Da cultura grega, passando pela cultura japonesa e chegando até nossa cultura ocidental, o silêncio é acima de tudo algo que pode ser tomado em uma ampla dimensão de conceitos teóricos, antropológicos, filosóficos, sociológicos, jurídicos e psicológicos ou psicanalíticos.
Para o sociólogo David Le Breton, em seu livro “Do Silêncio”, o silêncio pode ser considerado um vestígio arqueológico na medida em que estrangula um intruso: a palavra.
Linguagem e comunicação, portanto, são as contrafaces do silêncio e do não dito, do pensado e do segredo, da palavra vazia e do calar-se, ou, como diz o autor, “a saturação da palavra induz o fascínio do silêncio”.
Bem sabemos que na comunicação, não há lugar para o silêncio, pelo contrário, estamos o tempo todo sendo coagidos a proferir uma palavra, a esboçar um pensamento, a dizer uma verdade, a dar um testemunho, a falar e a dizer o que nos vem à mente (tal como numa sessão de psicanálise), pois, para a comunicação, a palavra nada mais é do que a resolução de todas as dificuldades pessoais e sociais que o silêncio pode promover. É preciso, portanto, produzir uma fratura no silêncio através do discurso para alcançarmos o verbo.
A ideologia da comunicação, segundo Le Breton “assimila o silêncio ao vazio, a um abismo no seio do discurso. Não compreende que, às vezes, é a palavra que forma a lacuna do silêncio”, que por sua vez é inimigo do “homo communicans” e implica em uma verdade a ser proferida, “uma interioridade, uma meditação, uma distância assumida em relação à turbulência das coisas, uma ontologia que não tem tempo de aparecer, se não estivermos atento a ela”.
Ainda segundo o autor, “o imperativo de dizer tudo dissolve-se na ficção de que tudo foi dito, mesmo se deixar sem voz aqueles que teriam coisas diferentes a dizer, ou teriam escolhido um discurso diferente. Dizer não é suficiente, nunca é suficiente, se o outro não tiver tempo para ouvir, para assimilar, para responder”.
Estamos envoltos hoje em um mundo saturado de comunicação de massa: televisão, telefone celulares, internet, rádio-transmissores, aparelhos de mp3, anúncios digitais de notícias ao vivo em grandes capitais no mundo, sem falar no espetáculo da estetização do eu, configurado pelos blogs, orkuts, facebooks, googles, enfim, uma série de tecnologias da comunicação de massa e de redes sociais, além de série de aparelhagem tecnológica que faz com que a comunicação seja quase um imperativo categórico. A palavra, nesse sentido, não tem fim, não tem pausa, não tem descanso, não respira, é insuflada no seu mais alto grau. É como se não tivéssemos tempo hoje, no mundo das mass midia para pensar, para dar pausas aos nossos próprios pensamentos, para respirar a cada nova imagem ou representação mental. Não há pausas nem silêncios para os meios de comunicação em massa. Eles sobrevivem do ruído e do discurso ou da verborragia por ela produzida.
Tornamo-nos uma sociedade altamente comunicante e fracamente coincidente, empobrecida de sentido das mensagens que nos chegam face à imediatez das comunicações de massa. Nesse tipo de sociedade, “uma palavra sem presença permanece sem efeito concreto sobre um ouvinte sem rosto”, diz Le Breton.
Mas nenhuma palavra é emitida sem encontrar um outro sujeito que a receba, mesmo que não haja resposta, mesmo que não haja sequer um sinal de que ela foi ouvida ou percebida, mas sim recebida. A palavra, uma vez dirigida, faz parte do mundo subjetivo de cada sujeito e pode vir a representar parte do seu mundo interior.
Toda a palavra, assim, se alimenta deste lugar sem espaço nem tempo a que, na falta de melhor explicação, chamamos de “a interioridade do indivíduo” afirma Le Breton . Este é um mundo caótico e silencioso que nunca se cala, carregado de imagens, de desejos, de medos, de emoções minúsculas ou avassaladoras. O silêncio implica, na verdade, em uma “interioridade, uma meditação, um momento dado para o pensamento, uma distância assumida em relação à turbulência das coisas, uma ontologia que não tem tempo de aparecer, se não estivermos atentos a ela”.
Esse mundo caótico não consegue sobreviver sem a sangria da comunicação, posto que se desvenda através da linguagem que o nomeia. Podemos pensar, então, que o pensamento (assim como o silêncio) é uma matéria-prima da palavra cuja função é relatar os acontecimentos que assinalam constantemente o fio da nossa existência. Mas não apenas o pensar - fantasiar, devanear ou até mesmo sonhar fazem parte do mesmo continente da matéria viva das representações através da palavra.
Ora, o pensamento se justifica a partir de uma busca inesgotável de imagens e representações, ultrapassando, por conseguinte, a linguagem mesmo que este precise dela para se exprimir. As palavras, assim constituídas, desenham o significado do mundo, moldam-no e o produz.
“Se linguagem e silêncio se misturam na expressão da palavra, podemos dizer também que todo o enunciado nasce do silêncio interior do indivíduo em permanente diálogo consigo mesmo. Toda a palavra, com efeito, é precedida por uma voz silenciosa, por um sonho acordado repleto de imagens e de pensamentos difusos que estão sempre atuantes no nosso íntimo, mesmo quando o sonho noturno lhes perturba as coordenadas; mistura de fantasmas e de pensamentos claros, de lembranças ou desejos, essa voz enfeita a linguagem e fornece-lhe, ao mesmo tempo, o seu terreno fértil”, afirma Le Breton.
De acordo com esta perspectiva, a palavra se alimenta da interioridade do indivíduo, interioridade esta que se constitui a partir de um paradoxo: ao mesmo tempo em que a interioridade humana pode ser compreendida como um mundo caótico, ela também é um mundo silencioso que nunca se cala, carregado eminentemente de imagens, desejos, medos, fantasias, emoções, devaneios, pensamentos, elaborações e perlaborações. Se o pensamento não existe sem a linguagem, ele não seria capaz de gerir a economia do silêncio que o anuncia, posto que, de acordo com Le Breton, aquilo que nos faz acreditar em um pensamento que existiria por sí próprio é nada mais, nada menos do que o pensamentos já elaborado e já expresso de que nos lembramos silenciosamente, e através dos quais temos a ilusão de uma vida interior.
A partir dessas considerações, podemos também pensar que se a possibilidade da linguagem caracteriza a condição humana e funda os laços sociais; mas é o silêncio que preexiste e perdura no labirinto das conversas, questionando os limites de qualquer palavra, recordando o sentido que está contido nas barreiras do mundo interior e do mundo exterior.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.
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