante de um mundo convulsionado por guerras religiosas, por fenômenos paranormais, místicos ou entidades superiores trazendo a imagem de Deus bem mais próxima do que a realidade científica tem tentado provar? É possível “fotografar Deus” no cérebro? As patologias cerebrais tais como epilepsia ou as convulsões do lobo temporal esquerdo que tanto afetam a experiência da vida e da realidade de um indivíduo, fazendo com que este perceba o fenômeno como uma experiência mística de contato com santos ou deuses pode dizer mais do que a própria existência de Deus nos mais variados sistemas de crenças religiosas que conhecemos? Se Deus existe, seriam estas pessoas selecionadas para experimentar sua presença do que o resto das pessoas ditas normais, tal como aconteceu com Santa Tereza D’Ávila, Joana D’Arc, São Paulo ou Van Gogh? E se assim o fosse, o fato de não ter esse tipo de distúrbio cerebral nos afasta ou nos aproxima ainda mais de Deus?
As respostas a estas questões são inúmeras. Por enquanto, os neuroteólogos não têm afirmado nem a presença nem a ausência de Deus no mundo, mas sim, em nosso cérebro. O terreno do ser é sempre mais do que nós podemos compreender e mais do que podemos articular. Deus é sempre mais do que nossa ideia de Deus.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.



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