sábado, 16 de julho de 2011

O silêncio nas asceses gregas e cristãs

Vejamos primeiro o termo ascese. Há dois usos distintos do termo: o primeiro refere-se à sua origem histórica (o termo é de origem grega e significa exercício) e o segundo ao uso do termo com o advento do cristianismo. Na acepção grega, a palavra era empregada no contexto do treinamento dos atletas e depois veio a significar disciplina, autocontrole, no terreno da vida moral. Com o cristianismo, ascese se tornou sinônimo de renúncia aos prazeres do corpo e do espírito. Quando passamos a falar de ascetismo, na língua corrente, queremos com isso nos referir às regras de vida no sentido de abdicar da fruição de satisfações físicas. De acordo com o Vocabulário de Foucault, de autoria de Edgardo Castro e publicado pela Editora Autêntica em 2009, no pensamento dos filósofos gregos, romanos e cristãos dos primeiros séculos, o termo se referia ao governo de si ou cuidado de si, ou seja, uma relação consigo mesmo que fosse plena, acabada, completa, autossuficiente e capaz de produzir essa transfiguração do sujeito. Na antiguidade, gregos e romanos compreendiam as asceses como um exercício de moderação, temperança, uso comedido de nossas capacidades físicas e mentais e não apenas a renúncia a tudo que era prazeroso ou agradável. Por outro lado, nossa noção de ascese está referida pela nossa herança cristã, pois foram os cristãos que, de fato, fizeram desses cuidados um equivalente da renúncia aos prazeres mundanos. 

Na filosofia, Pierre Hadot e Michel Foucault foram os que mais se referiram ao uso desse termo. Para o psicanalista Jurandir Freire Costa, ambos os autores se referem ao termo ascese com “o intuito de mostrar como, na cultura moderna, estamos perdendo a convicção de que podemos exercer a vontade e o julgamento para orientar nossas vidas na direção que pensamos ser mais justa, melhor ou mais feliz”. 

Mas como as asceses se refere ao conceito de silêncio na cultura grega e cristã?

A cultura do silêncio grega para Foucault, era uma cultura que estava a serviço pedagógico na relação entre o mestre e o discípulo. Apesar de uma certa “verborragia”, nessa cultura os discípulos deviam ficar em silêncio exercitando a arte de escutar. Essa condição, diz o autor, era indispensável para se alcançar a verdade e foi instaurada na época imperial, na qual a cultura platônica do diálogo cedeu lugar a uma cultura do silêncio e à arte da escuta, produzindo uma nova ascese do sujeito, qual seja, a ascese da prática de si. 

Na ascese filosófica da prática de si, o objetivo final é colocar-se de maneira explícita, contínua e obstinada com sua própria existência, de modo a constituir para si mesmo um equipamento de defesa contra os acontecimentos possíveis da vida.

Diferentemente, na ascese cristã, o objetivo é a renúncia de si, através do exercício da confissão, ou seja, através do momento em que o “sujeito objetiva-se a si mesmo em um discurso da verdade”. Para o autor, o objetivo além desse é a “subjetivação de um discurso verdadeiro em uma prática e em um exercício de si sobre si”.

A primeira etapa da ascese como subjetivação do discurso verdadeiro, segundo Foucault, serão as técnicas e as práticas de si, ou seja, a prática da leitura, da escrita, da escuta e da fala. Escutar, para Foucault é “escutar como se deve”, uma técnica do discurso verdadeiro da prática ascética. 

As palavras, nesse sentido, devem seguir uma certa organização do próprio discurso, ou seja, para que as palavras cheguem à alma do ouvinte, diz o autor, é preciso que sejam pronunciadas através de elementos ligados à própria palavra e organização do discurso e transmissão oral. Forma-se a partir disto, toda uma “ascese da escuta”. Bem lembrado, mas para “ouvir”, é necessário toda uma competência e experiência, que é a habilidade adquirida da escuta. É preciso praticar a “arte da escuta”, umas das “tecnologias do eu”.

Mas para alcançar a “arte da escuta”, segundo Foucault, é necessário alcançar uma das regras pitagóricas das práticas de si – o silêncio. Para fazer parte das comunidades pitagóricas, o silêncio era imposto por mais de cinco anos, mas não enquanto regra do nada dizer, do calar, ou do silêncio propriamente dito, e sim um modo em que todos os exercícios e práticas de ensino ou discussão se dariam em silêncio, sobretudo para os iniciados que deveriam praticar a “arte da escuta”. “Devia escutar, escutar somente, nada mais fazer senão escutar sem intervir, sem objetar, sem dar sua opinião e, bem entendido, sem ensinar”.

Quem quer aprender a arte da escuta, diz o autor, deve ser levado aos escritos de Plutarco (filósofo e prosador grego que estudou na Academia de Atenas e foi discípulo de Ammonius de Lamprae, este um profundo conhecedor da mística religiosa). No seu tratado, Plutarco declara que, “uma vez que esses anos de escola passam, o homem deve aprender a escutar o logos durante toda a sua vida de adulto. A arte da escuta é capital para quem quer distinguir a verdade e a dissimulação, a retórica e a mentira nos discursos dos retóricos. A escuta está ligada ao fato de que o discípulo não está sob o controle de seus mestres, mas na postura daquele que acolhe o logos. Assim se define a arte de escutar a voz do mestre e a voz da razão em si”, diz Foucault.

Em Plutarco, por exemplo, há toda uma série de observações sobre o silêncio. Ele é a via contrária da “tagarelice”, primeiro vício do qual é preciso se curar. O silêncio, diz ele, “tem algo de profundo, de misterioso e de sóbrio”. Foram os deuses, prossegue Foucault, que ensinaram o silêncio aos homens, e foram os homens que nos ensinaram a falar. Daí a educação verdadeiramente nobre se daria sob forma de guardar em silêncio para depois aprender a falar, e a partir disto, vemos na “economia do silêncio” em relação à linguagem, todo um desenvolvimento das espiritualidades. É neste sentido que Plutarco vai retomar a ideia do silêncio não apenas como uma arte para a educação dos deuses, mas também seria necessário reinar sobre si mesmo toda uma “economia estrita da palavra”.

Para ser um bom ouvinte, é necessário um silêncio ativo e significativo, e por isso, entenda-se, uma atenção e uma escuta. Com isso, Foucault forja uma “ética da palavra”, na qual pode seguir dois rumos: a primeira, como uma das “tecnologias do eu” sob forma do “conhece-te a ti mesmo” através do exercício da regra do falar e do calar, do tudo dizer e do escutar. A segunda, sob forma de práticas sobre si mesmo através da arte da meditação, ou seja, um exercício de pensamento sobre si, sobre a própria interioridade e da “transcendência do eu”.

“Na meditação, o sujeito é incessantemente alterado por seu próprio movimento; seu discurso suscita efeitos no interior dos quais ele é tomado; ele o expõe a riscos, o faz passar por provas ou tentações, nele produz estados, e lhe confere um estatuto ou uma qualificação que ele de modo algum detinha no momento inicial. Em suma, a meditação implica um sujeito móvel e modificável por efeito mesmo dos acontecimentos discursivos que se produzem” , afirma Foucault. 

A palavra meditação, do latim meditatio (ou do verbo meditari) traduz, segundo o autor, o substantivo grego meléte, do verbo grego meletân, que não tem o mesmo emprego para a palavra meditação na forma como a empregamos hoje. Meléte, na verdade significa exercício, treino, modo de exercitar-se. Meletân, por sua vez, é um exercício de pensamento, ou ainda um “exercício em pensamento”, diferente mais uma vez do que se emprega correntemente com meditação.  

Meditar, no modo como usamos a palavra em nossa cultura, significa pensar com intensidade particular em alguma coisa sem nenhum tipo de aprofundamento do seu sentido ou deixar o pensamento em alguma coisa específica.

Na meditatio, ao contrário, busca-se apropriar-se de um pensamento de modo tão profundo que acredita-se que ele seja verdadeiro fazendo com que esta verdade seja gravada no espírito. Na meditatio, busca-se também fazer uma espécie de experiência de identificação.

De acordo com Foucault “na meditação, o sujeito é incessantemente alterado por seu próprio movimento; seu discurso suscita efeitos no interior dos quais ele é tomado; ele o expõe a riscos, o faz passar por provas ou tentações, nele produz estados, e lhe confere um estatuto ou uma qualificação que ele de modo algum detinha no momento inicial. Em suma, a meditação implica um sujeito móvel e modificável por efeito dos acontecimentos discursivos que se produzem”.

Sabemos que na meditação, toda a construção da interioridade e da transcendência do eu se dá em silêncio, porém, o que Foucault chamará de uma “ética do silêncio” refere-se a relação entre o mestre e o discípulo através da economia das palavras. O que se impõe entre ambos é um silêncio organizado, obediente a regras, signos de atenção construindo não só uma ética mas uma técnica do silêncio, onde encontraremos a parrhesía.

A parrhesía refere-se à condição de transmissão de um discurso verdadeiro para a constituição de si. É o “tudo dizer” sem nenhum tipo de omissão, sem nenhum tipo de censura, sem nenhum tipo de juízo ou julgamento moral. É a “franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com que se diga o que se tem a dizer, da maneira com se tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer”.

O que é importante considerar nas práticas meditatórias das experiências religiosas é que o silêncio vivido aqui nunca é uma ausência de palavras, pelo contrário, o silêncio nas experiências místicas ou religiosas é um esforço que o sujeito faz sobre si mesmo, preparando a alma para uma escuta profunda do seu próprio eu ou de Deus, ou ainda um acolhimento da sua própria interioridade. O silêncio neste caso, deve ser considerado como a via privilegiada que conduz a Deus. É um trabalho de si sobre si mesmo, voltando-se para o próprio interior. Com isso, Foucault forja ao mesmo tempo, duas éticas: a ética da palavra e a ética do silêncio.

No que compete à ética da palavra, ela estava baseada na leitura e na escrita, ou no uso comedido das palavras. “primeiro, ler poucos autores; ler poucas obras; ler, nestas obras, poucos trechos; escolher algumas passagens consideradas importantes e suficientes”. Já a ética do silêncio, está baseada em um encontro com o mundo interior ou à interioridade do sujeito e à sua vida subjetiva através de exercícios tais como os propostos pela cultura grega através do “conhece-te a ti mesmo” ou pela cultura cristã através das práticas ascéticas da renuncia, da confissão e da meditação.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo belo artigo. Gostaria de sugestões de leitura, ja descobri o Pierre Hadot. Tens alguma sugestão de outros autores? Meu e-mail: Elton @eltonoliveira.com.br

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