De acordo com a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), existem três condições básicas para a condição humana: o labor, o trabalho e a ação.
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, do nascimento à morte e refere-se à própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana produzindo um mundo diferente do ambiente a que pertencemos, cuja condição humana é a mundanidade. Por fim, a ação é a atividade que se exerce diretamente entre os homens sem nenhuma mediação e corresponde à condição da “pluralidade humana”, ou seja, a nossa diversidade habitando um mundo “entre iguais”.
A ação humana é predicativa da história dos homens e tem suas raízes naquilo que a autora denominou de “natalidade”. A tarefa da “natalidade” é produzir, preparar e preservar o mundo para as futuras gerações que estão por vir, para os “recém chegados que vêm ao mundo na qualidade de estranhos” dando início ao novo. Dar início ao novo, para Arendt, significa que a cada nascimento o recém chegado pode construir um mundo melhor do que aquele que foi vivido. Logo, os “recém chegados” experimentam o mundo a partir da ação que por sua vez prepararão o mundo para uma nova futura geração.
Um bom exemplo para compreender o pensamento de Hannah Arendt e aquilo que ela chamou de “ação humana sobre o mundo” e “natalidade” é a cinebiografia do ativista gay norte-americano Harvey Milk, morto em 1978. Em uma atuação arrebatadora, a direção de Gus Vas Sant e o roteiro de Lance Black para “Milk – a voz da igualdade” (2008) – deram ao norte-americano Sean Pean o Oscar de melhor ator em 2009. O filme foi recentemente lançado em DVD com uma série de extras. Vale a pena conferir o documentário sobre a vida e a atividade política de um homem que não cansou de tentar lutar por um mundo mais justo entre seus pares.
Milk não foi apenas um ativista gay que lutou pelos direitos de uma minoria na cidade de São Francisco - Califórnia, onde ele foi um talentoso político que teve a ousadia de tentar produzir um mundo melhor tanto para aqueles que estavam chegando quanto para aqueles que já habitavam esse mundo. Ele foi um homem que ousou ir além dos limites impostos pela crença insofismavelmente mundana em dividir homens e mulheres a partir de suas preferências sexuais, impedindo que estes mesmos homens e mulheres gozassem dos mesmos privilégios que a chamada “maioria” – heterosexista, política, economicamente superior, cristã, branca e herdeira do preconceito criado pela medicina psiquiátrica do final do século XIX.
No fim da década de 70, havia pouco tempo em que a homossexualidade deixara de ser considerada uma doença pela American Psychiatric Association (Associação Psiquiátrica Americana - APA), porém, ainda estava no imaginário social coletivo o espectro de perversão e anormalidade decorrente dos últimos duzentos anos na qual ela foi microscopicamente analisada pela psiquiatria, psicologia, psicanálise e, sobretudo, pela medicina moderna.
Predicativa do pensamento oitocentista na qual diagnosticou e propôs inúmeros modelos de cura, a homossexualidade passou a ser seguida e perseguida pela maioria das ciências da mente e do corpo, sendo inclusive considerada um crime em alguns países e estados norte-americanos.
As chamadas “sexualidades periféricas” também foram submetidas às agruras da moralidade cristã que ininterruptamente combateu a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo, alegando que ia contra as leis da natureza, da família, de Deus e do estado.
Tanto a política norte-americana quanto mundial, sob a tutela da família, da propriedade e do estado, e em nome de Deus, tentou impedir o acesso à cidadania de um grande contingente de homens e mulheres que se autodenominavam gays e lésbicas.
Quando voltamos o olhar para um país como os Estados Unidos, que no final da década de 40 matou milhares de pessoas com uma arma poderosa como a bomba atômica, submeteu milhares de homens a uma guerra sem precedentes do outro lado do mundo no início da década de 70, no Vietnã, enquanto as revoluções sexual e cultural pregavam ideais de liberdade, igualdade, paz e amor livre, não faz sentido compreender porque a política norte-americana encampou uma cruzada contra a homossexualidade através de uma lei na qual permitia a demissão de todos os profissionais da educação nas escolas dos Estados Unidos que se assumissem ou fossem reconhecidos como gays ou lésbicas.
Em São Francisco no final da década de 70 uma pessoa assumiu um levante contra essa lei tornando-se uma das lutas de Harvey Milk contra a imposição da “moralidade cristã” em um estado que se dizia laico através da Proposta N. 06, que suspendia a proibição do trabalho de professores homossexuais e lésbicas.
Harvey Milk teve a ousadia de ser esse homem que lutou pelos “happy few”. Mais do que isso, sua contribuição no pequeno tempo em que fez parte da política norte-americana fez com que o movimento de emancipação pelos direitos de gays e lésbicas em São Francisco, nos Estados Unidos e, por que não dizer, no mundo, tenha chegado aonde chegou, não obstante o poder público ter entravado e guardado sob sete chaves algumas das reivindicações dos militantes gays e lésbicas, tais como a criminalização da violência contra homossexuais e o projeto de união civil entre homens e mulheres do mesmo sexo, como é o caso do Brasil.
O valor do sacrifício de Harvey Milk, mostrado magistralmente pelas lentes de Gus Vas Sant e “encorporado” pela atuação embevecida de Sean Peen, fez com que os homossexuais hoje possam ostentar livremente seus direitos em vários países de cultura ocidental.
Também foi a obsessão de Milk na luta pelos direitos dos homossexuais em plena Castro Street, em São Francisco, e de lá para o mundo, que tornou a pessoa que ele foi, nem que para isso ele tivesse que perder amigos, amantes ou até mesmo a própria vida.
A nossa condição de humanos nos faz pensar constantemente na dessimetria entre a vida e a morte, achando que esta última só pode ser superada através das nossas crenças espirituais. A imortalidade ou a eternidade seria uma forma de driblar a morte em nossa pífia condição de seres humanos.
Hannah Arendt pensa na contramão. Para ela, a imortalidade significa continuidade do tempo, vida sem morte na Terra e no mundo. A eternidade seria a vida isenta de morte, sem juventude ou velhice. Tanto uma quanto a outra, só pode ser alcançada pelos deuses. Para o homem comum, a mortalidade reside no fato de que somos seres biológicos, e como tais, um dia pereceremos.
No entanto, a condição de imortalidade ou eternidade dos homens reside na sua capacidade de criar coisas – feitos e obras. Por seus feitos e por suas obras, os homens podem deixar atrás de si vestígios imorredouros que serão lembrados mesmo após a sua estada no mundo dos vivos. Mas lembremos que só nos tornamos agentes no mundo através do artifício da natalidade. É a natalidade e não a mortalidade, que nos dá nossa condição de sujeitos no mundo, porque, conforme afirma Arendt, nascer é agir no mundo em que vivemos, dando início ao novo. A ação, ou a vida ativa da qual a filósofa nos fala também, é uma ação política. Por ação política entenda-se a capacidade de produzir novas possibilidades subjetivas através da atividade humana. É o artifício da natalidade e não da mortalidade que dá aos homens a sua condição de seres humanos.
Felizmente, homens como Harvey Milk nasceram. Felizmente, homens como Milk produziram, prepararam e preservaram o mundo para os futuros “recém chegados”, dando início ao novo. Felizmente, homens como Milk serão eternos e imortais pela sua própria trajetória de vida. Felizmente, homens como Milk fizeram da vida ativa estética da sua própria existência, e por esta razão homens e mulheres gays de todo o mundo lutam pela sua condição de humanidade. Felizmente, o silêncio desse lutador por uma sociedade mais justa não chegou a um fim com a sua morte, pelo contrário, ele está mais vivo do que nunca em cada “ação política” por todo aquele que prepara o mundo para as futuras gerações.
Publicado na Revista Atlaspsico, Curitiba-PR, N. 17, Dezembro de 2009, p. 38-41.
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