De
acordo com a filósofa Hannah Arendt no seu livro “A Condição Humana”, “o
mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente
meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e
através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente,
a ciência vem-se esforçando por tornar ‘artificial’ a própria vida, por cortar
o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de
fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta,
(...) e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança
de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos”.
A
profecia (ainda) não se realizou desde que Hannah Arendt escreveu “A Condição
Humana”, mas talvez isso não seja um
sonho impossível de se viver daqui a alguns anos, desde que o avanço da
tecnologia médica tem prolongado a vida humana até os limites em que a própria
ciência traçou para si. Hoje, sabe-se que é possível diagnosticar com precisão
quase milimétrica, a localização da consciência no cérebro, através dos famosos
PET-Scans, “escaneamento de imagens cerebrais” via computador, permitindo que
médicos façam diagnósticos precisos quando há ou não morte-cerebral, tão necessário
quando hoje vivemos em um mundo cuja doação e transplantes de órgãos são
realidades bem mais palpáveis do que há 50 anos.
Mas ao
contrário do que a literatura médica e científica tem apresentado
historicamente, o diagnóstico e definição de morte-cerebral não é tão recente
assim.
Göran Settergren
afirma que entre 1894 e 1965, pelo menos quatro neurocirurgiões já haviam
observado “morte-cerebral” em seus pacientes, ainda sem usar a expressão tal
qual ela é usada ainda hoje.
Durante
o século XIX, afirma o autor, muitos médicos e cientistas estavam interessados
na patofisiologia do cérebro e, durante o século XX, houve uma mudança de
paradigma quando o conceito de morte-cerebral foi introduzido na literatura
médica, mudando o foco da atenção do coração para o cérebro ao se definir morte
a partir de critérios médicos..
Isso
fica claro, quando há mais de cem anos, a definição de morte estava centrada na
parada dos batimentos cardíacos e na respiração como critérios médicos válidos
para se definir morte. Com o avanço da tecnologia e dos conhecimentos
médicos-científicos, a morte pôde ser definida a partir das funções do tronco
cerebral.
De
acordo com Settergren em 1894, o cirurgião, neurocirurgião e patologista
Horsley, na Inglaterra, descreveu pela primeira vez, o caso de um dos seus
pacientes com tumor cerebral, que após o diagnóstico de sua morte, entenda-se,
parada da respiração, seu coração continuou batendo. Isso foi o início do uso
de “respiradouro artificial” para prolongar a vida dos pacientes.
Posteriormente,
em 1901, o cirurgião e neurocirurgião Cushing, nos Estados Unidos, depois de
tomar conhecimento dos trabalhos de outro neurocirurgião chamado Duckworth, em
1898, relatou a cirurgia em um de seus pacientes com tumor cerebral e alta
pressão intracranial (ICP – intracrancial pressure) cuja respiração
parou, a pressão sangüínea caiu, porém, o coração continuou a bater algum tempo
depois antes de morrer definitivamente. Foi a segunda vez (ou seria a
primeira?) que o conceito de morte cerebral apareceu na literatura médica.
Em
seguida, em 1959, o neurocirurgião Wertheimer, entre outros, na França,
propuseram parar de usar o tratamento de ventilação se a morte do sistema
nervoso fosse diagnosticada por investigações clínicas e repetidas verificações
de ausência de atividade eletrocefalográfica (EGG) no córtex e no diencéfalo.
Se isso fosse controlado, haveria atividade cardíaca. Mais tarde, Mollaret e
Goulon em um relatório preliminar, descreveram o que eles chamaram de “coma
profundo” (“coma dépassé”) baseado em 23 observações de casos clínicos
sem respiração artificial (ventilação) espontânea, sem reflexos, poliúria,
baixa pressão sanguínea e ausência de atividade eletrocefalogáfica.
Por
fim, em 1965, autoridades médicas se encontraram na Suécia para definir regras
no transplante de órgãos. Nesse encontro, o neurocirurgião Frykholm circulou um
memorando no qual ele propunha que pacientes preenchessem alguns critérios
sugeridos por outros neurocirurgiões para declarar o paciente legalmente morto,
a saber, “nenhuma circulação cerebral na angiografia, nenhum reflexo central,
coma profundo e nenhuma respiração espontânea”. A única razão para continuar o
tratamento de ventilação era se o paciente fosse doador de órgãos, o que ele
foi criticado duramente. Esse debate começou na França em 1959 e se estendeu
até 1965 na Suécia, até chegar aos critérios de morte para todo o cérebro,
quais sejam, coma-profundo, ausência espontânea de respiração e reflexos
centrais, hipotensão, hipotermia e evidências de falta de atividade elétrica
demonstrada por eletrocefalograma e/ou ausência de circulação cerebral
demonstrado em angiografia.
Esses
critérios, como sabemos, mudaram ao longo dos anos, principalmente com o avanço
das neurociências, mas não sem antes haver uma definição do que seria
morte-cerebral por um comitê médico científico de renome internacional, para
estabelecer critérios válidos e até hoje usados. Isso veio ocorrer 3 anos
depois nos Estados Unidos.
Nessa
época, havia um consenso geral de que a definição de morte estava ligada à
parada nas funções cardio-respiratórias. Até então, esses eram os critérios
adotados na maior parte da comunidade médica internacional. Mas historiadores
têm considerado o ano de 1968 como o ano em que o termo morte-cerebral foi
definido por um comitê médico-científico estabelecendo critérios para a
diagnose da morte, e conseqüentemente, definindo também o que seria vida.
Esse
comitê ficou conhecido primeiramente como o “Comitê Ad Hoc da Escola de
Medicina de Harvard para Exame da Definição de Morte Cerebral” (The Ad Hoc
Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain
Death), e posteriormente como o Comitê de Morte-Cerebral de Harvard
(Harvard Brain Death Committee), liderado pelo
anestesista chefe do Hospital Geral de Massachusetts Henry Beecher e
formado por 10 representantes da área médica , além de um advogado, um
historiador e um teólogo, com vistas a dar um referencial não só para a
diagnose da morte, mas também para ajudar a estabelecer critérios nos
transplantes de órgãos que já passavam a ser corrente naquela época. De acordo
com Henry Beecher, havia chegado a hora de avaliar mais detidamente a definição
de morte, visto que todos os grandes hospitais naquela época já possuía uma
multidão de pacientes a espera de doadores de órgãos. Porém há pouca divulgação
do trabalho do Comitê da Harvard com o primeiro transplante cardíaco realizado
pelo médico Christiaan Bernad em dezembro de 1967, fundamental para a formação
do Comitê da Harvard para avaliação e diagnose de morte-cerebral.
Em 1968
a comunidade médico-científica tomou conhecimento da publicação do “Relatório
do Comitê Ad Hoc da Escola Médica de Harvard” (Ad Hoc Committee of the
Harvard Medical School) estabelecendo critérios válidos para serem usados
na diagnose e definição de morte cerebral. Muitos desses critérios são usados
até hoje, sobretudo, para ajudar na decisão de transplantes de órgãos. Mas foi
na década de 80 em diante que se deu o triunfo da redefinição de morte proposta
pelo Comitê da Harvard, a ponto de mais de 15 países fazerem uso desses
critérios. Mas até se chegar a essa definição, houve um grande debate por parte
da comunidade médica, que não conseguia chegar a um consenso sobre a definição
mais apropriada, visto que traziam, em seu cerne, várias considerações, éticas,
jurídicas e científicas para um diagnóstico mais apropriado. Até a publicação
do relatório pelo Comitê da Escola Médica de Harvard, o que definia morte ainda
era a parada cardio-respiratória.
Primeiramente,
se pensava que a morte-cerebral deveria ser definida pela perda da função de
todo o centro nervoso central, mas essa tese foi abandonada por se tornar
evidente que essa função podia persistir independente das funções do cérebro.
Outros
médicos argumentavam que a definição deveria dar conta da “perda da
personalidade” e da “identidade pessoal”, que incluiria “racionalidade,
sociabilidade, auto-cuidado, capacidade para comportamento intencional e
habilidade para conservar e cuidar de seus próprios projetos de vida”, porém,
personalidade e identidade são conceitos de difícil definição e não poderiam
ser alocados nos critérios de morte-cerebral, contudo, a perda da consciência
foi um dos critérios mantidos na definição de morte-cerebral.
Em
síntese, os critérios utilizados iam de ausência de atividade elétrica no
cérebro medida por eletrocefalograma, ausência de reflexo pupilar, ausência de
respiração autônoma na retirada do suporte artificial (ventilação), perda
permanente da consciência e conseqüentemente coma permanente ou irreversível,
entre outros.
As
grandes discussões éticas seguidas a partir de então, pavimentaram o campo
daquilo que conhecemos hoje como sendo Bioética, fazendo o campo jurídico se
movimentar no que diz respeito à criação de leis para poder decidir sobre a
vida e a morte de pessoas acometidas de morte-cerebral.
Não
obstante, Gary S. Belkin cita várias críticas que se pôde fazer ao relatório na
época de sua publicação, mas afirma que foi necessário definir o que seria
morte-cerebral no sentido de estabelecer critérios válidos para a doação de
órgãos, construindo toda uma “ética para transplantes”. Mais do que isso, o
estabelecimento de critérios do que seria morte-cerebral, foi decisivo para que
o campo da medicina definisse também o que é vida, projetando, no futuro, todo
um campo jurídico de especialistas em Bioética.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.