Poetisa norte-americana, também
conhecida como H.D., Hilda conviveu desde cedo com um grupo de escritores,
artistas e intelectuais ricos da burguesia do início do século. Foi analisada
por Freud entre o período compreendido de 1933 a 1934, registrando um período
de intensa convivência com o criador do método psicanalítico, trocando
inclusive uma série de correspondências durante e posteriormente à sua análise.
Dois foram os registros dessa
análise por Hilda. Um deles, Escrito na Parede, é a memória desse tratamento, e
Advento, uma compilação dos diários mantidos pela autora durante o período da
sua análise.
O texto não é o relato mais
completo de uma análise com Freud. Outros autores já haviam se aventurado nesta
empreitada, conforme afirma a prefaciadora do livro, a historiadora e
psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco: a primeira, Minha Análise com Freud: Reminiscências, escrita por Abram
Kardiner, e publicada em Inglês, em 1977 e a outra, Fragmentos de uma Análise com Freud, publicada em 1954 por Joseph
Wortis.
O importante não é a
fidedignidade dos textos escritos pelos analisandos de Freud, mas a
oportunidade de que estes textos apresentem o criador da psicanálise, expondo-se,
se apresentando como ele nunca ousou fazer, visto que o próprio Freud disse que
iria dar trabalho aos seus biógrafos após a sua morte.
Muitos dos textos já conhecidos
de Freud caíram em domínio público, mas há uma série de cartas, artigos
inéditos depositados na Biblioteca do Congresso Nacional norte-americano, que
só virão à publico após 1938, ou seja, 100 anos após a morte de Freud.
Quanto à Hilda, nascida em 10 de
setembro de 1886 em Bethlehem, Pensilvânia, era advinda de uma família
recomposta, com um pai professor universitário de física e astronomia, já
casado uma vez antes de desposar Helen Wolle, mãe de Hilda.
Ela teve uma aproximação muito
forte com a poesia anglo-americana, e da sua adolescência à vida adulta, fez um
verdadeiro passeio por vários movimentos literários da poesia ao redor do
mundo, mas eminentemente influenciada pela poesia europeia.
Casada e descasada algumas vezes,
foi na homossexualidade que descobriu verdadeiramente o amor, vindo a conhecer,
em 1918, Annie Winifred Ellerman, nascida em 1894 e aquela que se tornaria sua
companheira de sua vida. Annie era cinéfila, romancista e curiosa da
arquitetura, engajada na política e assumiu o pseudônimo de Bryher, referência
a uma das ilhas Scilly, onde gostava de frequentar. Dizia-se que pertencia ao
sexo intermediário, desejando os homens como um homem para melhor amar as
mulheres ao mesmo tempo como mulher e como homem. Herdeira rica, amiga de Joyce
e Hemingway, melancólica, fundou a livraria Shakespeare ¨Co., que logo logo se
tornou um dos lugares mais frequentados da vida literária parisiense.
Foi Bryher quem se interessou
primeiro pela psicanálise, antes mesmo de H.D. a descobrir. Munida de uma carta
de recomendação de Havelock Ellis (que para quem não conhece, era um dos
defensores dos direitos dos homossexuais na transição do século XIX para o
século XX), Bruher encontrou-se com Freud em Viena e ficou deslumbrada com sua
inteligência e seu modo de vida pouco avesso às normas burguesia. Ele a
aconselhou a fazer análise em Berlim com Hanns Sachs, seu discípulo austríaco,
que havia fundado junto com Otto Rank (aquele psicanalista contemporâneo de
Freud que escreveu sobre o Trauma do Nascimento) a revista Imago. Sachs era
amante da arte, literatura e cinema, e havia participado do roteiro de um filme
chamado Os mistérios de uma alma (obra prima do cinema expressionista, segundo
Roudinesco).
Sachs também estava adaptado ao
Berliner Psychoanalustisches Institut, fundado por Max Eitington, outro
discípulo de Freud, e presente nas suas reuniões das quartas-feiras, e estava
mais aberto a questão da homossexualidade e quase não respeitava as regras que
havia fundado e fixado para a formação dos psicanalistas. Além disso, segundo
Roudinesco, era epicurista, gastrônomo, sedutor de mulheres e solteiro, capaz
de todos os tipos de transgressões: saia de férias com seus analisandos em
formação, e estes, com seus pacientes.
Entre 1828 e 1932, Bryher
circulou por Londres, Berlim e Villa Kenwin para ser analisada por Sachs, logo
cedo participando de encontros de psicanálise promovidos pela IPA. Era crítica da orientação
anglo-americana ortodoxos, sobretudo no que se referia às teorias em torno da
homossexualidade masculina e feminina.
Hilda iniciou seu primeiro
tratamento psicanalítico em Londres, em 1931, com Mary Chadwick, discípula de
ninguém menos que Melanie Klein, que defendia a análise de crianças, quando
Freud afirmava a que uma análise não deveria começar antes dos quatro anos de
idade. Como sabemos, Klein defendia o acesso ao inconsciente de crianças
através de dispositivos específicos – jogos, massa de modelar, cubos, bolas,
brinquedos diversos, que permitia que a criança se expressasse. A sua
perspectiva era analisar as relações arcaicas com a mãe, primeiro objeto de
toda afeição posterior, ao passo que Freud defendia a prevalência do pai
separador na dinâmica inconsciente, ou seja, a tese do monismo sexual e de
essência masculina na libido humana, e que veio a ser explicitada em muitos dos
seus textos, mas principalmente nos seus famosos Três Ensaios, no caso Hans,
dentre outros.
Esta tese (sustentada pela escola
vienense por psicanalista como Marie Bonaparte – amiga pessoal de Freud e
Helene Deutsch) gerava problemas, não só dentro da própria metapsicologia como também
na formação de psicanalistas, pois Freud não conseguia dar conta da diversidade
das práticas homossexuais e bissexuais, já naquela época, arriscando-se a ser
desmentido pela evolução dos costumes e pela transformação radical da visão da
feminilidade, não somente pelas mulheres em busca de liberdade, independência e
igualdade, mas também pelos homossexuais masculinos e femininos, que não podia
de forma alguma aderir a uma tese tão pouco conforme à gênese de sua
identidade. Os analistas da escola
inglesa, sobretudo aqueles que orientação kleiniana, defendia a cura da
homossexualidade.
Diante de todo esse cenário, Mary
Chadwick aplicou sua doutrina à cura de H.D., orientando a análise às
profundezas da ligação com a mãe e uma preocupação normativa exagerada e foi um
verdadeiro desastre, sugerindo a analisanda que fosse tentar a sorte em Viena,
junto ao mestre Freud, e foi assim que 1 de março de 1933, um mês após a
ascensão de Hitler à Chancelaria do Reich, ela se encontrou com Freud pela
primeira vez, logo estabelecendo com ele uma relação transferencial positiva,
colocando-o no lugar da sua mãe, o que Freud revidou com veemência: “Não gosto
de ser a mãe numa transferência, isso me surpreende e me choca sempre um pouco.
Sinto-me totalmente masculino”, acrescentando que isso as vezes acontecia com
frequência com seus pacientes. Mal sabia ele que alguns anos mais tarde, um de
seus herdeiros, Donald W. Winnicott iria defender justamente o lugar de mãe na
análise para o bom andamento do tratamento, princípio básico da transferência,
da confiança e do acolhimento ao sofrimento do analisando, trazendo bons
resultados numa análise, sobretudo de paciente regredidos ou de personalidades
narcísicas (borderline ou casos limites).
Diferente de sua discípula, Freud
não tentou curar a homossexualidade de H.D., não a encerrando nos limites da
sua teoria. Pelo contrário: ele contribuiu para deskleinizá-la, ou seja, ao
invés de culpabilizá-la denunciando sua pouca aptidão por uma “sexualidade
normal”, ele não cessou de valorizar sua atividade criadora, ocupando junto a
H.D. um lugar ocupado por um antigo amor que valorizava seus escritos, mesmo
quando estava convencido de ser suporte de uma transferência maternal.
De acordo com Roudinesco, mesmo
que o texto de H.D. não se refira à homossexualidade, ainda assim, é disso que
Freud vai cuidar ao longo do tempo da sua análise com H.D. Freud era tolerante
à homossexualidade, compreendendo a sexualidade humana como eminentemente
bissexual, recusando a maior parte das teses sexológicas da época, considerando
a homossexualidade nem inata nem natural, mas o resultado de uma escolha
psíquica inconsciente, recusando toda a forma de descriminalização contra os
homossexuai. Não os achava nem invertidos, nem degenerados, nem anormais, nem
estigmatizáveis em termos de raça, sustentando que era inútil tentar
transformar um homossexual em heterossexual, ou vice-versa.
Freud também tinha suas razões
para mudar de opinião e não tentar estigmatizar a homossexualidade não só
dentro da sua teoria como dentro da própria vida social que pertencia. Um dos motivos estava centrado na sua própria
filha e fiel escudeira, Anna Freud, por quem nutria um amor paterno chegando a
defendê-la de todos os homens que se aproximassem dela, inclusive Ernest Jones,
seu biógrafo oficial e amigo pessoal. Anna Freud era considerada sua Antígona,
referência à filha de Édipo Rei. Preocupado em vê-la solteira por causa das
suas proibições, ela acaba resistindo às investidas dos homens que a
cortejavam, daí decidindo-se por analisa-la n período entre 1918 e 1920 e entre
1922 e 1924, tendo por principal testemunha outra discípula sua, Lou
Andreas-Salomé.
Foi a ela quem Anna confessou sua
atração por mulheres no momento em que preparava sua primeira apresentação em
um congresso de psicanálise. Mas foi resultante da sua análise com seu pai que
Anna Freud se constituiu hostil à homossexualidade, considerando-a como doença
curável pela análise, até conhecer Dorothy Tiffany Burlingham, por quem tomará
por companheira pelo resta da sua vida. Nascida em Nova Iorque e neta do
fundador das lojas Tiffany & Co., Dorothy se separou de um marido violento,
deixando os Estados Unidos com seus quatro filhos para se submeter a uma
análise com Theodor Reik, outro amigo de Freud e participante dos encontros das
quartas-feiras,. Foi através dele que Dorothy veio a conhecer, em 1925, Anna
Freud, que não hesitando ao finalizar o tratamento com seu pai, tornou-se
preceptora e depois analista dos filhos de Dorothy e passando a manter uma
relação de amizade a amor que as deixavam mais próximas.
De acordo com Roudinesco,
sessenta anos antes da palavra “homoparentalidade”, Anna tornou-se co-mãe dos
filhos de Dorothy, e juntas decidiram alugar um apartamento no número 19 da
Bergasse, ou seja, mesmo prédio da família e do consultório dos Freud.
Quanto a Freud, para manter a
filha perto dele, não hesitou em ser o patriarca de uma nova família, somando à
sua, a família de Dorothy, descrevendo numa carta a Ludwig Binswanger que os
laços simbióticos com uma família americana (sem marido) se tornavam cada vez
mais sólidos, de modo a partilharem de viagens de férias durante o verão.
Assim compreendemos melhor a
tolerância de Freud em relação às relações de Hild Doolittle com seus amigos e
sua amante e que fez com que o criador da psicanálise empreendesse uma análise
mais humanamente útil aquela que trazia-lhe seus sofrimentos resultantes ou não
das suas escolhas afetivas, não cessando de incentivar sua criação artística
nem se furtar de manter uma correspondência com H.D. durante o período de sua
análise até bem pouco antes de sua morte, já refugiado na Inglaterra, por conta
da sua fuga contra o nazismo.
Os analistas de hoje ficariam
espantados de saber o quanto Freud estava à frente da ciência que inventara. E
uma boa forma de conhecer a sua genialidade, está no excelente texto que nos
chega em português, Por amor a Freud –
memórias de minha análise com Sigmund Freud, escrito pela sua analisanda Hilda
Doolittle, ou simplesmente, a poetisa H. D.
Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br.