segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A CURA PELA PALAVRA



Uma das mais poderosas e duradouras imagens criadas por Freud acerca da história da humanidade, encontra-se em um texto de 1917 intitulado “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”.

Nesse texto, Freud defende a ideia de que sua teoria se juntaria aos efeitos produzidos por Copérnico e Darwin, naquilo que ele denominou de “feridas narcísicas”. Segundo Freud, com Copérnico, o ser humano havia sido varrido da majestática posição de centralidade do universo, e relegado a uma segunda posição de um planeta perdido no infinito, quando se descobriu que o sol, e não a terra era o centro do universo. Em seguida, com Darwin, é a auto imagem da criação divina que é posta em dúvida, quando o pesquisador reduziu o homem ao mero produto de combinações biológicas e aleatórias. Por fim, veio o golpe de misericórdia com o próprio Freud, ao afirmar que “o eu não é senhor nem mesmo dentro da sua própria casa”, com a “descoberta” do inconsciente.

A imagem dada pela psicanálise para o homem era de um ser permanentemente em conflito, dividido, acossado por impulsos e motivações das quais não teria governo. A ideia de “descentramento do sujeito”, dada por Freud foi a pedra de toque e a marca fundamental da psicanálise, que a distinguia das outras teorias sobre o ser humano, sobre a subjetividade, sobre o psíquico e sobre a mente.

Essa história marca não só a carreira do próprio Sigmund Freud, um médico vienense nascido em Freiberg, na Moravia (ou Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio de 1856, como a própria história da psiquiatria, da loucura, da própria psicanálise enquanto uma práxis sobre a subjetividade, além dos modelos médicos para tratamento de determinados fenômenos do final do século XIX conhecido de uma doença denominada de “histeria”.

A crença na eficácia anátomo-patológico foi partilhada por Charcot, neurologista e professor de anatomia e patologia da Faculdade de Medicina de Paris, que logo foi abandonada para então introduzir a histeria no campo das perturbações fisiológicas do sistema nervoso, buscando novas intervenções clínicas, dentre as quais, a hipnose.

E é no inverno de 1885, em Paris, que se dará o encontro entre Charcot e Freud quando este assiste o curso com aulas práticas na Salpêtriére, aderindo ao modelo fisiológico da histeria oferecido por Chacot.

Para Charcot, a histeria não era uma simulação, pelo contrário, era uma doença funcional com um conjunto de sintomas bastante delimitados e que podia atingir tanto homens quanto mulheres. Foi ele o responsável por trazer a histeria do campo psiquiátrico para o campo da neurologia, e Freud foi o responsável por retirá-la do campo da neurologia e introduzi-la em um novo campo que se formava a partir dos estudos com seu mestre naquilo que o mundo viria a conhecer como sendo a psicanálise.

Como clínico Freud tratava essencialmente de mulheres da burguesia vienense, qualificadas como "doentes dos nervos" e sofrendo de distúrbios histéricos. Ele procurou, antes de tudo, curar e tratar de suas pacientes, aliviando os seus terríveis sofrimentos psíquicos. As mulheres apareciam com um conjunto de sintomas que não diziam respeito em nada das causas que a provocavam: algumas tinham dificuldade de enxergar, outras tinham dificuldade em beber água, mais algumas ficam paralisadas ou retorcidas, quando não deixavam de andar, ouvir ou até mesmo falar. Durante um ano, Freud utilizou os métodos terapêuticos aceitos na época: massagens, hidroterapia, eletroterapia. Mas tão logo constatou que esses tratamentos não tinham nenhum efeito, passou a utilizar a hipnose, inspirando-se nos métodos de sugestão de Hippolyte Bernheim e influenciado pelas doutrinas de Charcot e posteriormente Josef Breuer.

Trabalhando ao lado de Josef Breuer (médico austríaco), Freud abandonou progressivamente a hipnose pela catarse, inventou o método da associação livre e, enfim, a psicanálise. Essa palavra foi empregada pela primeira vez em 1896 e sua invenção foi atribuída a Breuer.

Da nova teoria do inconsciente nasceria em novembro de 1899 “A Interpretação dos Sonhos”: "Você acredita", escreveu a Fliess, no dia 12 de junho de 1900, "que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: 'foi nessa casa que, em 24 de julho de 1895, o mistério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud'? Até agora, tenho pouca esperança".

A cura pela palavra. Foi assim que Freud definiu a teoria e técnica que construíra ao longo dos anos, dando “voz” aos sintomas de seus pacientes.

Mas no início da psicanálise, Freud intervém sem parar. Pergunta, questiona, duvida, volta ao ponto inicial do discurso, quer saber detalhes, estimula o tempo todo seus pacientes a falarem quando estes se retraem diante de algum pensamento.

A técnica psicanalítica ainda não estava aprimorada. Ela estava em efervescência e Freud estava tomado pela sua descoberta. Ele precisava testá-la, precisava operacionalizá-la, comprovar as teorias que ele vinha construindo. Nesse embate, o paciente fala. O analista fala. Havia pouco espaço para o interdito.

Surge assim aquilo que ficou conhecido como sendo a primeira tópica freudiana, centrada no tripé “consciente, pré-consciente e inconsciente”. O livro “A Interpretação dos Sonhos” e todos os textos decorrentes de 1900 em diante são resultantes desse período em que se inaugura a psicanálise, até a descoberta do outro tripé da psicanálise, que ficou conhecida como a segunda tópica: eu, isso e superisso, que na tradução do alemão para o inglês de James Strachey, e desta para a Edição Standart Brasileira das Obras Completas em português, ficou conhecida por id, ego e superego.

Com essas duas formulações, surgem então os conceitos que hoje são praticamente de domínio público: histeria, neurose, psicose, perversão, narcisismo, complexo de Édipo, complexo de castração e as famosas fases no desenvolvimento do sujeito, entre tantos outros conceitos.

A genialidade de Freud não estava em “inventar” esses conceitos e sim, na sua capacidade de dar voz aos distúrbios emocionais e psíquicos que ficavam escondidos sob forma de sintoma de seus pacientes. Casos clássicos ficaram conhecidos entre todos nós: Schereber, Leonardo Da Vinci, O homem dos lobos, Caso Dora, Caso Hans.

E ao dar voz aos seus pacientes e “visualizar” os sintomas que se manifestavam, Freud pôde propor aquilo que hoje é usado na maioria das correntes clínico-terapêuticas que é a cura pela palavra, muito embora a medicina e a farmacologia há duas décadas venham tentando dissuadir leigos de que esta forma de tratamento está ultrapassada e que a psicanálise não cabe mais em uma cultura do espetáculo, da imagem e doe consumo, que não tem muito tempo a perder para mergulhar em si mesmo buscando um auto-conhecimento.

Mal sabem eles que a mesma ciência médica, agora sob forma das tecnologias de visualização de imagens cerebrais vem confirmando aquilo que Freud já vinha defendendo desde o início do século passado: a palavra não só tem força performática como tem poder de cura. Na atualidade, isso pode ser mostrado “in loco” através das mudanças no córtex cerebral de todo aquele que já se submeteu a um tratamento psicanalítico ou psicoterápico. Nada mais gratificante para um homem que tinha apenas a palavra como ferramenta de trabalho.


Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br .