quarta-feira, 6 de julho de 2011

Silere e tacere: o silêncio na psicanálise IV

Em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade”, Jacques Lacan fala de uma ética convertida ao silêncio apresentando uma dupla alternativa deste silêncio: aquela representada pela via do pavor e uma outra representada pela via do desejo: “Uma ética se anuncia, convertida ao silêncio, não pelo caminho do pavor, mas do desejo: e a questão é saber como a via de conversa da experiência analítica conduz a ela”. A via do pavor, certamente, não é a via na qual a psicanálise se sustenta, pelo contrário. A não ser que a isto Lacan esteja se referindo uma possível frustração do desejo do analisando diante do silêncio taciturno do analista. Por outro lado, a via do desejo se coloca a favor da psicanálise, posto que é pelo desejo de uma verdade inconsciente que algo é produzido no setting analítico.

No Seminário 12, “Problemas Cruciais para a psicanálise”, Lacan relaciona o silêncio ao grito, a partir do quadro homônimo de Edvard Munch. Para Lacan, o grito é o que provoca o silêncio, posto que, ao anulá-lo, ele o faz surgir. O grito, na verdade é o abismo onde o silêncio se precipita, ou como ainda diz André Green, é preciso entender que a estrutura inconsciente é reverberada-reverberante . Isto significa que as diferentes posições fazem eco uma às outras.

Mas é no Seminário 14, “A Lógica do Fantasma”, que anos mais tarde Lacan proporá o paradoxo do silêncio original ao silêncio produzido pela situação do calar-se: sileo e taceo.

Quando da apresentação de sua palestra nos seus seminários brasileiros, publicados em “Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan”, Jacques-Alain Miller explica que este título a partir da sua referência gramatical. Silet em latim é a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo “silere”, que pode ser traduzido como a atividade de “permanecer em silêncio”, no sentido de um verbo ativo. Para ele, quando se diz “calar-se”, imaginamos que alguém nos faz calar, porém, trata-se de uma atividade de guardar silêncio. Por conseguinte, “taceo” seria o silêncio da palavra não-dita, o calar-se, o silenciar-se ou ser silenciado. Sileo é um silêncio fundante, estruturante e sugestivo da ausência essencial da palavra, ou dito de outro modo, o buraco, o vazio da significação. Segundo Lacan, “sileo não é taceo. O ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem apesar de que a essência do sujeito culmine nesse ato; se exerce a sombra de sua liberdade, o calar-se permanece carregado de um enigma por ter passado tanto tempo na presença do mundo animal ”.

Com isso, Lacan postula que haveria, entre tantos, dois tipos de silêncio: um silêncio que é, em sua forma original o nada a dizer, o calar-se, ressaltando que a palavra guarda em si mesma o vazio do silêncio. O sileo é o nada dizer, é permanecer de boca fechada ressaltando os poderes e o valor da palavra diante de um discurso que não se apresenta. O analista põe-se sempre a falar do silêncio do seu analisando posto que, quando fala, fala ou deveria falar a partir do silêncio daquele. Há, portanto, afinidades diante do silêncio e do gozo, satisfação dita inconsciente, satisfação esta da qual não se sabe absolutamente nada. Aqui há uma condição fundando do sujeito, o do “fala-a-ser” (parlêtre).

Existe, porém, de acordo com Jacques-Alain Miller, o gozo de não falar, o taceo. Se um discurso dirigido a um Outro que permanece em silêncio, encontra a si mesmo, então a experiência do calar-se, do taceo, diz de uma outra condição, qual seja, a de um “falta-a-ser”. Esta não é a função da análise. A função da análise é ensinar ao analisando que há um sujeito por trás da sua história. Que o trágico enigma a ser desvendado pelo Rei Édipo é a verdade escondida por trás da sua própria história, ou dito em outras palavras, é nada mais do que a verdade do seu sintoma. 

O que ensinamos ao sujeito é reconhecer como seu inconsciente, é sua história – isto é, ajudamo-lo a perfazer a historicização atual dos fatos que determinaram já em sua existência um certo número de 'volteios' históricos. Mas se tiveram esse papel é já enquanto fatos de história, isto é, enquanto reconhecidos em um certo sentido ou censurados numa certa ordem.

É necessário, portanto, remeter o analisando à sua falta enquanto sujeito que nada sabe sobre a sua condição de “falta-a-ser”. Assim, diz Lacan, para libertar a fala do sujeito “introduzimo-la na linguagem de seu desejo, isto é na linguagem primeira na qual, para além do que nos diz dele, já ele nos fala malgrado seu, e nos símbolos do sintoma em primeiro lugar, pois a função da linguagem não é a de informar mas de evocar ao sujeito a sua verdade.

O que Lacan faz é reforçar que a análise não pode ter nenhuma outra finalidade senão o advento de uma fala verdadeira e a realização pelo sujeito de sua história na sua relação com um futuro e com o Outro. Quanto a isto, estamos todos de acordo.

O silêncio é, portanto, o tempo prévio em que a sucessividade transforma-se em simultaneidade, a reverberação concluída permitindo ao reverberado traduzir-se em uma outra sucessividade. Em outras palavras, o silêncio é o lugar do apagamento do manifesto de forma que possa revelar o latente. O silêncio é, na acepção de André Green, a ausência pela qual o manifesto cai no vazio para ressurgir sob forma de latente. O silêncio é condição, tempo no futuro do pretérito, governado pelo pensamento implicativo. Se... então.

Existem, portanto, inúmeros silêncios que se fazem presentes. O silêncio estrutural das pulsões (sileo) e de uma palavra não dita ou calada (taceo), o silêncio das resistências, o silêncio da transferência, o silêncio da elaboração e da perlaboração, o silêncio do recalque e o silêncio da pulsão de morte, ou o silêncio ancorado no mutismo.

O silêncio no decurso de um processo analítico se faz presente e precisa ser ouvido.

Ora, se a função da psicanálise é fazer ouvir a verdade, então ela se confronta com dois polos: o indizível representado pelo Real que, ao invés de calar-se, leva o sujeito a ter que dizer, mesmo que seu dizer fique esquecido. Esse “ter que dizer” nada mais seria do que uma “ética do dizível” contrapondo-se aquilo que Wittgenstein denominou de “ética do indizível”, ou seja, aquela em que o silêncio é tomado não como efeito da recusa de falar, mas como o falar a partir das condições de possibilidade da própria linguagem.

A partir deste aforisma, o silêncio estaria representado pelo espaço entre o dito e o não dito, ou seja, uma ética do dizível e do indizível, ou ainda, em outras palavras, entre uma impossibilidade de tudo falar e um necessidade de tudo ouvir.

Enquanto que em Wittgenstein o silêncio é uma possibilidade de não colocar sob forma de palavras as representações que são suscitadas no decurso de um pensamento, de uma elaboração e de uma introspecção, o indizível representado pelo Real em Lacan é justamente o que leva o sujeito a falar.

O real com que se defronta a análise é um homem a quem é preciso deixar falar. É na medida do sentido que o sujeito faz, efetivamente, ao pronunciar o 'eu' (je), que se decide se ele é ou não aquele que fala; mas a fatalidade da fala, ou seja, a condição de sua plenitude, cada instante, a ser em questão, em sua humanidade, seja tanto aquele que fala quanto aquele que escuta. Porque, no momento da fala plena, ambos participam igualmente dela.

Nesta perspectiva, podemos depreender que ao ressaltar os valores da palavra, conforme vimos, compreendendo-a como ausência ou presença de sentido, Lacan, funda uma ética da palavra, do dizível e da linguagem, não havendo espaço para o interdito, o não-dito, ou o silêncio na cena analítica.

 


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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