sábado, 14 de abril de 2012

O sofrimento e suas funções para o homem


Primeiramente, eu gostaria de agradecer a organização do evento pelo convite em participar do X SIMBIDOR e poder contribuir a partir dos meus estudos e pesquisas sobre o sofrimento humano.
De antemão, gostaria de dizer que sou um estudioso da alma humana em seu profundo pesar diante da vida, do desespero e do despedaçamento de não se constituir como um sujeito, uma pessoa ou um indivíduo em sua singularidade e em suas relações diárias.
O sofrimento de que trato, não se dá verdadeiramente no corpo, e sim na alma. Tarefa inglória para um profissional da minha área, que não dispõe de remédios ou de instrumentos cirúrgicos ou ainda de equipamentos de alta tecnologia para aliviar a dor e o sofrimento humano daqueles que me procuram com um padecimento da alma. Meu instrumento de trabalho é a palavra e o tratamento que lhes ofereço é a “cura pela fala”, ou no mais das vezes, o acolhimento do sofrimento humano diante de uma alma que sangra e que pede ajuda em sua agonia.
Não coincidentemente, o título desta mesa se constitui com uma pergunta: “Duas horas sobre sofrimento. Mas... não é muito sofrimento não?”. Não sei o que os meus colegas da mesa pensam sobre a questão e como proposta  de trabalho na tarde de hoje mas, da minha parte, penso que duas horas é uma simples gota no oceano diante da imensidão do sofrimento humano.
No entanto é fundamental que se afirme de imediato que há algo no organismo humano que habita na dor. Sem ela, nossa existência estaria ameaçada posto que a dor e o sofrimento dimensiona nossa vida subjetiva: nascemos pela dor e pelo sofrimento e muitas vezes é através da dor e do sofrimento que chegamos ao fim da vida. Nascemos pela dor e pelo grito, da mãe e do bebê que vem ao mundo em sua condição de recém chegado. Não morremos de dor. Enquanto há dor, há vida e temos forças de combate-la e a continuar vivendo. É pela dor e pelo sofrimento que também dimensionamos nossa relação com o outro e com o ambiente que nos rodeia e faz a interconexão entre o nosso estado fisiológico e psíquico. Assim, podemos afirmar sem reservas que o ser humano necessita da dor e do sofrimento para situa-lo na sua própria história e trajetória de vida.
Do ponto de vista da psicopatologia, é a dor que lança o homem na busca interminável de sentido, colocando-o em movimento. Mas só seres humanos conseguem dar sentido ao que sentem, descrevendo como sendo prazer ou dor, porque são capazes de significar o registro das emoções e dos sentimentos.
A dor e o sofrimento psíquicos são únicos na história de vida de cada ser humano, posto que são sentimentos e sensações de difícil dimensionamento e que escapa à nossa razão. Nesse sentido, a dor física ou psíquica são sempre fenômenos limites para a nossa própria subjetividade.
Os sentimentos de prazer ou dor, por consequência, são os alicerces da nossa mente. Eles são os sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se relacionam com uma emoção qualquer. É a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza nos invade.
De acordo com o neurocientista António Damásio, os sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo. Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções, qualquer coisa que possamos guardar ou jogar fora. Os sentimentos podem ser, e geralmente são, revelações (itálicos do autor) do estado da vida dentro do organismo. (...) A maior parte dos sentimentos são expressões de uma luta contínua para atingir o equilíbrio, reflexos de todos os minúsculos ajustamentos e correções sem os quais o espetáculo colapsa por inteiro.
Para o autor, compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos é necessário para que se possam formular princípios, métodos e leis capazes de reduzir o sofrimento humano e engrandecer o florescimento humano, ou seja, para Damásio, a compreensão do sofrimento humano está eminentemente calcada na compreensão da neurobiologia das emoções e dos sentimentos. Isto não quer dizer que, ao compreender a neurobiologia das emoções e dos sentimentos, não possamos representa-los através da palavra.
Ora, mas é preciso que se diga que não são apenas os seres humanos que demonstram compaixão pelo sofrimento de um outro ser. Variadas espécies não humanas também podem demonstrar compaixão pelo sofrimento de seu semelhante, mas não através da representação da palavra.
Não há dúvida de que a mente humana é especial, especial na sua capacidade imensa de sentir prazer e dor e de conhecer a dor e o prazer de outros; especial na sua capacidade de amar e perdoar. Especial na sua memória prodigiosa e na sua capacidade de simbolizar e narrar; especial no seu dom de linguagem com sintaxe; especial na capacidade de compreender o universo e criar novos universos; especial na velocidade e facilidade com que manipula e integra os conhecimentos que permitem a solução de um problema.
Com efeito, para Damásio, dor e prazer são parte de duas genealogias completamente diferentes da regulação da vida. Eles são as alavancas de que o organismo necessita para que as estratégias instintivas e adquiridas atuem com eficácia. (...) Quando muitos indivíduos, em grupos sociais, experienciaram as consequências dolorosas de fenômenos psicológicos, sociais e naturais, tornou-se possível o desenvolvimento de estratégias culturais e intelectuais para fazer face à experiência da dor e para conseguir reduzi-la. (...) Embora nossas reações à dor e ao prazer possam ser alteradas pela educação, constituem um excelente exemplo de fenômenos mentais que dependem da ativação de disposições inatas.
Portanto, o sofrimento proporciona a melhor proteção para a nossa sobrevivência, uma vez que aumenta a probabilidade de darmos atenção aos sinais de dor e agirmos no sentido de evitar sua origem ou corrigir suas consequências.
Por exemplo, os indivíduos afetados por analgesia não adquirem estratégias normais de comportamento. Alguns deles passam o tempo rindo, apesar de a doença os levar a destruir as articulações privadas de dor rompendo ligamentos e articulações, queimaduras graves, ou quebra de algum osso ou dano a órgãos. Não obstante, por conseguirem sentir prazer, podem ser influenciados por sensações positivas. Eles são impedidos de sentirem dor, mas não estão impedidos de sentirem prazer.
Mas também é preciso lembrar que tanto a dor quanto o sofrimento precisam ser distintas: há autores que afirmam que há dores físicas e psíquicas ou somáticas. Da minha parte, não vejo diferença entre uma dor que se constitui como física e outra que se constitui psíquica. De igual modo, não consigo distinguir um sofrimento físico de um sofrimento psíquico, visto que ambos se afetam mutuamente.
A dor psíquica, explica o psicanalista Juan-David Nasio, é uma dor de separação, quando esta significa erradicação e perda de um objeto ao qual estamos intimamente ligados, tal como é o caso de uma pessoa amada, um objeto, um valor ou a integridade de nosso corpo, mas somos nós que construímos esses laços através de processos inconscientes, portanto, uma teia tecida por fios muito sutis que lida as diversas separações dolorosas da nossa existência. Por outro lado, a dor também pode ser de abandono quando o amado toma de volta o amor que nos destinou (tal como minha paciente relata, e desconfio se o seu câncer não seria uma tentativa de resgatar parte da mãe pela via da dor e do sofrimento ou um desejo de sair de cena do mesmo, tal a identificação com sua mãe). Outra possibilidade é a dor da humilhação quando somos feridos em nosso amor próprio, ou por fim, a dor da mutilação, quando perdemos parte do nosso.
Por outro lado, o sofrimento diz respeito a uma perturbação global, psíquica e corporal, provocada por uma excitação violenta, porto que, enquanto a dor física é uma sensação delimitada e definida na materialidade do nosso corpo, o sofrimento ou dor psíquica é uma emoção mal definida e que precisa e apela para uma compreensão. No entanto, no domínio da nossa subjetividade, tanto uma dor centrada na materialidade da carne afetará nosso estado psíquico e emocional, quanto um sofrimento psíquico afetará nosso corpo, pois a dor, seja ela de qual ordem for, é o derradeiro afeto, diz Násio, a última muralha antes da loucura e da morte.
Não há cisão nem física nem metafísica entre a mente ou o cérebro e o corpo. Não há um abismo que separa o psíquico do somático. Não há sujeito no mundo que não altere o seu estado psíquico quando padece de um uma dor orgânica, nem muito menos há um sujeito que não tenha estados alterados na sua fisiologia quando sofre de uma dor psíquica. Tomemos dois outros exemplos: nosso humor, nossa paciência e nossa irritação se tornam uma constante quando sofremos de uma dor de dente, uma apendicite, uma enxaqueca ou um cálculo renal. Consequentemente, nossas taxas hormonais ficam muito debilitadas quando sofremos a perda de um amor ou de um ente querido.
Se a dor altera nosso estado de humor e se torna o último afeto ou a última muralha a ser ultrapassada entre a loucura e a morte, o sofrimento designará uma perturbação global, uma emoção mal definida e, portanto,  psíquica e corporal, provocando uma excitação violenta em nosso organismo.
Tomemos o exemplo das dores reumáticas ou da artrose, ou seja, uma destruição progressiva dos tecidos que compõem a articulação e permite nossa mobilidade. Quando chegamos a certa idade, que pode ser diferente de homens para mulheres, de ocidentais para orientais, de região para região e até mesmo de país para país com suas respectivas condições de vida, a medida que o organismo humano envelhece a artrose se instala em praticamente mais de cem por cento da população mundial com mais de oitenta anos. Assim, a dor lembra constantemente ao psiquismo que o organismo está velho e não suporta certos movimentos outrora praticados na juventude. Se a mente não envelhece, o mesmo não se pode dizer do corpo com suas mazelas fisiológicas que a velhice traz consigo.
A dor pode ser considerada uma das formas mais elementares do organismo humano se defender e quando ela aparece, significa que há algo que precisa de maior atenção e cuidado da nossa parte.
Não é a toa que a International Association for the Study of Pain (Associação Internacional para o Estudo da Dor), define dor como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão tissular existente ou potencial, ou descrita em termos que significam tal lesão. Mas é preciso que se diga que a dor e o sofrimento variam de intensidade de indivíduo para indivíduo.
Por isso, cada um de nós reage a um estímulo doloroso de modo diferente e buscamos o amparo para esse sofrimento das mais diversas formas. Uns, consegue sustentar e manter a dor em níveis mais ou menos moderados, sem recorrer nem a drogas lícitas nem a drogas ilícitas. Outros, fazem uso indistintamente de uma delas, sem grandes arroubos de sentimento de culpa ou julgamento valorativo. Mais alguns podem sucumbir ao seu sofrimento e, além de associar a psicofármacos, buscam na cura pela palavra, uma melhor compreensão do seu sofrimento.
Sabemos que a Psicofarmacologia floresceu principalmente nos anos de 1950 ajudando na construção de outra identidade para a psiquiatria e consequentemente para a medicina. Em seguida, já nos anos 70, o paradigma biológico da psiquiatria se impôs reconstruindo o discurso psicopatológico, fazendo com que a psicanálise perdesse sua hegemonia no campo da psiquiatria, passando a ocupar um lugar secundário. Por fim, o desenvolvimento das neurociências no início dos anos 90 possibilitou a reconstrução da medicina mental, fazendo com que o saber psiquiátrico se transformasse não apenas em uma ciência, mas em uma especialidade médica. Baseada no discurso das neurociências, a psicopatologia questionou a causalidade moral das perturbações do espírito, valendo-se do discurso psiquiátrico.
Os psicofármacos cada vez mais poderosos passaram a regular e controlar cada vez mais a dor e o sofrimento psíquico, possibilitando nos relacionar com a dor mental de outro modo, tais como na medicalização da angústia e da depressão, e porque não mesmo dizer do amor?
A medicalização do humor, das paixões e do sofrimento psíquico e dos seus transtornos passou cada vez mais a fazer parte do novo dia a dia. Ora, em qualquer banca de jornal ou revista semanal, tomamos conhecimento dos mais recentes lançamentos da indústria farmacêutica no alívio de alguns desses males que eu citei. Como disse o psicanalista Joel Birman há pouco mais de uma década, “diante de qualquer angústia, tristeza ou desconforto psíquico, os clínicos passaram a prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, ansiolíticos e antidepressivos”.
Ninguém mais em nossos dias aguenta sentir por alguns minutos, dor de dente, dor de ouvido, dor de cabeça ou enxaqueca. Perdemos essa capacidade insofismável de nos relacionar relativamente bem com a dor e o sofrimento físico ou psíquico, do qual eram acostumados nossos avós. Para eles, até a morte de um ente querido ou o fim de um relacionamento baseado no amor ou no romantismo era bem negociável com seu próprio eu do que nos dias atuais.
Tanto a indústria dos psicofármacos quanto das drogas ilegais são facilmente recorridos por pessoas indistintamente à classe social a que pertençam, para alívio imediato de qualquer tipo de sofrimento físico, mas principalmente psíquico.
Da indústria psicofarmacológica ao narcotráfico, o fim é o mesmo: sedação da angústia, eliminação da dor e das excitações excessivas a base de ansiolíticos, extermínio das paixões depressivas com antidepressivos e busca do ideal de estesia psíquica no sujeito e normalização de seus humores intempestivos, seja adulto ou criança, sendo que, estas últimas, antes concebidas como “espertas” ou “criativas” ou até mesmo “inventivas”, passaram por uma nova classificação terna e cognitiva para uma nosologia médica e psiquiátrica, enquadrada em um transtorno conhecimento pela insígnia de 4 letras – TDAH – ou seja, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, para não falar do seu correlato adulto com as psicopatologia da modernidade, quais sejam, as depressões, as síndromes do pânico e a solidão, já que a toxicomania já está ficando fora de moda nos últimos dez anos, não obstante ser ainda um problema de saúde pública em cidades grandes como São Paulo ou Rio de Janeiro.
Sabemos que a experiência do sofrimento e a prática de curar, cuidar ou tratar nem sempre foram do domínio científico, é uma articulação da medicina moderna clínica realizada através de experimentos laboratoriais de Claude Bernard e de François Magendie.
No entanto, a dor expõe um parodoxo de difícil mensuração, posto que a dor e o sofrimento apresentam-se através da palavra pela sua própria natureza de significação, porém, para falar, o homem precisa de silêncio em sua grande dimensão intuitiva e introspectiva.
Winnicott, em seu livro “Natureza Humana”, esboça uma noção de psicopatologia, ou seja, uma discussão sobre saúde e doença a partir de uma tríplice aliança: soma, psique e mente, afirmando que para uma boa saúde física, fez-se necessário uma hereditariedade (nature) e uma criação (nurture) suficientemente bons, ou seja, a saúde da psique é uma questão de maturidade e que saúde intelectual não faz sentido pois dependeria, com efeito, de um bom funcionamento do cérebro.
Para concluir, eu diria, junto com Winnicott, que talvez um pouco de loucura seja necessária para nos fazer retornar ao equilíbrio que tanto necessitamos em termos de saúde, ou dito de outro modo, talvez um pouco de sofrimento seja necessário para nos tornar um pouco mais humano.




Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

2 comentários:

  1. Olá Sérgio! Obrigado por este seu artigo. Me ajudou muito a entender algumas coisas e a finalizar o meu post http://serespapefico.blogspot.com.br/2015/01/ainda-que-seja-dor-que-me-una-ti.html

    ResponderExcluir

Obrigado por visitar meu blog.