sábado, 2 de junho de 2012

Para os que partem e para os que ficam (*)






Sejam bem vindos ao primeiro ano do resto de suas vidas!!!
Eu gostaria de dividir com vocês o que eu penso ser um momento de graça e alegria para muitos de que estão partindo e para muitos dos que estão chegando.
Eu gostaria também de dizer a vocês da minha imensa satisfação em ter trabalhado com vocês durante os meses em que se seguiram e aproveitar a oportunidade de dizer o que penso e como me sinto nesse momento de confraternização.
Um dia, um jovem analista se propôs a oferecer estágio em psicologia clínica na abordagem psicanalítica, e passar seus conhecimentos para outros jovens que estava para começar uma jornada: a jornada da vida profissional ao final de um bom tempo de estudos, aulas, trabalhos em grupo, provas, fichamentos, monitorias, monografias, monotonias...
Eu fiz o convite e vocês aceitaram a empreitada em descobrir o que esse jovem analista tinha para lhes oferecer. Afinal, vocês nunca tinham ouvido falar a meu respeito, não sabiam quem eu era, minha trajetória acadêmica ou profissional, no máximo, tinham à disposição a ferramenta da internet e um documento lá... bem lá-ttes para saber se iriam ou não tomar a decisão certa em me escolher como aquele que proporia dividir com vocês o que aprendera em todos os anos de clínica.
Sabemos que não foi uma tarefa fácil. Mas vocês toparam o desafio. Eu topei o desafio, posto que se vocês não me conheciam, eu também não sabia quem vocês eram ou de onde vinha, o que estudaram, o que sabiam, quais os seus planos, quais suas fantasias, quais seus DESEJOS diante do meu convite.
Pois bem... duas turmas se constituíram: uma, decidiu saber mais sobre o meu objeto de investigação na prática clínica (o silêncio); a outra decidiu saber mais sobre um autor pouco conhecido na formação de todos vocês (Winnicott).
Juntos, pudemos descobrir na prática clínica, com seus pacientes, o que alguns velhos monstros sagrados tentaram nos ensinar. O Velho Criador (Freud), nos mostrou que o eu não é senhor nem dentro da sua própria casa – foi ele quem começou toda essa jornada. O Velho Rabugento (Lacan), nos mostrou que o ISSO é estruturado como uma LINGUAGEM, portanto, cuidado no que vocês andam falando por ai, pois tudo, tudo, tudo tem UM SIGNIFICADO, UM SIGNIFICANTE, UMA SIGNIFICAÇÃO. Por fim, a Velha Raposa (Winnicott) tentou nos ensinar como BRINCAR com crianças e com palavras, como a FANTASIA e a CRIATIVIDADE faz parte da SAÚDE de todos nós, e como podemos ser sujeitos bem melhores independente do rochedo da castração ou da viscosidade da libido.
Os inícios dessa jornada, como sabem, também foi pontuado por uma série de provoca-ações. Lembram? Deixem-me recorda-los um pouco, pois vamos terminar essa jornada como tudo começou.
Um dia lembrei-lhes que despertou na alma de um artista o desejo de esculpir uma estátua: a estátua do Prazer que dura um instante. Ele partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar com o bronze, mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e não se encontrava em nenhum outro lugar a não ser na estátua da Dor que é permanente. Fora o artista que com as próprias mãos que havia fundido essa estátua colocando-a no túmulo de alguém que amara muito na vida, como símbolo do amor masculino (que é imortal), e a dor humana (que dura a vida inteira). Então ele resolveu refazer tudo, retirou a estátua do túmulo da morta, pondo-a num grande forno, derretendo-a e com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.[1]
A dor que é permanente é a dor daquele que chega até vocês pedindo ajuda para uma pobre alma diante da hemorragia do seu sofrimento psíquico. O prazer que dura um instante, é a capacidade de constituirmos em nossos pacientes um momento de alivio para a sua dor, seja ela qual for. Afinal de contas, estamos muito mais “além do princípio do prazer”.
Mostrei-lhes também a história do poeta que vivia no campo, entre prados, rios, topos de colinas e alguns bosques contando para adultos e crianças, as maravilhas que havia visto durante sua jornada. Este poeta dizia que encontrava pequeninos faunos entre as folhas dos bosques; nereidas de cabelos esverdeados emergindo das águas cristalinas do lago, cantando ao som das harpas; um grande centauro no alto das colinas, galopando, sorrindo e envolto em nuvens de pó, até que um dia, voltando para a cidade, viu todas essas coisas maravilhosas que tanto relatara. Lá chegando, adultos e crianças se reuniram em torno dele para ouvir suas histórias, mas ele respondeu: “Hoje nada tenho para lhes contar, não vi coisa alguma”. Isto porque, conta-nos Oscar Wilde neste lindo conto, que naquele dia, todas as coisas maravilhosas foram vistas de fato pelo poeta, e para ele, a fantasia é de fato a realidade e a realidade nada significa[2].
Com isso, pude instigar a imaginação de vocês para o bom uso na clínica. Para um analista ou um psicólogo clínico, a fantasia e a imaginação são ferramentas de trabalho, e às vezes, a REALIDADE com a qual lidamos nada mais é do que a REALIDADE PSÍQUICA, e dito isto, pouco importa se é verdade ou fantasia o que nos contam.
Também tentei lhes ensinar que "Uma vez no divã, somos todos iguais diante da falta, do rochedo da castração, da inveja do pênis, da viscosidade da libido, do real, do gozo ou da insustentável divisão do não-ser. (...) E que aos tolos, resta a incansável busca do Santo Graal erótico; e a nós, a consciência trágica, contrita, heróica e dilacerada de que a ferida da existência não tem cura”[3]. Pode não ter cura, mas pode ter alivio diante dessa existência, pois conforme afirma Freud, todo ser humano anseia pelo retorno aos braços de Abraão.
Vocês mergulharam no universo psicanalítico diante de suas faltas, de seus desejos, de seus medos, de suas angústias, de sua insofismável condição de (quase) nada saber para uma pretensiosa condição de querer saber (ou SUPOSTO SABER, diria o velho rabugento).
O que tentei lhes ensinar, penso, não se ensina a ninguém – aprende-se com uma boa dose de intuição e disponibilidade para aprender a ouvir nossos pacientes. Para mim, essa tarefa é a mais inglória, mas vamos lá: tentei lhes ensinar a brincar com crianças (e trazer o lúdico e o afeto para a cena analítica – dá para fazer isso, minha gente!!!); tentei lhes ensinar a brincar com as palavras (freudiana, lacaniana [por que não/sim] e winnicottiana). Tentei lhes ensinar que nem só de Freud e Lacan vive o psicanalista, mas de todo o arcabouçou teórico que a psicanálise dispõe para lidar com o sofrimento psíquico dos nossos pacientes.
Tentei lhes passar a minha experiência através dos meus atos (alguns falhos - bem sabemos que foram muitos – pão de mel; sim querendo dizer não; Lacan querendo dizer Winnicott, pois o analista falha, e como dizia Winnicott, como toda mãe suficientemente boa, este deve falhar para o melhor proveito do seu paciente).
Tentei abrir suas mentes para um encontro de inconscientes – os seus e o dos seus pacientes; e acima de tudo, tentei lhes dizer o quão verdadeiro é o psicoterapeuta que segue a sua intuição. Lhes falei do inconsciente não-dizível – aquele que não é dado através da palavra, mas através de atos, gestos, olhares, tessituras. Demonstrei como nem sempre o uso do divã é necessário para uma análise. Muitas vezes, esta deve ser sustentada no e pelo olhar, e para uma alma em sofrimento, nada melhor do que espiar para dentro de uma janela refletida como modelo especular do OUTRO (outrão e outrinho). Mostrei como um simples gesto de positivação do ego trás recompensas que jamais esperamos, muito embora, essas recompensas venham em forma de um bombom de chocolate, ou um gesto de carinho de nossos pacientes, porque não? Mas nem sempre a tentativa de lhes ensinar o impossível foi uma via de mão única.
Vocês me ensinaram também. E vão deixar marcas. Como esquecer de pérolas do cotidiano que vocês tão bem souberam construir ao longo desses 17 meses que permanecemos juntos?
Veja bem Milton...  blá, blá, blá.. Um dia toda mãe vai dizer: trepem!!! Ou então dirá: Restrepem!!! Não foi assim com o caso da jovem homossexual? E o caso da jovem transexual? Ou ainda o caso da jovem heterossexual? Ou até mesmo o caso do jovem pervertido por pés? Ou a angústia daquela estagiária cujo paciente nunca vinha para a sessão, e quando vinha, chegava na hora de acabar? Tem ainda o jovem que assistia filmes do youtube de baile funk para se excitar nas noites insones. Da jovem que “mamava” na lata de leite condensado. Aquela paciente que na verdade, era uma menina triste em busca do seu referencial de alegria. Temos a jovem adolescente com um vazio interior muito profundo, mas que chegou a estourar balões com seu vazio! Me recordo ainda da comunicação silenciosa que se estabeleceu entre uma estagiária e seu paciente silencioso, da garota que chegou a se apaixonar por uma outra que nunca existiu, do menino cuidador de sua família e de sua mãe, e tantos outros que não daria aqui para incluir numa longa lista ao longo dos meses que permanecemos juntos, mas que certamente todos vocês sabem quem são.
Não vou me prolongar, esse era para ser um texto curto, curtíssimo, mas já se vão quatro páginas, e o que eu na verdade queria lhes dizer vem em seguida.
Quando sentei para escrever esse texto, a primeira coisa que me veio à mente (afinal de contas, não é disso que se trata o tempo todo nosso trabalho?), foi uma canção que retrata um pouco do que lhes queria comunicar durante o tempo em que permanecemos juntos. Quero que vocês saiam hoje com essa canção na cabeça estejam vocês onde estiverem daqui em diante.



Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim, chegar e partir
São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida[4].

Para os que partem, saibam que foi um prazer trabalhar com vocês. Levem consigo a crença de que tentei dar o máximo que me foi possível para contribuir na sua formação profissional. Perdoem meus erros e equívocos (para não dizer atos falhos). Isso também faz parte do jogo. Para os que permanecem, será muito bom aproveitar mais algum tempo com vocês no tempo que nos resta. Para os que acabam de chegar e ficam, gostaria de lhes dizer que é isso a vida: chegadas e partidas, encontros e despedidas. E que também me empenharei ao máximo em contribuir com o futuro profissional de vocês, na medida do impossível.
Queria terminar com um refrão de uma outra música que celebra a vida, a sua vida profissional que começa de hoje em diante:




Viver!
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz...
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser
Bem melhor e será
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita...[5]


Somos todos eternos aprendizes nessa jornada que se inicia. Um feliz 2012 para todos vocês!!!



Rio de Janeiro, 15 de Dezembro de 2011.





(*) Este texto, apesar de simples, é dedicado a Nathalia Lima Silveira, Vanessa Teixeira dos Santos, Camila Carvalho Machado, Felipe Nunes de Lima, Gustavo Corinto da Silva, Moisés dos Santos Vidal, Gabriela Souza, anna carolina das neves mourão, fernanda simões e senna, natalia serafim da silva e julia torres miranda de sá, minha primeira turma de estagiários da Divisão de Psicologia Aplicada Profa. Isabel Adrados do Instituto de Psicologia da UFRJ. Aprendi muito com todos vocês. Texto preparado para a última reunião de supervisão clínica e lido em 15 de dezembro de 2011.


[1] Wilde, Oscar. O artista Em As obras primas de Oscar Wilde. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 495-496.
[2] Idem, p. 497-498.
[3] Costa, Jurandir Freire. A questão da identidade sexual In Granã, Roberto. Homossexualidade: formulações psicanalíticas atuais. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 15-27.
[4] "Encontros e despedidas", Maria Rita.
[5] "O que é o que é", Gonzaguinha.








Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

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