terça-feira, 5 de julho de 2011

Entendendo a homofobia (parte I)

Não é de hoje que temos visto estampados em páginas de jornais e revistas do país a notícia de mortes e assassinatos de gays, lésbicas, travestis e transexuais cujos índices só fazem aumentar a cada ano. Movimentos dos direitos LGBT em todo mundo tem apontado o Brasil como um dos países que mais discrimina e mata em nome da intolerância de gênero ou sexual.

Mas como entender o preconceito e o ódio irracional contra homens e mulheres com determinadas características desejantes, sejam eles homens ou mulheres gays ou bissexuais, travestis ou transsexuais? Por que nossa sociedade, apesar dos avanços culturais, políticos, sociais e jurídicos em prol da cidadania homoerótica, ainda fomenta uma cultura do preconceito, da discriminação, da intolerância e do ódio generalizado contra essa população? Ou como eu já havia perguntado em um artigo anterior (A homofobia e a cultura da intolerância) por que referendar a morte de sujeitos a partir da sua orientação sexual ou a partir de suas identidades sexuais? A resposta, apesar de óbvia, é estarrecedora: porque em nome do ódio e da intolerância contra esses indivíduos, mata-se com os maiores requintes de crueldade nunca antes visto. A prova disso foi estampada em cenas grotesca nos telejornais do país este ano, a partir do assassinato de uma travesti na cidade de Campina Grande, Paraíba, com mais de trinta facadas, quando a perícia havia afirmado que aquele ser humano já estaria morto a partir do quarto golpe que recebera.

Para tentar responder ou talvez entender as questões acima, mas sem esgota-las em si mesmas, precisamos definir primeiramente o que entendemos por preconceito e discriminação para nos aproximarmos do núcleo do conceito de homofobia (que será visto em um artigo posterior).

Comecemos com a noção de estereótipo.

Na acepção da filósofa Marilena Chauí, o estereótipo vai se referir, por um lado, a um conjunto de crenças, valores, saberes, atitudes que julgamos naturais, transmitidos de geração em geração sem questionamentos, e nos dá a possibilidade de avaliar e julgar positiva ou negativamente coisas e seres humanos. Por outro lado, para a autora, o senso comum é a crença jamais questionada de que a realidade objetiva e subjetiva do mundo existe tal como nos é dada, cristalizando as ideias acerca do mundo, dos sujeitos e das ideias construídas histórica e socialmente ao longo do tempo.

O preconceito pode ser encontrado nos mais diversos setores da sociedade. Assim, pode ter origem nos mais diversos modos, pode escolher suas vítimas e agir de modo violento e irracional sem que ao menos possamos nos dar conta.

Algumas dessas formas de violência estão encarnadas na conformação do próprio caráter do indivíduo, moldando formas de agir, pensar e sentir, comportar e lidar com o sujeito que está à nossa volta. Esses modelos de violência serão traduzidos em comportamentos de preconceito para com o nosso semelhante, construindo, assim, o pilar de toda discriminação e violência contra o sujeito contemporâneo. Não obstante essas formas particulares de ensejar o caráter e o comportamento do sujeito, o preconceito carrega em si mesmo sua própria etimologia.

De acordo com Alberto Dines, pré+conceito, o preaconceptu latino, é um julgamento prévio, sem ouvir as partes, posição irrefletida, pré+concebida, irracional. Também pode ser entendido como um pré+juízo, tanto que em espanhol se diz prejuício, em francês, é prejugé, em inglês se diz prejudice, e, em alemão, vorurteil. Em todos os casos, a mecânica etimológica é idêntica: o prefixo indicando antecipação e o resto, significando julgamento. Em português, o preconceito também significa dano, estrago, perda. Em outras palavras, a adoção sumária de uma opinião ou critério, antes de passar pelo filtro de um julgamento equânime, constitui um mal, uma ofensa moral.

A discriminação ocorre justamente quando essa atitude ou esse ato-pensamento cria uma distinção entre os outros ou sobre os outros; gera, então, um tratamento diferencial e, em consequência, um preconceito.

O preconceito também pode estar vinculado à inclusão de um indivíduo em uma categoria, perfilando, assim, uma identidade grupal hegemônica a partir da atribuição de um conjunto de características negativas, fixas e imutáveis ao grupo. Assim, quanto mais um indivíduo se identifica com as características desse grupo, mais passa a fazer parte dele, vindo a sofrer as consequências pela sua inclusão no grupo discriminado.

O sistema de preconceito vai ser formado quando o senso comum se cristaliza no modo de pensar e de sentir de um grupo social. Desse modo, Marilena Chauí vai definir preconceito como “uma ideia anterior à formação de um conceito. O preconceito é a ideia preconcebida, anterior, portanto, ao trabalho de concepção ou conceitualização realizado pelo sentimento”. Para a autora, o conceito é a ideia que se forma a partir do momento em que questionamos as coisas, estabelecendo critérios para perguntas e respostas e para as formas de conferir as respostas que foram oferecidas, ou seja, é um exercício de pensamento. O preconceito, ao contrário, é algo que não inclui o trabalho de pensamento, pois este organiza, reúne e sintetiza os dados imediatos da experiência. Enquanto o conceito é um trabalho intelectual e de pensamento que objetiva chegar a uma verdade, o preconceito parte da ideia de que ele é, em si, verdadeiro.

Para o psicanalista Renato Mezan preconceito “é o conjunto de crenças, atitudes e comportamentos que consiste em atribuir a qualquer membro de determinado grupo humano uma característica negativa, pelo simples fato de pertencer àquele grupo: a característica em questão é vista como essencial, definidora da natureza do grupo, e portanto adere indelevelmente a todos os indivíduos que o compõem. Porém, para Goldstein, autor da Psicologia Social, o preconceito é definido como “um julgamento negativo dos membros de uma raça, sexo, identidade sexual, religião ou dos ocupantes de qualquer outro grupo social significativo; ele é uma avaliação não válida de um grupo ou de seus membros, ou ainda uma atitude ou sentimento que predispõe o indivíduo a atuar, pensar e sentir de modo desfavorável sobre outra pessoa ou objeto.

Não obstante, para Marilena Chauí, o preconceito possui quatro marcas significativas. A primeira delas é a familiaridade, ou seja, o preconceito exige que tudo seja familiar, próximo, compreensível e imediatamente transparente. Nesse caso, ele é inteiramente penetrado por nossas opiniões e indubitavelmente não tolera o complexo, o opaco, o ainda não compreendido. Nesse caso, o preconceito é julgado único, extraordinário, e está inserido no quadro de ideias e juízos preconcebidos, encarregados de dar sentido ao mundo visto, mas nunca dito ou pensado. Um exemplo disso está no preconceito contra aquilo que nunca foi visto antes; para muitos, a forma como a mídia tem transmitido a imagem dos palestinos, principalmente dos mulçumanos, tem provocado em muitos americanos o ódio irracional, disseminando o preconceito contra eles.

A segunda marca do preconceito, segundo Marilena Chauí, exprime sentimentos de medo, angústia, insegurança e conjura (ou esconjura) diante do desconhecido, transformando tais sentimentos em ideias certas sobre as coisas, os fatos e as pessoas, criando assim, estereótipos, isto é, modelos gerais de coisas, fatos e pessoas por meios dos quais se julga tudo quanto ainda não se havia visto.

A terceira marca é admirar o que não se compreende e, portanto, a propensão a reduzir o desconhecido ao já conhecido e indubitável, ou seja, o preconceito é um obstáculo ao conhecimento e à transformação, é conservador e ignorante.

E, por fim, o preconceito é intrinsecamente contraditório, ou seja, ama o velho e deseja o novo, confia nas aparências, mas teme que tudo o que reluz não seja ouro; teme a sexualidade, mas deseja a pornografia, afirma a igualdade entre os humanos, mas é racista e sexista. Segundo Marilena Chauí, o preconceito se julga senhor de uma realidade transparente que, na verdade, é opaca e oculta medos e angústias, dúvidas e incertezas.

Quando um grupo social legitima papéis que não necessariamente condizem com a realidade desses mesmos atores sociais, cria um sistema de crenças que será disseminado no imaginário social coletivo. Esse sistema de crenças vai legitimar, por sua vez, a violência física ou sexual (também poderia legitimar qualquer outra), estabelecendo como norma a condição do homem como herdeiro único do sistema patriarcalista, machista e viril bem como do capitalismo selvagem do qual fazemos parte.

Se conseguirmos entender o que as ciências humanas têm a dizer por preconceito e discriminação, talvez seja um primeiro passo para entendermos os problemas ligados à questão da homofobia no Brasil e no mundo.



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.

Um comentário:

  1. Muito interessante o texto. É sempre bom ter um olhar profissional diante de questões como essa. Parabéns!

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