“Não há maior solidão do que aquela nos olhos de um
homem morto;
e não há maior desafio do que aquele que aparece no
frio semblante de um falecido”.
Rosenzweig
Ninguém pensa na morte. Mas ela faz parte do nosso dia
a dia. A cada milésimo de segundo, milhões de células do nosso corpo morrem, e
outros milhões nascem. A cada minuto, no mundo, alguém tem que decidir entre a
vida e a morte de uma pessoa sob condições irreversíveis de doenças. Milhões
são gastos dia a dia para manter viva uma pessoa sob condição vegetativa,
entubadas ou dependentes de aparelhos para sobreviver, sem que, no entanto,
exista legislação suficiente para dar conta dessa realidade no mundo.
Será que realmente precisamos de uma política de vida
e uma política de morte, uma “biopolítica e uma tanatopolítica”?
Gostaria de discutir o assunto a partir das considerações
do filósofo italiano Giogio Agamben e suas concepções acerca de vida e morte.
Agamben parte das referências gregas para situar o
campo da vida. Para ele, os gregos tinham duas formas de definir vida: zoé, que dizia respeito a vida comum de todos os
seres vivos (animais, homens ou deuses), ao próprio fato de estar vivo; e biós,
que seria a forma de viver a própria vida organizada em torno de um grupo ou
comunidade, com estatuto político e possibilidade de potencialidade. Para ele,
a zoé grega nada mais seria do que viver livremente, fora das grades da
política, da lei e dos cálculos do poder. A isso ele se referiu como sendo
“vida nua”. “Vida nua” refere-se, então, a uma forma de vida na qual não se
pode incidir nenhuma forma de controle, nenhum poder, nenhum direito, mas
também nenhum dever. Exemplos de “vida nua” podem ser encontrados em pessoas
refugiadas, nos campos de concentração, em cobaias humanas, em prisioneiros
políticos, ou ainda em pessoas cuja autonomia sobre a própria vida não é mais
possível (pessoas em coma, em morte-cerebral, e grosso modo, condenados à
morte, estariam aqui incluídos).
Até então, a organização da vida dos seres humanos
girava em torno dessa premissa, como um “animal vivente capaz de existência
política”. Mas durante a história da modernidade, houve um tempo em que a vida
natural começou a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal e a
política passou a se transformar naquilo que Foucault denominou de biopolítica,
a qual, a vida biológica passou a ocupar, passo a passo, o centro da cena
política moderna.
O que Foucault chamou de biopolítica, foi a implicação
da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do biopoder de modo a
controlá-la. Primeiramente, quem passou a ter poder sobre a vida humana foi a
medicina, com a preocupação de regras gerais de controle da natalidade, de
contenção de doenças e endemias, com a construção de hospitais e alocação dos
“doentes mentais” em “asilos para loucos” e, como não poderia deixar de ser,
com a sexualidade de um modo geral. A biopolítica se dava, principalmente,
sobre um disciplinamento do corpo da população através de uma medicalização e
normalização dos códigos que a regiam. Posteriormente, a biopoder vai dar conta
de outros setores da população, ele vai incidir mais ainda no controle dos
corpos dos indivíduos, prolongando seus tentáculos nas escolas, nas fábricas e
nas prisões. Em sua análise, vemos como o poder passou a penetrar no próprio
corpo dos sujeitos e nas suas diversas formas de vida.
O corpo, para Foucault, era um corpo controlável,
dócil, sujeito aos ditames do biopoder e da biopolítica. A ideia de vida, para
ele, só poderia ser pensada a partir da ideia de morte. A morte seria um
momento de desalienação total, no qual nos tornamos singular.
Mas nem sempre a morte foi pensada desse modo. Morrer
ou matar era uma dádiva do rei ou do soberano, que detinha o poder de vida e de
morte da população. A mudança da noção de morte no ocidente, segundo Foucault,
operou de modo a estabelecer um poder de morte sobre a vida, e essa fase de
transição fez com que fosse inscrita nos mecanismos do biopoder. Antes, o poder
soberano se definia através do pensamento “fazer morrer e deixar morrer”,
agora, o Estado considerava “fazer viver e deixar morrer”. Esse poder sobre a
vida e a morte, foi condicionado, em um primeiro momento, ao soberano, e muito
posteriormente ao Estado através da medicina no campo da biopolítica.
O soberano era aquele que podia decidir sobre a vida
do povo sem que fosse submetido a qualquer sanção, sem que fosse punido pela
sua decisão. É essa ideia de soberania e sacralidade da vida que Agamben vai
reter para começar a pensar o conceito de “vida” tal como “vida nua”, ao pensar
o fenômeno do Holocausto como o último exemplo onde o biopoder se manifestou
vividamente.
Para ele, “homo sacer” era aquele cuja vida
podia ser matável sem que estivesse na esfera do sacrifício e sem que alguém
fosse punido pela sua morte. Sua vida era despida de qualquer valor. Em suas
palavras, “a especificidade do homo sacer é a impunidade da sua morte e
o veto de sacrifício”. O “homo sacer” é excluído da comunidade na forma
daquela pessoa que poder ser sacrificada – o melhor exemplo disso foi encontrado
nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial através do nazismo.
Toda vida insacrificável e, todavia, matável, descreve Agamben, é vida sacra.
Para Agamben, “soberana é a esfera na qual se pode
matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é,
matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera. (...) Sacra,
isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando
soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da
soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o
poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental,
exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder
de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono”.
É preciso que se retenha isso em mente, para que
possamos compreender como Agamben vai compreender a “politização da vida” e,
sobretudo a “politização da morte”, de modo a buscar formas de se tentar sair
dessa armadilha e como isso se coaduna com o tema proposto. Caminhemos um pouco
mais.
Nem sempre o “direito à vida” foi um direito inerente
a todos os cidadãos.
De acordo com Hannah Arendt “somente quando a
imortalidade da vida individual passou a ser o credo básico da humanidade
ocidental, isto é, somente com o surgimento do cristianismo, a vida na Terra
passou também a ser o bem supremo do homem”. O cristianismo foi o responsável
pela ideia de inviolabilidade da vida, cuja era moderna passou a operar sob a
premissa de que a vida seria um bem supremo, passando a valorizá-la e a
conceder-lhe um valor tal qual um bem supremo.
O processo de politização da vida se deu quando
passamos a compreender a vida biológica do ser vivente e suas necessidades,
como parte integrante da política, sendo o corpo o novo sujeito da política
reivindicado pela democracia moderna. De acordo com Agamben, “se é verdade que
a lei necessita, para a sua vigência, de um corpo, se é possível falar, neste
sentido, do ‘desejo da lei de ter um corpo’, a democracia respondeu ao seu
desejo obrigando a lei a tomar sob seus cuidados este corpo”.
Dito de outro modo, o processo de politização da vida
se deu, quando passamos a valorar a vida como um bem supremo e inviolável,
quando passamos a acreditar que seria necessário defendê-la a qualquer custo
garantindo a autonomia de cada um, elegendo a materialidade do corpo como
ferramenta a ser valorizada.
Para Hannah Arendt, “foi precisamente a vida
individual que passou então a ocupar a posição antes ocupada pela ‘vida’ do
corpo político; e as palavras de Paulo – de que ‘a morte é o prêmio do pecado’,
uma vez que a vida se deveria durar para sempre – repete a afirmação de Cícero,
de que a morte é a recompensa dos pecados cometidos por comunidades políticas
que haviam sido construídas para durar por toda a eternidade”.
Pois bem, segundo o filósofo Joseph Raz, o valor da
vida de uma pessoa só é determinado pelo valor que concedemos às suas
ocupações, dos seus relacionamentos e de suas experiências, ou seja, pelo seu
próprio conteúdo. Nesse caso, continuar vivo, diz o autor, depende muito mais
do valor do conteúdo da vida de cada um de nós para que passemos a acreditar
que vale a pena permanecer vivo por mais tempo.
Joseph Raz faz algumas distinções entre valorar ou não
a vida. Para ele, há duas possibilidades, entre tantas. O “valor da vida
passada”, na qual podemos dizer se
tivemos uma vida boa ou má, e o “valor de sobrevivência”, na qual podemos não
valorar de modo algum a vida que tivemos. É importante observar que, apesar de
não dialogar diretamente com Agamben, Joseph Raz se coloca diante do valor que
atribuímos à vida e à morte de modo crítico. Diz que assim como valoramos a
vida, também valoramos a morte. De fato, é impossível ter a experiência de
morte para dizer se esta foi uma morte boa ou má, mas a mortalidade, diz ele, é
vital para a nossa existência. Sem ela, não teríamos como dizer se a vida que
tivemos foi boa ou má. Termos como boa ou má vida, juvelinidade, longevidade,
entre outros seriam impensáveis sem a experiência da morte. Mas não seria esta,
justamente a assimetria da vida e da morte a qual nos reportamos anteriormente?
Como ter uma experiência de existir sem passar pelo nascimento? Só conseguimos ter
o sentimento dessa materialidade corpórea, porque já passamos pela experiência
de existir. Ora, mas antes de nascermos, também não existíamos, então, por que
não conseguimos pensar na vida como “não existindo” antes do nosso nascimento?
Resposta simples: impossível! Este seria o “ponto de vista de lugar nenhum”
referido por Thomas Nagel e retomado por Joseph Raz para suas análises sobre o
“valor da vida” e sobre o fenômeno da morte tais como na eutanásia, nas
experiências de “vida vegetativa” e “morte-cerebral”.
Compreendemos, portanto, que esse é o mote pensado por
Agamben para discutir as questões ligadas à “vida que não merece ser vivida”,
no tocante às cobaias humanas, à eutanásia e à morte-cerebral.
De acordo com Agamben, o conceito de “vida sem valor”
ou “indigna de ser vivida” aplica-se, substancialmente a todos os indivíduos
que devem ser considerados “incuravelmente perdidos” em decorrência de uma
doença ou ferimento grave e que tenham consciência de sua condição.
Sem querer tomar nenhum posicionamento ético diante da
questão, Agamben vai questionar sobre o direito de termos autonomia diante de
nossa própria vida, ou porque não dizer, sobre nossa própria morte. Se foi
necessário que toda uma conjuntura política requerida pela sociedade em
estabelecer leis em prol do valor da vida, como devemos proceder em situações
onde a decisão de continuar ou não vivendo deve ser posicionamento legal? A
quem devemos conceder o direito de estabelecer em que momento termina a vida e
em que momento “começa” a morte? E nos casos em que o sujeito pode decidir
sobre sua própria vida?
O que Agamben chama de “politização da morte” foram
todos os dispositivos que fizeram com que a medicina e o direito passassem a se
interpenetrar de modo a fazer com que a vida nua habitasse de modo definitivo o
espaço de exceção da qual fazia parte através do advento das novas tecnologias
de prolongamento da vida, cuja morte se transformava, pouco a pouco, em um
“epifenômeno da tecnologia do transplante”.
Como consequência, o biopoder passou das mãos do
soberano, para as mãos do médico-cientista, e destes, para as mãos do Estado,
que converteu a biopolítica em biopoder, e logo em seguida, em tanatopolítica, decidindo
quem “pode viver” e quem “deve morrer”.
Agora, é o Estado quem deve decidir sobre o
“falso-vivo”, o “comatoso”, o “corpo cadáver” ou o “cadáver vivo”, e assim,
fazendo crer que organismos vivos, de fato, pertencem ao poder público. Claro,
não somos hipócritas em pensar que nas salas de mantimento da vida, médicos e
enfermeiros decidem muito antes e nas surdinas quem deve e quem não deve viver.
Uma prática corrente, que vez ou outra, chega até nós através da mídia. Mas é
preciso compreender que o advento das novas tecnologias, nos colocaram dilemas
éticos cada vez mais impensáveis há poucas décadas, e que sem essa discussão
sobre o que é e o que não é vida e morte, não podemos nos posicionar sobre a
continuidade ou não de nossa existência.
Vida nua sim, mas, sob quais condições? Se nos fosse
perguntado e se nos fosse dado o ônus de escolher a forma em que gostaríamos de
permanecer vivo, qual forma escolheríamos? A vida imputada pelo cristianismo,
pautada no sofrimento, na dor e na submissão de viver encerrado em um corpo que
não mais responde às nossas expectativas de vida, ou nas condições que nos faz
ser um cérebro, descarnado e despersonificado? Será que mesmo assim, ainda
teríamos condições de decidir pela vida? Por outro lado, que garantia teríamos
de que a morte, nessas condições, seria a melhor resposta às nossas
inquietações diante da nossa incondicional onipotência narcísica diante do que
já fomos ou gostaríamos de ser?
Nas culturas asiáticas, a morte, há muito deixou de
ser pensada como um fim nela mesma, propondo uma nova concepção de vida mesmo
depois de nossa existência terrena.
A vida é, em síntese, potencialidade, ou seja, todas
as formas que o sujeito humano consciente pode criar para dirigir sua pulsão de
vida contra a pulsão de morte. A potência de vida só se coaduna em ato, como
modo de nossa própria existência.
Mas é preciso estar sempre alerta, como nos tenta
avisar Paul Rabinow, de como essa biopolítica, na contemporaneidade, tem se
convertido naquilo que ele chama de biossociabilidade, ou seja, toda uma forma
de vida baseada nas novas convenções tecnológicas de verdades.
O fato é que com os avanços tecnológicos da medicina,
a biopolítica não teve outra saída a não ser converter-se, pouco a pouco, em
tanatopolítica, trazendo como consequência a necessidade de se legislar sobre
uma nova realidade que antes não teríamos como dar conta: o momento em que
podemos decidir sobre a nossa vida, livrando-nos das prisões impostas pela
medicina, pela tecnologia, pela ciência, e pela “sacrossantidade da vida”.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .
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