Em 1632, enquanto numa próspera cidade de Amsterdan nascia o filósofo Espinosa, um jovem de 23 anos, chamado Rembrandt, pintava aquele que seria o quadro que daria início à sua carreira – A lição de anatomia do Doutor Tulp – famoso médico e cientista da época, por ocasião de uma palestra por ele proferida. O quadro representa um dos mais famosos acontecimentos da medicina: a dissecação anatômica de um cadáver, evento que não só atraia a curiosidade do grande público, como também dizia muito do saber médico. A interioridade do sujeito, seus segredos, sua intimidade e sua suposta verdade, ainda não estavam referidas à sua dimensão psicológica, pelo contrário, ela estava eminentemente centrada na materialidade e visceralidade da interioridade do corpo, fazendo com que o período compreendido entre os séculos XVI e XVII fosse chamado de “o século visceral".
Era um período marcado pelas grandes aulas “teatrais” de dissecação anatômica do corpo. Sua interioridade não estava comprometida com uma dimensão mentalista ou psicológica, pelo contrário, a interioridade do sujeito dizia respeito à produção do saber interpelado por um “corpo cadáver”, cuja morte aos poucos foi sendo introduzida no pensamento médico, denominando aquilo que Foucault chamou de “a dimensão biopolítica da medicina".
Conforme sabemos, desde a última década vimos surgir um crescente interesse pelas diversas modalidades de domínio e controle através de cuidados corporais, médicos, higiênicos, ascéticos e estéticos, levando a formação daquilo que alguns autores vêm alertando para a produção de novas identidades – bioidentidades - que deslocou a construção do nosso eu e da nossa interioridade para a superfície do corpo, sendo capturada e referendada em grande maioria pelo olhar do outro.
Hoje, verifica-se, com certo assombro, a quantidade de modificações corporais que se vivencia em nossa sociedade, através do apelo da mídia, da moda, do uso do “corpo modificado” como um novo lugar que o sujeito contemporâneo precisa ocupar no registro simbólico, reforçando no nosso imaginário que a aparência, de fato, virou essência. Veja-se, por exemplo, a febre em torno daquele que ficou conhecido como Zombie Boy (clique aqui para ver algumas de suas fotos).
Talvez não nos seja possível precisar o momento exato em quando se deu essa valorização do corpo como um objeto. Em um momento, a valorização da imagem corporal não era sinônima de valor moral – nosso eu, nossa subjetividade e tudo aquilo que nos definia eram sinônimos de valor interior, da ética, da educação, dos bons costumes e, sobretudo, do nosso caráter, ou dito em outras palavras, éramos definidos como sujeitos éticos e este traço da nossa personalidade era repassado e sustentado através de gerações. No momento seguinte, com o avanço do capitalismo, da sociedade de consumo, do império da moda e da publicidade, da ascensão da cultura da imagem e do espetáculo, do ideal de beleza e bem estar físico e corporal, a concepção de sujeito mudou! Passamos a ser definidos pela nossa imagem, por aquilo que apresentamos como valor estético e corporal, ou seja, ressaltamos nossa aparência em detrimento a nossa essência.
Segundo a antropóloga Mirian Goldberg, a segunda metade do século XX viveu um culto ao corpo e ganhou dimensão social inédita ao entrar na era das massas: industrialização, difusão generalizada das normas e imagens, profissionalização do ideal estético com a abertura de novas carreiras, inflação dos cuidados com o rosto e principalmente o corpo. A mídia, como não poderia deixar de ser, e aliada à moda, teve influência sobre os indivíduos, generalizando a paixão pela moda, expandindo o consumo de produtos de beleza e tornando a aparência uma dimensão tão essencial da nossa identidade e da nossa subjetividade para um número cada vez mais crescente de homens e mulheres.
Antes, éramos orientados por valores tradicionais (família, classe social, cultura local, etc.) cujas identidades e papéis sociais eram atribuídos por herança, conforme nosso pertencimento a determinados laços sociais. Agora, a sociedade moderna, ou precisamente a sociedade contemporânea, diz que para sermos alguém necessitamos ser saudáveis, porém, a saúde referida não é mais “a vida no silêncio dos órgãos”, para usar a expressão de Leriche, e sim, o espetáculo proporcionado pela imagem “saudável” de corpo.
A saúde, por consequência, tornou-se submissa àquilo que alguns autores também vêm chamando de “healthism”, ou seja, uma ideologia que combina um estilo de vida hedonista junto a uma corpolatria generalizada e cada vez mais encerrada na aparência.
Ora, se a aparência virou essência, as modificações corporais dão o tom da nova moda do mercado fazendo com que quem não se enquadre nesta categoria, está fora do circuito, portanto, faz parte do mundo dos excluídos. Agora, a nova moral corpórea nos faz perguntar: “Com que corpo eu vou?”.
Quem não consegue alcançar esse modelo ideal ou tenta sobreviver ao ditame imperioso da aparência, ou sucumbe às novas patologias somáticas. Adicione a isso, o “modismo” das modificações corporais que ganhou forma de modo mais enfático a partir da segunda metade do século XX: cirurgias plásticas para redução ou aumento de determinadas partes do corpo; lipoaspiração; piercings; tatuagens, que fazem do corpo um espaço de arte (body art); a indústria da moda, cujas roupas (ou até mesmo a falta delas) formam uma espécie de “segunda pele natural” identificando valores estéticos coletivos; rígidas e variadas dietas de emagrecimento publicizadas até mesmo nas capas de revistas ou em programas de televisão dentro e fora do horário nobre; fisiculturismo e diversas modalidades de ginástica; práticas mutilatórias, tais como próteses corporais, stretchin (abertura e alargamento de orifícios em determinadas partes do corpo – língua e orelha, principalmente); cirurgias para redução do estômago, último recurso para pessoas que sofrem de obesidade mórbida, mas que na última década se popularizou de tal modo que mesmo pessoas com sobrepeso têm lançado mão desse artifício cirúrgico; as formas mais comuns de patologias somáticas encarnadas na superfície do corpo ou de drogadição; a cultura do healthism ou bodysm, cuja ideologia e moralidade da saúde e do corpo perfeito, faz com que sejamos escravos da estética e da beleza; branding (queimar a pele), que faz da superfície do corpo um território, um lugar, uma área fronteiriça entre natureza e cultura, interno e externo, eu e o outro, que é o domínio privilegiado das identidades e tem transformado a relação entre o nosso eu e o mundo como uma espécie de encenação nos mais variados “teatros do corpo”. Sendo assim, o eu parece deixar de ser o mínimo denominador comum entre a interioridade e a exterioridade, para tornar-se o máximo denominador comum de uma cultura que tem se submetido a todas as formas de incitação, agora, não mais baseado no discurso, e sim, na “linguagem do silêncio dos corpos”.
O eu interior, portanto, sobrevive naquilo que você gostaria de ser, pensa que é ou ainda naquilo que você deseja ser. Quem fala agora, é a pele, tela branca que reflete as projeções pictográficas de uma cultura voltada eminentemente para o hedonismo, corpolatria, espetáculo, consumo e a moral das sensações.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.
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