domingo, 17 de julho de 2011

Finitude


Por que tememos tanto assim a morte? Por que tememos aquilo que não é possível controlar? Por que nossa cultura faz da morte, um tabu, algo do qual não podemos falar, como outro aspecto normal da vida? Por que fazemos da morte um estado fronteiriço, um limite ou a negação da própria vida?

Talvez porque como antevira Freud, o nosso “eu”, o nosso “self”, aquilo que nos personaliza e nos individualiza, não pode pensar no seu próprio aniquilamento porque também como ele já havia alertado, o nosso eu é “essencialmente narcísico”. Ele não suporta a sua destruição. E pensar nisso produz uma angústia terrível: a angústia de não mais existir, ou melhor, a angústia de deixar de existir!

Assim, pensar a morte como um limite, uma fronteira entre a vida e aquilo que desconhecemos implica em pensar que a morte também pode ser transgredida, e essa possibilidade se conjura através da sua negatividade. A que isto se refere?

Na tradição da filosofia ocidental, o homem figura tanto como um ser “mortal” quanto um ser “falante”, pois é o único animal que possui a faculdade da linguagem e da morte. Tanto uma quanto a outra são pressupostas aos homens e jamais são colocadas em questão. A faculdade da linguagem e a faculdade da morte abrem ao homem a sua morada mais própria e a desvelam como já sendo permeada pela negatividade.

Para Heidegger e Hegel, o lugar da negatividade na subjetividade humana se daria através da interconexão entre linguagem e morte. O homem, uma vez que é ao mesmo tempo falante e mortal, é o ser negativo que “é o que não é” e “não é o que é”, ou seja, o lugar do nada.

A possibilidade de transgredir a morte, a partir desse referencial teórico, só pode ser pensada a partir do conceito de “ser-no-mundo”, o Dasein de Heidegger, visto que o “ser-no-mundo” é sempre uma posição de superar essa fronteira, no sentido de um limite, um fim.

O “ser-no-mundo” é a transgressão desse limite, ou seja, é sempre o seu “não-mais” e o seu “não-ainda”, seu fim é um “ser-para-o-fim” e só nesse sentido que a morte pode ser considerada como um fenômeno que faz parte do próprio processo da vida.

De acordo com o filósofo Giorgio Agamben  o Dasein é, na sua própria estrutura, um ser-para-o-fim”, ou seja, um “ser-para-a-morte” e como tal está desde sempre relacionado a ela, logo, “a morte assim concebida não é, obviamente, aquela do animal nem simplesmente um fato biológico. O animal, o somente-vivente, não morre, mas cessa de viver”.

Para Heidegger o “ser-no-mundo” (Dasein) é um ente que existe no mundo, e com tal, pode experimentar diversos aspectos da vida, inclusive a morte. Aceitar a sua condição de ser um “ser humano” é também ter a capacidade de experimentar a morte enquanto morte. Apenas o homem morre, o animal perece. O animal não tem a morte nem diante nem atrás de si, diz Heidegger, porque o animal não possui o equipamento da linguagem e é isso que o diferencia dos seres humanos, logo o animal não pode fazer um juízo de valor, não pode valorar a vida como também não pode valorar a morte, e ao não estabelecer nenhum tipo de juízo sobre a sua existência, não pode pensar na sua finitude nem na sua condição de um ser mortal. Só aos homens lhes foi permitido essa faculdade de pensar o ser mortal que é. Segundo Heidegger “os mortais são aqueles que podem ter a experiência da morte como morte. O animal não o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relação essencial entre morte e linguagem surge como num relâmpago, mas permanece impensada. Ela pode, contudo, dar-nos um indício relativo ao modo como a essência da linguagem nos reivindica para si e nos mantém desta forma junto de si, no caso de a morte pertencer originalmente àquilo que nos reivindica”.

Para o autor, o ser humano é um ente que tem a capacidade de experimentar seu ser mortal, enquanto sua possibilidade contínua e iminente de morrer. E ter essa capacidade modifica nossa relação com o mundo, com nós mesmos e com o outro. A morte, para nós, nos desestabiliza de todas as nossas certezas, desaloja os mortais de seus hábitos e relações costumeiras com a vida. A morte nos isola, nos particulariza e, sobretudo, nos singulariza. A partir disso, podemos compreender que a autêntica antecipação da morte de alguém consiste na compreensão da nossa finitude.

Retomo aqui as características ontológicas do Dasein contidas no pensamento de Martin Heidegger para compreender o nexo existente entre linguagem, morte e negatividade na subjetividade humana. De acordo com Heidegger, em sua metafísica do ser, o Dasein se constitui como um “ser-aí” ou como um “ser-o-aí”, o lugar em que o ente, a essência do ser humano, se constitui essencialmente através do “ser-no-mundo”, logo, o Dasein é, antes de tudo, a abertura do ser humano para o mundo enquanto uma entidade que faz parte do próprio mundo. É a partir da sua entrada no mundo que o ser humano pode pensar na sua existência, mas não antes de nascer, visto que a consciência de existir ainda não está formada. Mas ele pode pensar o mundo sem a sua existência (logo, antes do seu nascimento e após sua morte), mas apenas como uma “impossibilidade de existência”. Se olharmos para trás, podemos imaginar a historicidade do mundo sem a nossa presença. Se projetarmos um futuro para o mundo, podemos imaginar que prédios, cidades, florestas, mares e oceanos possam ou não existir, independente da nossa presença no mundo. Logo, não somos parte do mundo apenas porque estamos nele como “recém-chegados”; para usar a expressão de Hannah Arendt. Nós podemos experimentá-lo tanto como uma possibilidade quanto uma impossibilidade de nossa existência.

Nós não podemos experimentar, sequer a antecipação da morte. No máximo, podemos projetá-la como possibilidade ontológica do ser e testemunhada na sua mais concreta possibilidade existencial, na experiência da voz da consciência e da culpa.

Com sua implacabilidade, a morte se apresenta como um assassino, ela nos vem como se fosse “um outro” a invadir nossa tranquilidade; ela nos surpreende e nos toma de assalto – mas não podemos antecipá-la, sequer no suicídio. Seu poder é sua impredizibilidade ou o seu desconhecimento. Logo, a morte é para o outro, não é para mim. Ela é um artifício, ela brinca conosco, nos ridiculariza, nos faz de tolo. O último riso não é o nosso. Eu não sou mestre de minha própria morte. A morte é aquela sobre a qual eu não tenho domínio. Tirar minha vida não é morrer para mim mesmo, é morrer para o outro visto que tenho em mente o efeito da minha morte nos outros, mas não da minha morte em todo o mundo e é desse modo que Hence Blanchot fala da “impossibilidade do suicídio”.

Então, por que temer a morte?

Visto que a morte é acima de tudo, um fenômeno existencial, uma possibilidade ou uma angústia, a morte também pode ser compreendida como uma disposição afetiva que se abre para o ser humano como mortal e a compreensão deste como um ser finito. Portanto, a dicotomia “nascimento” e “finitude” faz parte da nossa natureza humana. Ora, mas se tanto um quanto outro faz parte de nós mesmos, porque não tememos o nosso nascimento, e sim a morte?

Dado que ninguém morreu e voltou da morte para nos contar a sua experiência para que possamos valorizá-la positiva ou negativamente, nossa angústia diante da morte reside no fato que pensamos nela como um fim em si mesmo, independente do nosso credo religioso.

Essa é a nossa incondicional dessimetria valorativa entre o viver e o morrer, entre o nascimento e o falecimento, entre a vida e a morte.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

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