sábado, 19 de dezembro de 2015

Como é ser uma criança? Por Oliver Sacks



COMO É SER UMA CRIANÇA? [1]

OLIVER SACKS


The New York Times, 24 de maio de 1987

Tradução: Sergio Gomes

A psicanálise, sem desmerecimento, tem reunido algumas vezes uma reputação equivocada de si mesma – seja ela não científica, não verificável, redutora da riqueza da natureza humana e, não menos importante, propensa a usar um jargão opaco que a torna inacessível para o leigo.  O melhor antídoto para tudo isso é o pensamento e a escrita direta e lúcida de D. W. Winnicott. Ali estava um homem que poderia ser “popular”, completamente acessível, sem nunca deixar de ser profundo; um homem que variou audaciosamente e chegou a lugares muito longe nos reinos do pensamento, mas que sempre voltava para sua base, a psicologia da criança.
Winnicott começou como um pediatra e continuou a trabalhar com crianças durante toda a sua vida - suas teorias não são apenas “interpretações” ou “construções”, como algumas teorias psicanalíticas são, mas estão enraizados em sua observação do dia-a-dia de crianças. Com sua linguagem direta e contundente e pontos de vista intensamente independentes, ele passou a deter uma posição dupla única - como um grande pensador psicanalítico e teórico do desenvolvimento e igualmente como uma figura pública; na Inglaterra, pelo menos, ele era tão conhecido para o público como para seus colegas de profissão.
A reputação e influência de Winnicott, considerável em sua vida, têm aumentado continuamente desde a sua morte em 1971 e suas ideias muito “prematuras” para ser totalmente compreendidas em seu tempo de vida, têm um papel crucial no emocionante encontro entre a psicanálise e a biologia do desenvolvimento que está ocorrendo hoje. Na última década, um grande tesouro winnicottiano foi descoberto, incluindo “O brincar e a realidade”, um de seus livros mais acessíveis e mais importantes, embora também tenha sido publicado poucos meses depois de sua morte. Entre suas obras encontram-se “A Piggle”  -  um relato do tratamento psicanalítico de uma menina; “Privação e delinquência”; “Tudo começa em casa”, publicado no ano passado, que inclui suas palestras célebres sobre “Viver Criativamente” (E mais de meia dúzia de livros estão em preparação). E agora, na primavera deste ano, temos mais dois volumes.
“Holding e Interpretação: Fragmento de uma análise”, foi publicado parcialmente e agora é editado em um texto definitivo, com uma importante introdução de M. Masud Khan, a quem era muito próximo de Winnicott em vida e se esforçou para reunir e editar várias obras póstumas desde sua morte. Aqui está uma transcrição completa e um olhar para dentro do que geralmente é o segredo mais privado de uma experiência analítica. Essas transcrições são extremamente raras - mesmo para Freud, embora ele mantivesse notas detalhadas, mas nunca manteve uma transcrição completa. Já houve, é claro, outras descrições de análises que nos dão uma ideia geral dos temas centrais de uma análise e a relação e os processos centrais do trabalho de uma analista, mas essa transcrição é diferente. É o plano verdadeiro, em que tudo está em aberto para ver: os momentos especiais pontuados pelas horas de tédio; o surgimento dos sentimentos da transferência e da contratransferência; a mistura do imprevisível e inevitável; os erros de interpretação e de datas e não menos importantes, dos seus triunfos.
Uma introdução mais próxima e mais pessoal para o homem e seu trabalho é fornecida por “O gesto espontâneo”, amplamente focado na seleção de cartas de Winnicott. Nenhum desses livros havia sido publicado antes. Eles foram sensivelmente editados F. Robert Rodman, que fornece uma introdução detalhada e fascinante. Dr. Rodman descreve como ele mesmo, então um jovem analista em Los Angeles, escreveu a Winnicott em 1969 e recebeu uma resposta particularmente acolhedora – “foi mais do que uma resposta: foi um presente”. O impacto desta carta, o sentido das cartas de Winnicott como “presentes”, levou o Dr. Rodman a embarcar em um longo projeto de coletar quase mil cartas e selecionar as 126 publicadas no livro, todas centralmente relacionadas com o desenvolvimento do trabalho e as ideias de Winnicott. Dr. Rodman é eminentemente adequado para esse trabalho, uma vez que ele próprio é tanto um autor quanto um analista que já reuniu sua sensibilidade humana em dois livros notáveis: ''Not Dying: A Memoir'  (Não morrer: uma memória) e  “Keeping Hope Alive: On Becoming a Psychotherapist” (Mantendo a esperança viva: sobre se tornar um psicoterapeuta) [ambos sem tradução no Brasil].
A primeira carta do livro, escrito por Winnicott ainda como estudante de medicina em 1919, é bastante notável, mostrando claramente, nesta fase, a sua intenção de explorar a psicanálise (“um assunto que tem o grande charme de ser realmente útil”); sua admiração e respeito pela mente humana e sua própria independência extrema de ideias - uma independência que era a raiz de sua originalidade subsequente; sua recusa em ser identificado com qualquer “escola” de psicanálise e seu ser, em suas próprias palavras, era “um fenômeno isolado”.
Embora houvesse um continuado desenvolvimento de ideias ao longo sua carreira, seu verdadeiro crescimento só veio no último terço de sua vida, quando, ao longo de 25 anos de atividade criativa incessante, ele desenvolveu suas técnicas e teorias totalmente originais. Uma técnica de projeção winnicottiana foi o “jogo do rabisco” - um desenho começado por Winnicott, e, em seguida, continuado como um jogo entre seus jovens pacientes e ele mesmo. Winnicott disse que ele só se tornou realmente proficientes em rabiscos em torno da idade de 60 anos e parece provável (como tem afirmado sua velha amiga Madeleine Davis entre outros) que esta nova proficiência correspondeu à imensa capacidade que ele tinha para o jogo durante os últimos 20 anos ou mais de sua vida. Esta capacidade pessoal foi seu reconhecimento da imensa importância do jogo no desenvolvimento humano e na cultura. Não havia separação entre o homem e o pensador: o teórico de jogo tornou-se o mais brincalhão dos homens. Enquanto o próprio Freud era imensamente espirituoso e escreveu “Os chistes em relação com o inconsciente”, a teoria freudiana, em certo sentido, tinha pouco espaço para o brincar, para outra coisa senão “realidade” ou “fantasia”.  Winnicott, embora nunca tivesse entrado em conflito com Freud, ampliou a psicanálise abrindo espaço para este terceiro reino - o reino da liberdade ou do brincar, e traçou a sua continuidade do que ele veio a chamar de “fenômenos transicionais” na infância, através do brincar com crianças, para as mais altas  e criativas realizações imaginativas da humanidade.
Às vezes, algumas pessoas temem, nestes dias tecnologizados e de ligações telefônicas apressadas, que a escrita de cartas irá desaparecer. Esta seria uma grande tragédia, pois uma carta (na melhor das hipóteses) é uma forma de comunicação diferente de qualquer outro, rica em conteúdo ainda que intensamente pessoal - e as cartas de Winnicott estão entre as melhores. Winnicott, apesar de sua eminente e incessante pressão de trabalho, nunca teve de voltar a escrever e escreveu longa e abertamente a correspondentes de todos os tipos. Há uma carta maravilhosa a um americano, um homem angustiado que escreveu para Winnicott inesperadamente. Winnicott deve ter recebido inúmeras cartas desse tipo, mas ele geralmente respondia na íntegra, com uma seriedade apaixonada e a preocupação com o sofrimento de quem escreveu. Assim, nesta carta, sensível à “agonia impensável” da qual seu correspondente sofria, ele via motivos para esperança e afirmação.
Winnicott era infinitamente sensível às necessidades, especialmente as não ditas e inconscientes, se estas eram as necessidades dos colegas ou de pacientes, ou de estranhos que escreviam para ele. Ninguém sente, lendo essas cartas, ter escrito para ele em vão (ninguém em necessidades). Ele foi movido igualmente por necessidades intelectuais e culturais (e não menos importante, por necessidades políticas). A necessidade de ser claro, para evitar obscuridade ou jargão; a necessidade de ser independente; a necessidade de ser livre; a necessidade, acima de tudo, para viver a vida de forma totalmente criativa. Estes são os temas que se movem constantemente através de suas cartas, enquanto se moviam constantemente através de sua vida e obra. Não é de se imaginar que um homem tão consciente das necessidades e habitualmente claro e direto em suas palavras, fuja às necessidades de ataque. Raramente pode ter havido um correspondente franco como Winnicott -  ele encarava de frente seus ataques, conforme observa Dr. Rodman, mas os ataques sempre brotam de sua intensidade de concernimento (intensity of concern). Assim, em uma das cartas mais surpreendentes, para a famosa analista Melanie Klein ele escreveu:
“Eu pessoalmente acho que é muito importante que o seu trabalho deve ser reafirmado por pessoas que o descobrem em sua própria maneira e apresentar o que apresentem o que descobrem na sua própria linguagem. E apenas desse modo que a linguagem será mantida viva. Se você estipular que no futuro apenas a sua linguagem seja usada para a afirmação das descobertas de outras pessoas, então a linguagem se torna uma linguagem morta, como já se tornou na sociedade. Você ficaria surpresa. Você é a única que pode destruir esta linguagem chamada a doutrina kleiniana e kleinianismo, e tudo isso com um objetivo construtivo. Se você não destruí-la, então esse fenômeno artificialmente integrado tem de ser atacado destrutivamente”.
Winnicott tinha uma grande afeição pessoal por Melanie Klein, e ele a considerou a mente mais criativa na psicanálise depois de Freud. Não foi Klein mas o “kleinianismo” que incitou seu ataque. Muitos termos idiossincráticos de Winnicott se passaram para a linguagem psiquiátrica - e, pelo menos na Inglaterra, onde Winnicott tinha uma grande audiência popular, para o vocabulário popular. Termos como “a mãe suficientemente boa”, “a mãe devotada comum”, “a fase de concernimento”, “a exploração do ambiente” e não menos importante, o conceito de “falso self” (que mais tarde foi assumido por R. D. Laing) agora parecem muito mais parte do nosso vocabulário do que precisamos lembrar que eles foram usados ​​pela primeira vez por Winnicott. Mas principalmente como o Dr. Rodman nos lembra, “ele foi o primeiro a abordar de forma analítica uma questão que não tinha sido considerado por psicanalistas diante dele: sobre o que versa a vida?”. Esta questão, previamente filosófica ou religiosa, une os lados biológicos e religiosos de Winnicott, mas recebe radicalmente novas formulações em termos psicológicos: é o tema central de seu grande livro de 1965 chamado “O ambiente e os processos de maturação”, um estudo profundo das necessidades e dos potenciais humanos e como eles devem ser reconhecidos e tratados. O próprio título do livro diz tudo, salienta que estes potenciais não amadurecem “espontaneamente”, mas exigem uma interação especial - primeiro entre os pais e o filho, em seguida, entre professor e aluno, e depois talvez entre o terapeuta e o paciente. Winnicott disse uma vez: “Não existe tal coisa como um bebê”, o que significa que onde quer que você encontre um bebê, você também irá encontrar uma mãe, e que os dois devem ser sempre considerados como um par.
O fundador da neuropsicologia, L. S. Vigotsky, teve precisamente a mesma visão interativa sobre o desenvolvimento da linguagem e do pensamento em si: que estes não poderiam desenvolver sem figuras de facilitação  - “mediadores” - situado a uma certa distância (no que Vigotsky chamou de “zona de desenvolvimento proximal”), que poderia servir para trazer os potenciais latentes da criança. A linguagem, para Vigotsky, foi uma realização conjunta, negociada entre a mãe e o filho. Pode igualmente ser vista em termos winnicottianos como um “objeto transicional”, “mediação entre o mundo exterior e interior”. O trabalho de Vigotsky, em 1936, foi prontamente reprimido (como sendo anti pavloviano), e é provável que Winnicott nunca soube disso (ao menos por Luria, o neuropsicólogo que falou sobre isso com Winnicott - Dr. Rodman inclui uma breve carta tentadora, de Winnicott para Luria, aludindo a um fim de semana de conversa em conjunto). E só agora que Vigotsky está sendo redescoberto, e vemos que ele e Winnicott são irmãos, e a neuropsicologia e a psicanálise são complementares e paralelas.
A psicanálise antes de Winnicott estava preocupada com a doença, com tudo o que poderia dar errado (emocionalmente) com uma pessoa. Winnicott, enquanto um analista soberbo no sentido clássico - e um dos primeiros a tratar pacientes profundamente regredidos e psicóticos - via a saúde como sua preocupação central. E saúde, para Winnicott, não era apenas a ausência de doença, mas um estado intensamente positivo de realização - a preservação da capacidade da criança brincar e imaginar; uma inviolável independência e espontaneidade; uma riqueza cada vez maior e liberdade de vida interior; e, acima de tudo, a capacidade de viver criativamente. E viver criativamente, para Winnicott, não era apenas algo para raras pessoas em momentos raros, mas potencialmente para todos, em todos os momentos.



[1] “What it´s like to be a child”, foi publicado originalmente no “The New York Times”, em 24 de maio de 1987. Este artigo foi escrito quando da publicação, nos Estados Unidos, dos livros “O Gesto Espontâneo”, coletânea de cartas de Winnicott, organizada pelo psicanalista Robert Rodman e “Holding e Interpretação”, sobre o tratamento de um paciente esquizoide feito por Winnicott a partir de suas notas clínicas. Disponível originalmente no link: http://www.nytimes.com/1987/05/24/books/what-it-s-like-to-be-a-child.html?pagewanted=all#h[]




quinta-feira, 9 de julho de 2015

O ÚLTIMO SORRISO DO PALHAÇO


O ÚLTIMO SORRISO DO PALHAÇO

Disponível no site

TRECHO:

Cresci vendo meu pai divertir a mim, a minha mãe e a centenas de pessoas que às vezes enchiam a lona que montávamos em alguns cantos das cidades. Ele não só nos fazia rir mas conseguia arrancar da nossa alma uma gargalhada. Ele dizia que aquele que não conseguia rir de um palhaço tinha um coração impuro, porque o palhaço sempre fala com a criança que habita em cada um de nós. Então, era com essa criança que ele se comunicava.


DO LADO DE DENTRO


DO LADO DE DENTRO

Disponível no site


TRECHO: 

Com o tempo, o serzinho passou a se acostumar com o curto espaço que ocupava e com os barulhos que ouvia, conhecendo-os cada vez mais e respondendo emocionalmente a alguns deles. Era uma forma de se comunicar. Então, havia dias em que tudo era caos naquele mar, mas outros, era tudo paz.

#brasilemprosa


A FACA DO AÇOUGUEIRO



A FACA DO AÇOUGUEIRO

Disponível no site 


TRECHO:


A impressão que eu tinha era de não haver escapatória, eu estava prestes a ser sacrificada ali mesmo pela loucura do meu pai, com a anuência da minha mãe e a paralisia do meu irmão.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

À minha mestre, com carinho



Gostaria de dividir com vocês a grande perda que tivemos nessa segunda feira, dia 12/05/2014. A morte da pessoa que me ensinou quase tudo que sei academicamente, a Profa. Teresa Campello, psicanalista de Recife e professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba, membro do Circulo Psicanalítico de Pernambuco.

Meu encontro com a Teresa se deu inusitadamente. Jovem, em 1994, fui fazer a disciplina ETICA EM PSICOLOGIA. Já haviam me falado que ela era uma pessoa dificíl. Após apresentar o programa de curso, no qual incluia os filosofos gregos, os modernos e os contemporâneos, Teresa pergunta: Quem já leu alguma coisa aqui de Jurandir Freire Costa? Eu e mais duas pessoas levantamos a mão numa turma de trinta alunos. Ela continua: Quem já leu alguma coisa aqui de Richard Rorty? Só eu levantei a mão. Ela se dirigiu a mim e disse: Quem é você? Com aquela empáfia característica dela.

A partir de então deu-se um encontro. Mais do que isso. Deu-se uma amizade no melhor sentido professor e aluno, mestre e aprendiz. Me lembro que ela disse certa vez: "O meu trabalho aqui é fazer vocês pensarem na contramão. Quando vocês tiverem certeza do argumento que vocês estão defendendo, eu vou fazer questão de pensar o contrário de todos vocês e demolir um a um todas as suas certezas. E quando vocês mudarem de opinião, eu vou voltar a opinião de vocês e apresentar todos os argumentos que fizeram com que vocês achassem que estavam certos, pensando na contramão". Ela era excepcional! Ao final do curso de ética, no qual teríamos que apresentar um trabalho semi-monográfico, eu a procurei para saber se ela poderia me orientar em monografia de fim de curso. Ela me respondeu: "Não trabalho com graduandos!". Fiquei acabado naquele dia. Mas depois ela disse: "Mas me traga temas, se eu gostar de algum, talvez eu lhe oriente". Dois meses depois eu a procurei e ela assinou o documento se responsabilizando pela minha orientação na graduação. 

Este trabalho resultou, ao final dele, em uma apresentação em um congresso internacional e em um artigo publicado na revista Psicologia, Ciência e Profissão. Teresa me ensinou como se ler um texto, como analisar um texto, como escrever academicamente, como entender um texto como uma intricada rede de "crenças e desejos", como diria Richard Rorty (autor que ela pouco gostava, mas lia). Me apresentou Rorty, me apresentou ao Jurandir Freire Costa, o qual disse que queria que eu fosse estudar com ele no Rio de Janeiro. Eu vim e fiz mestrado com o Jurandir. Teresa me orientou também em um trabalho de especialização em sexualidade humana, me ensinou e debateu comigo o que era sexualidade, o que era identidade, o que era gênero, mas principalmente, foi uma das responsáveis por me ensinar a psicanálise da qual trabalho hoje. Esse trabalho final da especialização em sexualidade humana, o qual eu analisei a noção de gênero do ponto de vista da masculinidade, foi todo publicado em revistas e um capítulo de livro. Não sei se ela chegou a tomar conhecimento disso. Ela ainda me incluiu no seu grupo de estudos na UFPB na época que eu era estudante de psicologia e nossos diálogos eram invejados pelos colegas que nos conheciam. Tivemos sempre uma afinidade muito grande de pensamento, de carinho, de afeto. Foi mãe, foi amiga, foi mestre, e é responsável por quase tudo o que sou hoje. Sem ela, estaria amputado da minha melhor parte (para usar uma expressão do próprio Jurandir). Tenho muitas lembranças boas da nossa convivência, apesar de todas acharem-na mal educada e grossa, o que ela nunca foi, mas não foi mesmo! Sempre acreditou em mim, sempre me impulsionou na minha vida acadêmica, sempre me tratou com muito carinho e respeito. Queria que eu assumisse a coordenação do grupo de estudos que ela formou na UFPB quando se aposentasse, o que eu veementemente neguei, por não me achar apto para tanto. Sou eternamente grato a ela por tudo o que fez por mim. Nos encontramos anos depois, antes de vir para o Rio, em um evento do Circulo Psicanalítico de Pernambuco. E quando voltei lá, e nos encontramos, ela disse: "Você não volta mais, não é?". 

Toda alegre, me dando esse sorriso lindo que me deu, como na foto  acima, um dia ela e o meu supervisor clínico Luis Martinho Maia, levaram as lágrimas um auditório com mais de 400 pessoas, no dia em que eles fizeram a aula da saudade, momento este em que ela e o Luis Maia se aposentavam. Ninguém naquele dia segurou o choro, da mesa ao auditório em peso, todos nós chorávamos de emoção ao ouvi-lo e ao ouvi-la ministrar sua última aula na UFPB.


Há algum tempo, eu sabia que Teresa vinha desenvolvendo um trabalho junto a professores que lidavam com sujeitos surdos, no Centro SUVAG de Pernambuco. Houve algumas publicações nesse sentido, uma das quais ela mesmo me presenteou. Descobri uma linda homenagem de um dos alunos do SUVAG, o qual trato de repostar aqui, no link:https://www.youtube.com/watch?v=L4rX4u0m_zY . Não por acaso, o meu próximo trabalho acadêmico, vai ser sobre psicanálise e surdez. Será um trabalho para os próximos quatro anos em que dedicarei à memória dela, e tentarei aproveitar tudo o que ela construiu em termos de trabalho nos seus últimos anos de vida.

Teresa, não tenho palavras para expressar o quanto você foi importante para mim e para a grande maioria dos seus alunos, de todos os que passaram por você, profissionais que hoje estão sentindo a sua falta. A você, meu carinhoso abraço saudoso, esteja você onde estiver. Vou sentir muito a sua falta. Estava falando em você essa semana, para lhe enviar minha tese de doutorado e te escrever: "Olha, eu consegui!". Acho que você ia ter orgulho de mim, como acho que deve estar tendo em algum lugar ai no céu! Só posso dizer que o mundo acadêmico ficou um pouco mais pobre e triste hoje, mas que o céu, este sim, deve ter motivos para fomentar aqueles diálogos que só você sabia e sabe fazer. Um beijo carinhoso com muita saudade do discípulo que vai tentar fazer o mesmo que você fez por mim um dia aos meus alunos. Aqui fica o meu adeus! Um dia a gente volta a debater daquele jeito que só o nosso grupo e nós mesmos sabíamos fazer.

Aqui um singela homenagem, mais do que merecida: 





Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A REDENÇÃO PELO AMOR




Vamos à história, contada de trás para frente, e não como acompanhamos durante todos esses meses em que a novela “Amor à vida” foi exibida.

Dois irmãos são criados juntos em uma família de classe alta de São Paulo. O pai tem preferência por um deles, ainda bebê, que morre em um infeliz acidente. O outro é descartado pelo pai, que o culpa pela morte do irmão. Por conta disso, não chega a desenvolver afeto por esse filho, que cresce sem ter o amor e a atenção tão necessários desse pai.


Este, por sua vez, médico bem sucedido, constrói e preside um hospital, além de adquirir bens ao longo da vida, fruto do seu trabalho, para si e para sua família. Mas uma vez mergulhado no mundo dominado explicitamente por homens e subsumido ao machismo do qual faz parte, acha natural que um homem traia a mulher com quem se casou. Em uma de suas aventuras, engravida a amante e “sequestra” a filha dela, levando-a para casa, dizendo para a esposa que resolveu adotar uma criança.



Ora, logo cedo sua mulher, Pilar, descobre a verdade: a menina não é adotada, e sim, filha da amante de seu marido. Rancorosa, quer se vingar. A vingança é bem sucedida, mas infelizmente o acidente de carro que armou mata a irmã da amante do seu marido, que deixa uma filha pequena crescer sob os auspícios da vingança, do rancor e da mágoa, achando que o amante de sua tia é responsável pela morte de sua mãe.



Então, aqui temos a cerne da história: uma criança que nasce sem o amor, afeto e carinho do pai que tanto ama e quer chamar a atenção, e outra que cresce ouvindo falar mal desse mesmo homem que tirou a vida da sua mãe. A segunda criança, Aline, traça com sua tia um plano de vingança quando se torna adulta: tirar todo o dinheiro que este homem conquistou ao longo de sua vida, e de fato, a única coisa que ele mais ama na vida, sem poupar esforços para isso. Aline cresce sob a sombra da vingança e do ódio, desabando em uma psicopatia, provavelmente por falta do mesmo acolhimento, afeto e amor que foi roubado da outra criança, Felix.


Mas com ele, a vida fez diferente. Felix pertence ao mundo do comportamento antissocial. O comportamento antissocial é decorrente de uma falha do ambiente materno ou paterno durante a segunda etapa do desenvolvimento humano. Na primeira, a criança experimenta o que chamamos de provisão ambiental materna que não se sustenta na fase seguinte, no qual se torna menos dependente da mãe. Nesta etapa, o ambiente materno e paterno não acolheram devidamente as necessidades físicas ou emocionais da criança depois do primeiro ano de vida. O comportamento antissocial, se instala quando chega na adolescência, e pouco pode se fazer. Na verdade, o comportamento antissocial nada mais é do que um sinal de esperança. Esperança de que o amor e o afeto que lhe foram tirados, um dia lhe sejam devolvidos.

Tudo o que o Felix fez ao longo de sua história, como um vilão que se tornou, foi para chamar a atenção do pai. Vejam bem, do pai, e não da mãe, Pilar, que sempre acolheu devidamente o comportamento do filho e nada fez para dar-lhe um "não" quando merecia. Para Felix, era o amor do pai o que mais lhe importava. Queria que Cesar tivesse orgulho dele, que o chamasse de “meu filho”, que honrasse o nome da família pelos seus brios, custe o que custar.

Bem sabemos que sem amor, estamos amputados da nossa melhor parte. Felix cresce sem esse amor do pai, que lhe foi negado a vida toda. Sem amor da imago paterna, não havia como se identificar com esse pai, ou então, a identificação se constituiu às avessas: o mau caráter do pai constitui o mau "caratismo" do filho que por sua vez se espelhou no comportamento do próprio pai. Um engendrando o outro. Assim vemos Felix buscando formas de tomar de volta aquilo que lhe foi tirado e que lhe fez mais falta: amor e afeto paternos.

Sem amor e sem afeto, não há como estabelecer uma relação com outro que o acolha, seja ele homem ou mulher. E talvez por isso, a homossexualidade de Félix possa se constituir exatamente a partir desse prisma: o afeto só seria possível com outro sujeito do seu mesmo sexo, para substituir o afeto paterno que nunca lhe foi dado. Era uma busca incessante. Não encontrou esse afeto no casamento arranjado pelo próprio pai, sem saber mesmo depois de ter um filho com essa mulher. Não se afirmava como homossexual que era, pois era mais importante dar ao pai, a imagem de homem que ele queria manter. Felix recalcava o seu desejo para a família, mas não se furtava de ter encontros escusos com outros homens. Odiava a irmã pela atenção, pelo carinho e pelo o amor que o pai lhe dava gratuitamente, ou talvez, por ser filha da mulher que mais amou.

Mas todo aquele que tem um comportamento antissocial, deixa pistas. E Felix deixou várias ao longo do seu percurso, talvez e justamente para ser pego, para ser visto, para ser reconhecido e naturalmente ser espelhado por um outro. 

Desmascarado, não houve escapatória: apresentou todo o seu ódio, toda a sua mágoa, todo o seu desafeto pela meia irmã, afirmando e confirmando tudo o que fizera contra ela. Afirmou que tudo o que fez foi para atrair a atenção do pai que nunca fez um pequeno gesto para demonstrar afeto por ele. Começa então uma via sacra para se redimir dos seus pecados. Quem lhe oferece colo não é a mãe real, que dessa vez não o acolhe, mas sua mãe substitua, ou seja, a mesma babá que ao lhe socorrer quando criança, não pode salvar seu irmão morto, vítima de um afogamento. É Marcia, como essa mãe substituta e suficientemente boa quem vai ensinar a Felix como é ser um sujeito humano, resgatando das profundezas o seu caráter um dia perdido.

Ao mesmo tempo, em sua trajetória, Felix encontra-se com Niko, o sujeito bom com quem tem a chance de viver, de fato, um relacionamento baseado no amor. Em todas as investidas de Niko, Felix se acovarda, teme ir de encontro ao seu desejo e viver esse amor que lhe falta na sua trajetória de vida. Porque é assim que as coisas são: entramos no mundo pela via do amor e do afeto, e não do ódio. O ódio é um sentimento muito especializado e sofisticado em nosso percurso, no qual aprendemos a desenvolver. Nós não nascemos odiando o mundo que nos cerca, mas temos bons motivos para acreditar que o amor é a matriz da qual nos constituímos como seres humanos. O amor é quase físico, e é esse amor que falta na vida do Félix . Ele vai buscá-lo na Márcia, como uma mãe boa que o acolhe, e em Niko, aquele que lhe oferece uma vida mais digna.

Quando Felix vai de encontro a essa dupla matriz, a do afeto e a do amor na relação com outro sujeito humano, ele pode se redimir de tudo o que fez no passado e ter esperanças de que a vida vale a pena ser vivida.

Aí o famoso “beijo gay” é consequência, não é fim na história do casal, apesar de todo o alarde necessário que foi feito nas mídias sociais para o reconhecimento de uma minoria identitária em uma emissora de televisão aberta e em um programa que faz parte da subjetividade de milhões de brasileiros, as telenovelas. Os homossexuais, queriam se ver representados nesse veículo de comunicação que espelha a subjetividade brasileira e em uma novela do horário nobre. Ora, será possível que tentar assassinar o amante com facadas (Aline e Nino), ver os arroubos de beijos e sexo de um outro casal (Michel e Patrícia), ou ainda discutir a virgindade de uma mulher acima do peso é mais importante do que demonstrar afeto sob forma de beijo entre casais do mesmo sexo?

Beijar outro ser humano, é uma forma comum e banal de demonstrar amor um pelo outro, apesar de também representar visivelmente a escolha sexual dos amantes, mas não se trata de uma explícita relação sexual, apesar de muitas relações sexuais começarem com um beijo.

Nós nunca tivemos na história da televisão brasileira, um personagem homossexual como o personagem principal de uma novela. Nunca na história da televisão brasileira, a população se rendeu ao carisma de um personagem que trouxe as idiossincrasias de ser ao mesmo tempo um sujeito mau caráter, que comete erros, mas também acertos e tem suas qualidades. Nunca na história da televisão brasileira, pudemos ver um casal do mesmo sexo se tornar os protagonistas de uma história, desbancando os "personagens principais" ao mesmo tempo que acompanhamos a expectativa de um grupo que jamais havia se visto representado em uma história adulta, por meio do seu afeto, do seu sofrimento e de todas as dificuldades de se constituir como uma família, como é o caso de qualquer ser humano. Uma vez constituído o novo casal principal da novela "Amor à vida", como os personagens de Mateus Solano e Thiago Fragoso (Felix e Niko), pudemos ver a naturalidade das relações amorosas entre duas pessoas do mesmo sexo em pleno horário nobre.

E foi assim que Felix demonstra o seu afeto por Niko ao final da novela: “Você mudou a minha vida”. Ao que ele responde: “E eu não vivo sem você”. Um encontro entre dois seres humanos, demasiadamente humanos.

Restituído o amor em sua vida, agora Felix pode cuidar do pai doente, numa cadeira de rodas, paralisado por um acidente vascular cerebral e praticamente cego. Malgrado tenha sofrido a vida toda por tudo o que o pai deixou de fazer por ele, e malgrado todo o seu esforço para conquistar o amor do seu pai, Felix empreende o lugar de “cuidador” do que sobrou do seu pai para amar. Agora, com o amor fazendo parte do seu mundo interno, ele também pode perdoar o pai por todo o seu desafeto e finalmente demonstrar seus sentimentos por César: “Sabe pai, eu te amo.” Notem que para Niko, Felix afirma que ele mudou sua vida e que a partir de então, não pode viver mais sem ele. Ao pai, ele simplesmente diz que o ama. Resta a César, a redenção pelo amor: amor do seu filho por ele e amor dele pelo seu filho. Juntos, eles podem apreciar um por do sol em pleno silêncio, desfrutando um a presença do outro. Nada mais justo para uma novela que teve como título a celebração do “Amor à vida”.



Doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestrado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

domingo, 4 de novembro de 2012

Uma análise feita por amor







Poetisa norte-americana, também conhecida como H.D., Hilda conviveu desde cedo com um grupo de escritores, artistas e intelectuais ricos da burguesia do início do século. Foi analisada por Freud entre o período compreendido de 1933 a 1934, registrando um período de intensa convivência com o criador do método psicanalítico, trocando inclusive uma série de correspondências durante e posteriormente à sua análise.


Dois foram os registros dessa análise por Hilda. Um deles, Escrito na Parede, é a memória desse tratamento, e Advento, uma compilação dos diários mantidos pela autora durante o período da sua análise.

O texto não é o relato mais completo de uma análise com Freud. Outros autores já haviam se aventurado nesta empreitada, conforme afirma a prefaciadora do livro, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco: a primeira, Minha Análise com Freud: Reminiscências, escrita por Abram Kardiner, e publicada em Inglês, em 1977 e a outra, Fragmentos de uma Análise com Freud, publicada em 1954 por Joseph Wortis.

O importante não é a fidedignidade dos textos escritos pelos analisandos de Freud, mas a oportunidade de que estes textos apresentem o criador da psicanálise, expondo-se, se apresentando como ele nunca ousou fazer, visto que o próprio Freud disse que iria dar trabalho aos seus biógrafos após a sua morte.

Muitos dos textos já conhecidos de Freud caíram em domínio público, mas há uma série de cartas, artigos inéditos depositados na Biblioteca do Congresso Nacional norte-americano, que só virão à publico após 1938, ou seja, 100 anos após a morte de Freud.

Quanto à Hilda, nascida em 10 de setembro de 1886 em Bethlehem, Pensilvânia, era advinda de uma família recomposta, com um pai professor universitário de física e astronomia, já casado uma vez antes de desposar Helen Wolle, mãe de Hilda.

Ela teve uma aproximação muito forte com a poesia anglo-americana, e da sua adolescência à vida adulta, fez um verdadeiro passeio por vários movimentos literários da poesia ao redor do mundo, mas eminentemente influenciada pela poesia europeia.

Casada e descasada algumas vezes, foi na homossexualidade que descobriu verdadeiramente o amor, vindo a conhecer, em 1918, Annie Winifred Ellerman, nascida em 1894 e aquela que se tornaria sua companheira de sua vida. Annie era cinéfila, romancista e curiosa da arquitetura, engajada na política e assumiu o pseudônimo de Bryher, referência a uma das ilhas Scilly, onde gostava de frequentar. Dizia-se que pertencia ao sexo intermediário, desejando os homens como um homem para melhor amar as mulheres ao mesmo tempo como mulher e como homem. Herdeira rica, amiga de Joyce e Hemingway, melancólica, fundou a livraria Shakespeare ¨Co., que logo logo se tornou um dos lugares mais frequentados da vida literária parisiense.

Foi Bryher quem se interessou primeiro pela psicanálise, antes mesmo de H.D. a descobrir. Munida de uma carta de recomendação de Havelock Ellis (que para quem não conhece, era um dos defensores dos direitos dos homossexuais na transição do século XIX para o século XX), Bruher encontrou-se com Freud em Viena e ficou deslumbrada com sua inteligência e seu modo de vida pouco avesso às normas burguesia. Ele a aconselhou a fazer análise em Berlim com Hanns Sachs, seu discípulo austríaco, que havia fundado junto com Otto Rank (aquele psicanalista contemporâneo de Freud que escreveu sobre o Trauma do Nascimento) a revista Imago. Sachs era amante da arte, literatura e cinema, e havia participado do roteiro de um filme chamado Os mistérios de uma alma (obra prima do cinema expressionista, segundo Roudinesco).

Sachs também estava adaptado ao Berliner Psychoanalustisches Institut, fundado por Max Eitington, outro discípulo de Freud, e presente nas suas reuniões das quartas-feiras, e estava mais aberto a questão da homossexualidade e quase não respeitava as regras que havia fundado e fixado para a formação dos psicanalistas. Além disso, segundo Roudinesco, era epicurista, gastrônomo, sedutor de mulheres e solteiro, capaz de todos os tipos de transgressões: saia de férias com seus analisandos em formação, e estes, com seus pacientes.

Entre 1828 e 1932, Bryher circulou por Londres, Berlim e Villa Kenwin para ser analisada por Sachs, logo cedo participando de encontros de psicanálise promovidos pela  IPA. Era crítica da orientação anglo-americana ortodoxos, sobretudo no que se referia às teorias em torno da homossexualidade masculina e feminina.

Hilda iniciou seu primeiro tratamento psicanalítico em Londres, em 1931, com Mary Chadwick, discípula de ninguém menos que Melanie Klein, que defendia a análise de crianças, quando Freud afirmava a que uma análise não deveria começar antes dos quatro anos de idade. Como sabemos, Klein defendia o acesso ao inconsciente de crianças através de dispositivos específicos – jogos, massa de modelar, cubos, bolas, brinquedos diversos, que permitia que a criança se expressasse. A sua perspectiva era analisar as relações arcaicas com a mãe, primeiro objeto de toda afeição posterior, ao passo que Freud defendia a prevalência do pai separador na dinâmica inconsciente, ou seja, a tese do monismo sexual e de essência masculina na libido humana, e que veio a ser explicitada em muitos dos seus textos, mas principalmente nos seus famosos Três Ensaios, no caso Hans, dentre outros.

Esta tese (sustentada pela escola vienense por psicanalista como Marie Bonaparte – amiga pessoal de Freud e Helene Deutsch) gerava problemas, não só dentro da própria metapsicologia como também na formação de psicanalistas, pois Freud não conseguia dar conta da diversidade das práticas homossexuais e bissexuais, já naquela época, arriscando-se a ser desmentido pela evolução dos costumes e pela transformação radical da visão da feminilidade, não somente pelas mulheres em busca de liberdade, independência e igualdade, mas também pelos homossexuais masculinos e femininos, que não podia de forma alguma aderir a uma tese tão pouco conforme à gênese de sua identidade.  Os analistas da escola inglesa, sobretudo aqueles que orientação kleiniana, defendia a cura da homossexualidade.

Diante de todo esse cenário, Mary Chadwick aplicou sua doutrina à cura de H.D., orientando a análise às profundezas da ligação com a mãe e uma preocupação normativa exagerada e foi um verdadeiro desastre, sugerindo a analisanda que fosse tentar a sorte em Viena, junto ao mestre Freud, e foi assim que 1 de março de 1933, um mês após a ascensão de Hitler à Chancelaria do Reich, ela se encontrou com Freud pela primeira vez, logo estabelecendo com ele uma relação transferencial positiva, colocando-o no lugar da sua mãe, o que Freud revidou com veemência: “Não gosto de ser a mãe numa transferência, isso me surpreende e me choca sempre um pouco. Sinto-me totalmente masculino”, acrescentando que isso as vezes acontecia com frequência com seus pacientes. Mal sabia ele que alguns anos mais tarde, um de seus herdeiros, Donald W. Winnicott iria defender justamente o lugar de mãe na análise para o bom andamento do tratamento, princípio básico da transferência, da confiança e do acolhimento ao sofrimento do analisando, trazendo bons resultados numa análise, sobretudo de paciente regredidos ou de personalidades narcísicas (borderline ou casos limites).
Diferente de sua discípula, Freud não tentou curar a homossexualidade de H.D., não a encerrando nos limites da sua teoria. Pelo contrário: ele contribuiu para deskleinizá-la, ou seja, ao invés de culpabilizá-la denunciando sua pouca aptidão por uma “sexualidade normal”, ele não cessou de valorizar sua atividade criadora, ocupando junto a H.D. um lugar ocupado por um antigo amor que valorizava seus escritos, mesmo quando estava convencido de ser suporte de uma transferência maternal.

De acordo com Roudinesco, mesmo que o texto de H.D. não se refira à homossexualidade, ainda assim, é disso que Freud vai cuidar ao longo do tempo da sua análise com H.D. Freud era tolerante à homossexualidade, compreendendo a sexualidade humana como eminentemente bissexual, recusando a maior parte das teses sexológicas da época, considerando a homossexualidade nem inata nem natural, mas o resultado de uma escolha psíquica inconsciente, recusando toda a forma de descriminalização contra os homossexuai. Não os achava nem invertidos, nem degenerados, nem anormais, nem estigmatizáveis em termos de raça, sustentando que era inútil tentar transformar um homossexual em heterossexual, ou vice-versa.

Freud também tinha suas razões para mudar de opinião e não tentar estigmatizar a homossexualidade não só dentro da sua teoria como dentro da própria vida social que pertencia.  Um dos motivos estava centrado na sua própria filha e fiel escudeira, Anna Freud, por quem nutria um amor paterno chegando a defendê-la de todos os homens que se aproximassem dela, inclusive Ernest Jones, seu biógrafo oficial e amigo pessoal. Anna Freud era considerada sua Antígona, referência à filha de Édipo Rei. Preocupado em vê-la solteira por causa das suas proibições, ela acaba resistindo às investidas dos homens que a cortejavam, daí decidindo-se por analisa-la n período entre 1918 e 1920 e entre 1922 e 1924, tendo por principal testemunha outra discípula sua, Lou Andreas-Salomé.

Foi a ela quem Anna confessou sua atração por mulheres no momento em que preparava sua primeira apresentação em um congresso de psicanálise. Mas foi resultante da sua análise com seu pai que Anna Freud se constituiu hostil à homossexualidade, considerando-a como doença curável pela análise, até conhecer Dorothy Tiffany Burlingham, por quem tomará por companheira pelo resta da sua vida. Nascida em Nova Iorque e neta do fundador das lojas Tiffany & Co., Dorothy se separou de um marido violento, deixando os Estados Unidos com seus quatro filhos para se submeter a uma análise com Theodor Reik, outro amigo de Freud e participante dos encontros das quartas-feiras,. Foi através dele que Dorothy veio a conhecer, em 1925, Anna Freud, que não hesitando ao finalizar o tratamento com seu pai, tornou-se preceptora e depois analista dos filhos de Dorothy e passando a manter uma relação de amizade a amor que as deixavam mais próximas.

De acordo com Roudinesco, sessenta anos antes da palavra “homoparentalidade”, Anna tornou-se co-mãe dos filhos de Dorothy, e juntas decidiram alugar um apartamento no número 19 da Bergasse, ou seja, mesmo prédio da família e do consultório dos Freud.

Quanto a Freud, para manter a filha perto dele, não hesitou em ser o patriarca de uma nova família, somando à sua, a família de Dorothy, descrevendo numa carta a Ludwig Binswanger que os laços simbióticos com uma família americana (sem marido) se tornavam cada vez mais sólidos, de modo a partilharem de viagens de férias durante o verão.

Assim compreendemos melhor a tolerância de Freud em relação às relações de Hild Doolittle com seus amigos e sua amante e que fez com que o criador da psicanálise empreendesse uma análise mais humanamente útil aquela que trazia-lhe seus sofrimentos resultantes ou não das suas escolhas afetivas, não cessando de incentivar sua criação artística nem se furtar de manter uma correspondência com H.D. durante o período de sua análise até bem pouco antes de sua morte, já refugiado na Inglaterra, por conta da sua fuga contra o nazismo.

Os analistas de hoje ficariam espantados de saber o quanto Freud estava à frente da ciência que inventara. E uma boa forma de conhecer a sua genialidade, está no excelente texto que nos chega em português,  Por amor a Freud – memórias de minha análise com Sigmund Freud, escrito pela sua analisanda Hilda Doolittle, ou simplesmente, a poetisa H. D.





Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. 

sábado, 18 de agosto de 2012

UMA POLÍTICA DE VIDA E MORTE EM GIORGIO AGAMBEN




“Não há maior solidão do que aquela nos olhos de um homem morto;
e não há maior desafio do que aquele que aparece no frio semblante de um falecido”.

Rosenzweig

Ninguém pensa na morte. Mas ela faz parte do nosso dia a dia. A cada milésimo de segundo, milhões de células do nosso corpo morrem, e outros milhões nascem. A cada minuto, no mundo, alguém tem que decidir entre a vida e a morte de uma pessoa sob condições irreversíveis de doenças. Milhões são gastos dia a dia para manter viva uma pessoa sob condição vegetativa, entubadas ou dependentes de aparelhos para sobreviver, sem que, no entanto, exista legislação suficiente para dar conta dessa realidade no mundo.
Será que realmente precisamos de uma política de vida e uma política de morte, uma “biopolítica e uma tanatopolítica”?
Gostaria de discutir o assunto a partir das considerações do filósofo italiano Giogio Agamben e suas concepções acerca de vida e morte.
Agamben parte das referências gregas para situar o campo da vida. Para ele, os gregos tinham duas formas de definir vida: zoé,  que dizia respeito a vida comum de todos os seres vivos (animais, homens ou deuses), ao próprio fato de estar vivo; e biós, que seria a forma de viver a própria vida organizada em torno de um grupo ou comunidade, com estatuto político e possibilidade de potencialidade. Para ele, a zoé grega nada mais seria do que viver livremente, fora das grades da política, da lei e dos cálculos do poder. A isso ele se referiu como sendo “vida nua”. “Vida nua” refere-se, então, a uma forma de vida na qual não se pode incidir nenhuma forma de controle, nenhum poder, nenhum direito, mas também nenhum dever. Exemplos de “vida nua” podem ser encontrados em pessoas refugiadas, nos campos de concentração, em cobaias humanas, em prisioneiros políticos, ou ainda em pessoas cuja autonomia sobre a própria vida não é mais possível (pessoas em coma, em morte-cerebral, e grosso modo, condenados à morte, estariam aqui incluídos).
Até então, a organização da vida dos seres humanos girava em torno dessa premissa, como um “animal vivente capaz de existência política”. Mas durante a história da modernidade, houve um tempo em que a vida natural começou a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal e a política passou a se transformar naquilo que Foucault denominou de biopolítica, a qual, a vida biológica passou a ocupar, passo a passo, o centro da cena política moderna.
O que Foucault chamou de biopolítica, foi a implicação da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do biopoder de modo a controlá-la. Primeiramente, quem passou a ter poder sobre a vida humana foi a medicina, com a preocupação de regras gerais de controle da natalidade, de contenção de doenças e endemias, com a construção de hospitais e alocação dos “doentes mentais” em “asilos para loucos” e, como não poderia deixar de ser, com a sexualidade de um modo geral. A biopolítica se dava, principalmente, sobre um disciplinamento do corpo da população através de uma medicalização e normalização dos códigos que a regiam. Posteriormente, a biopoder vai dar conta de outros setores da população, ele vai incidir mais ainda no controle dos corpos dos indivíduos, prolongando seus tentáculos nas escolas, nas fábricas e nas prisões. Em sua análise, vemos como o poder passou a penetrar no próprio corpo dos sujeitos e nas suas diversas formas de vida.
O corpo, para Foucault, era um corpo controlável, dócil, sujeito aos ditames do biopoder e da biopolítica. A ideia de vida, para ele, só poderia ser pensada a partir da ideia de morte. A morte seria um momento de desalienação total, no qual nos tornamos singular.
Mas nem sempre a morte foi pensada desse modo. Morrer ou matar era uma dádiva do rei ou do soberano, que detinha o poder de vida e de morte da população. A mudança da noção de morte no ocidente, segundo Foucault, operou de modo a estabelecer um poder de morte sobre a vida, e essa fase de transição fez com que fosse inscrita nos mecanismos do biopoder. Antes, o poder soberano se definia através do pensamento “fazer morrer e deixar morrer”, agora, o Estado considerava “fazer viver e deixar morrer”. Esse poder sobre a vida e a morte, foi condicionado, em um primeiro momento, ao soberano, e muito posteriormente ao Estado através da medicina no campo da biopolítica.
O soberano era aquele que podia decidir sobre a vida do povo sem que fosse submetido a qualquer sanção, sem que fosse punido pela sua decisão. É essa ideia de soberania e sacralidade da vida que Agamben vai reter para começar a pensar o conceito de “vida” tal como “vida nua”, ao pensar o fenômeno do Holocausto como o último exemplo onde o biopoder se manifestou vividamente.
Para ele, “homo sacer” era aquele cuja vida podia ser matável sem que estivesse na esfera do sacrifício e sem que alguém fosse punido pela sua morte. Sua vida era despida de qualquer valor. Em suas palavras, “a especificidade do homo sacer é a impunidade da sua morte e o veto de sacrifício”. O “homo sacer” é excluído da comunidade na forma daquela pessoa que poder ser sacrificada – o melhor exemplo disso foi encontrado nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial através do nazismo. Toda vida insacrificável e, todavia, matável, descreve Agamben, é vida sacra.
Para Agamben, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera. (...) Sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono”.
É preciso que se retenha isso em mente, para que possamos compreender como Agamben vai compreender a “politização da vida” e, sobretudo a “politização da morte”, de modo a buscar formas de se tentar sair dessa armadilha e como isso se coaduna com o tema proposto. Caminhemos um pouco mais.
Nem sempre o “direito à vida” foi um direito inerente a todos os cidadãos.
De acordo com Hannah Arendt “somente quando a imortalidade da vida individual passou a ser o credo básico da humanidade ocidental, isto é, somente com o surgimento do cristianismo, a vida na Terra passou também a ser o bem supremo do homem”. O cristianismo foi o responsável pela ideia de inviolabilidade da vida, cuja era moderna passou a operar sob a premissa de que a vida seria um bem supremo, passando a valorizá-la e a conceder-lhe um valor tal qual um bem supremo.
O processo de politização da vida se deu quando passamos a compreender a vida biológica do ser vivente e suas necessidades, como parte integrante da política, sendo o corpo o novo sujeito da política reivindicado pela democracia moderna. De acordo com Agamben, “se é verdade que a lei necessita, para a sua vigência, de um corpo, se é possível falar, neste sentido, do ‘desejo da lei de ter um corpo’, a democracia respondeu ao seu desejo obrigando a lei a tomar sob seus cuidados este corpo”.
Dito de outro modo, o processo de politização da vida se deu, quando passamos a valorar a vida como um bem supremo e inviolável, quando passamos a acreditar que seria necessário defendê-la a qualquer custo garantindo a autonomia de cada um, elegendo a materialidade do corpo como ferramenta a ser valorizada.
Para Hannah Arendt, “foi precisamente a vida individual que passou então a ocupar a posição antes ocupada pela ‘vida’ do corpo político; e as palavras de Paulo – de que ‘a morte é o prêmio do pecado’, uma vez que a vida se deveria durar para sempre – repete a afirmação de Cícero, de que a morte é a recompensa dos pecados cometidos por comunidades políticas que haviam sido construídas para durar por toda a eternidade”.
Pois bem, segundo o filósofo Joseph Raz, o valor da vida de uma pessoa só é determinado pelo valor que concedemos às suas ocupações, dos seus relacionamentos e de suas experiências, ou seja, pelo seu próprio conteúdo. Nesse caso, continuar vivo, diz o autor, depende muito mais do valor do conteúdo da vida de cada um de nós para que passemos a acreditar que vale a pena permanecer vivo por mais tempo.
Joseph Raz faz algumas distinções entre valorar ou não a vida. Para ele, há duas possibilidades, entre tantas. O “valor da vida passada”, na qual  podemos dizer se tivemos uma vida boa ou má, e o “valor de sobrevivência”, na qual podemos não valorar de modo algum a vida que tivemos. É importante observar que, apesar de não dialogar diretamente com Agamben, Joseph Raz se coloca diante do valor que atribuímos à vida e à morte de modo crítico. Diz que assim como valoramos a vida, também valoramos a morte. De fato, é impossível ter a experiência de morte para dizer se esta foi uma morte boa ou má, mas a mortalidade, diz ele, é vital para a nossa existência. Sem ela, não teríamos como dizer se a vida que tivemos foi boa ou má. Termos como boa ou má vida, juvelinidade, longevidade, entre outros seriam impensáveis sem a experiência da morte. Mas não seria esta, justamente a assimetria da vida e da morte a qual nos reportamos anteriormente? Como ter uma experiência de existir sem passar pelo nascimento? Só conseguimos ter o sentimento dessa materialidade corpórea, porque já passamos pela experiência de existir. Ora, mas antes de nascermos, também não existíamos, então, por que não conseguimos pensar na vida como “não existindo” antes do nosso nascimento? Resposta simples: impossível! Este seria o “ponto de vista de lugar nenhum” referido por Thomas Nagel e retomado por Joseph Raz para suas análises sobre o “valor da vida” e sobre o fenômeno da morte tais como na eutanásia, nas experiências de “vida vegetativa” e “morte-cerebral”.
Compreendemos, portanto, que esse é o mote pensado por Agamben para discutir as questões ligadas à “vida que não merece ser vivida”, no tocante às cobaias humanas, à eutanásia e à morte-cerebral.
De acordo com Agamben, o conceito de “vida sem valor” ou “indigna de ser vivida” aplica-se, substancialmente a todos os indivíduos que devem ser considerados “incuravelmente perdidos” em decorrência de uma doença ou ferimento grave e que tenham consciência de sua condição.
Sem querer tomar nenhum posicionamento ético diante da questão, Agamben vai questionar sobre o direito de termos autonomia diante de nossa própria vida, ou porque não dizer, sobre nossa própria morte. Se foi necessário que toda uma conjuntura política requerida pela sociedade em estabelecer leis em prol do valor da vida, como devemos proceder em situações onde a decisão de continuar ou não vivendo deve ser posicionamento legal? A quem devemos conceder o direito de estabelecer em que momento termina a vida e em que momento “começa” a morte? E nos casos em que o sujeito pode decidir sobre sua própria vida?
O que Agamben chama de “politização da morte” foram todos os dispositivos que fizeram com que a medicina e o direito passassem a se interpenetrar de modo a fazer com que a vida nua habitasse de modo definitivo o espaço de exceção da qual fazia parte através do advento das novas tecnologias de prolongamento da vida, cuja morte se transformava, pouco a pouco, em um “epifenômeno da tecnologia do transplante”.
Como consequência, o biopoder passou das mãos do soberano, para as mãos do médico-cientista, e destes, para as mãos do Estado, que converteu a biopolítica em biopoder, e logo em seguida, em tanatopolítica, decidindo quem “pode viver” e quem “deve morrer”.
Agora, é o Estado quem deve decidir sobre o “falso-vivo”, o “comatoso”, o “corpo cadáver” ou o “cadáver vivo”, e assim, fazendo crer que organismos vivos, de fato, pertencem ao poder público. Claro, não somos hipócritas em pensar que nas salas de mantimento da vida, médicos e enfermeiros decidem muito antes e nas surdinas quem deve e quem não deve viver. Uma prática corrente, que vez ou outra, chega até nós através da mídia. Mas é preciso compreender que o advento das novas tecnologias, nos colocaram dilemas éticos cada vez mais impensáveis há poucas décadas, e que sem essa discussão sobre o que é e o que não é vida e morte, não podemos nos posicionar sobre a continuidade ou não de nossa existência.
Vida nua sim, mas, sob quais condições? Se nos fosse perguntado e se nos fosse dado o ônus de escolher a forma em que gostaríamos de permanecer vivo, qual forma escolheríamos? A vida imputada pelo cristianismo, pautada no sofrimento, na dor e na submissão de viver encerrado em um corpo que não mais responde às nossas expectativas de vida, ou nas condições que nos faz ser um cérebro, descarnado e despersonificado? Será que mesmo assim, ainda teríamos condições de decidir pela vida? Por outro lado, que garantia teríamos de que a morte, nessas condições, seria a melhor resposta às nossas inquietações diante da nossa incondicional onipotência narcísica diante do que já fomos ou gostaríamos de ser?
Nas culturas asiáticas, a morte, há muito deixou de ser pensada como um fim nela mesma, propondo uma nova concepção de vida mesmo depois de nossa existência terrena.
A vida é, em síntese, potencialidade, ou seja, todas as formas que o sujeito humano consciente pode criar para dirigir sua pulsão de vida contra a pulsão de morte. A potência de vida só se coaduna em ato, como modo de nossa própria existência.
Mas é preciso estar sempre alerta, como nos tenta avisar Paul Rabinow, de como essa biopolítica, na contemporaneidade, tem se convertido naquilo que ele chama de biossociabilidade, ou seja, toda uma forma de vida baseada nas novas convenções tecnológicas de verdades.
O fato é que com os avanços tecnológicos da medicina, a biopolítica não teve outra saída a não ser converter-se, pouco a pouco, em tanatopolítica, trazendo como consequência a necessidade de se legislar sobre uma nova realidade que antes não teríamos como dar conta: o momento em que podemos decidir sobre a nossa vida, livrando-nos das prisões impostas pela medicina, pela tecnologia, pela ciência, e pela “sacrossantidade da vida”. 



Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .

sábado, 2 de junho de 2012

Para os que partem e para os que ficam (*)






Sejam bem vindos ao primeiro ano do resto de suas vidas!!!
Eu gostaria de dividir com vocês o que eu penso ser um momento de graça e alegria para muitos de que estão partindo e para muitos dos que estão chegando.
Eu gostaria também de dizer a vocês da minha imensa satisfação em ter trabalhado com vocês durante os meses em que se seguiram e aproveitar a oportunidade de dizer o que penso e como me sinto nesse momento de confraternização.
Um dia, um jovem analista se propôs a oferecer estágio em psicologia clínica na abordagem psicanalítica, e passar seus conhecimentos para outros jovens que estava para começar uma jornada: a jornada da vida profissional ao final de um bom tempo de estudos, aulas, trabalhos em grupo, provas, fichamentos, monitorias, monografias, monotonias...
Eu fiz o convite e vocês aceitaram a empreitada em descobrir o que esse jovem analista tinha para lhes oferecer. Afinal, vocês nunca tinham ouvido falar a meu respeito, não sabiam quem eu era, minha trajetória acadêmica ou profissional, no máximo, tinham à disposição a ferramenta da internet e um documento lá... bem lá-ttes para saber se iriam ou não tomar a decisão certa em me escolher como aquele que proporia dividir com vocês o que aprendera em todos os anos de clínica.
Sabemos que não foi uma tarefa fácil. Mas vocês toparam o desafio. Eu topei o desafio, posto que se vocês não me conheciam, eu também não sabia quem vocês eram ou de onde vinha, o que estudaram, o que sabiam, quais os seus planos, quais suas fantasias, quais seus DESEJOS diante do meu convite.
Pois bem... duas turmas se constituíram: uma, decidiu saber mais sobre o meu objeto de investigação na prática clínica (o silêncio); a outra decidiu saber mais sobre um autor pouco conhecido na formação de todos vocês (Winnicott).
Juntos, pudemos descobrir na prática clínica, com seus pacientes, o que alguns velhos monstros sagrados tentaram nos ensinar. O Velho Criador (Freud), nos mostrou que o eu não é senhor nem dentro da sua própria casa – foi ele quem começou toda essa jornada. O Velho Rabugento (Lacan), nos mostrou que o ISSO é estruturado como uma LINGUAGEM, portanto, cuidado no que vocês andam falando por ai, pois tudo, tudo, tudo tem UM SIGNIFICADO, UM SIGNIFICANTE, UMA SIGNIFICAÇÃO. Por fim, a Velha Raposa (Winnicott) tentou nos ensinar como BRINCAR com crianças e com palavras, como a FANTASIA e a CRIATIVIDADE faz parte da SAÚDE de todos nós, e como podemos ser sujeitos bem melhores independente do rochedo da castração ou da viscosidade da libido.
Os inícios dessa jornada, como sabem, também foi pontuado por uma série de provoca-ações. Lembram? Deixem-me recorda-los um pouco, pois vamos terminar essa jornada como tudo começou.
Um dia lembrei-lhes que despertou na alma de um artista o desejo de esculpir uma estátua: a estátua do Prazer que dura um instante. Ele partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar com o bronze, mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e não se encontrava em nenhum outro lugar a não ser na estátua da Dor que é permanente. Fora o artista que com as próprias mãos que havia fundido essa estátua colocando-a no túmulo de alguém que amara muito na vida, como símbolo do amor masculino (que é imortal), e a dor humana (que dura a vida inteira). Então ele resolveu refazer tudo, retirou a estátua do túmulo da morta, pondo-a num grande forno, derretendo-a e com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.[1]
A dor que é permanente é a dor daquele que chega até vocês pedindo ajuda para uma pobre alma diante da hemorragia do seu sofrimento psíquico. O prazer que dura um instante, é a capacidade de constituirmos em nossos pacientes um momento de alivio para a sua dor, seja ela qual for. Afinal de contas, estamos muito mais “além do princípio do prazer”.
Mostrei-lhes também a história do poeta que vivia no campo, entre prados, rios, topos de colinas e alguns bosques contando para adultos e crianças, as maravilhas que havia visto durante sua jornada. Este poeta dizia que encontrava pequeninos faunos entre as folhas dos bosques; nereidas de cabelos esverdeados emergindo das águas cristalinas do lago, cantando ao som das harpas; um grande centauro no alto das colinas, galopando, sorrindo e envolto em nuvens de pó, até que um dia, voltando para a cidade, viu todas essas coisas maravilhosas que tanto relatara. Lá chegando, adultos e crianças se reuniram em torno dele para ouvir suas histórias, mas ele respondeu: “Hoje nada tenho para lhes contar, não vi coisa alguma”. Isto porque, conta-nos Oscar Wilde neste lindo conto, que naquele dia, todas as coisas maravilhosas foram vistas de fato pelo poeta, e para ele, a fantasia é de fato a realidade e a realidade nada significa[2].
Com isso, pude instigar a imaginação de vocês para o bom uso na clínica. Para um analista ou um psicólogo clínico, a fantasia e a imaginação são ferramentas de trabalho, e às vezes, a REALIDADE com a qual lidamos nada mais é do que a REALIDADE PSÍQUICA, e dito isto, pouco importa se é verdade ou fantasia o que nos contam.
Também tentei lhes ensinar que "Uma vez no divã, somos todos iguais diante da falta, do rochedo da castração, da inveja do pênis, da viscosidade da libido, do real, do gozo ou da insustentável divisão do não-ser. (...) E que aos tolos, resta a incansável busca do Santo Graal erótico; e a nós, a consciência trágica, contrita, heróica e dilacerada de que a ferida da existência não tem cura”[3]. Pode não ter cura, mas pode ter alivio diante dessa existência, pois conforme afirma Freud, todo ser humano anseia pelo retorno aos braços de Abraão.
Vocês mergulharam no universo psicanalítico diante de suas faltas, de seus desejos, de seus medos, de suas angústias, de sua insofismável condição de (quase) nada saber para uma pretensiosa condição de querer saber (ou SUPOSTO SABER, diria o velho rabugento).
O que tentei lhes ensinar, penso, não se ensina a ninguém – aprende-se com uma boa dose de intuição e disponibilidade para aprender a ouvir nossos pacientes. Para mim, essa tarefa é a mais inglória, mas vamos lá: tentei lhes ensinar a brincar com crianças (e trazer o lúdico e o afeto para a cena analítica – dá para fazer isso, minha gente!!!); tentei lhes ensinar a brincar com as palavras (freudiana, lacaniana [por que não/sim] e winnicottiana). Tentei lhes ensinar que nem só de Freud e Lacan vive o psicanalista, mas de todo o arcabouçou teórico que a psicanálise dispõe para lidar com o sofrimento psíquico dos nossos pacientes.
Tentei lhes passar a minha experiência através dos meus atos (alguns falhos - bem sabemos que foram muitos – pão de mel; sim querendo dizer não; Lacan querendo dizer Winnicott, pois o analista falha, e como dizia Winnicott, como toda mãe suficientemente boa, este deve falhar para o melhor proveito do seu paciente).
Tentei abrir suas mentes para um encontro de inconscientes – os seus e o dos seus pacientes; e acima de tudo, tentei lhes dizer o quão verdadeiro é o psicoterapeuta que segue a sua intuição. Lhes falei do inconsciente não-dizível – aquele que não é dado através da palavra, mas através de atos, gestos, olhares, tessituras. Demonstrei como nem sempre o uso do divã é necessário para uma análise. Muitas vezes, esta deve ser sustentada no e pelo olhar, e para uma alma em sofrimento, nada melhor do que espiar para dentro de uma janela refletida como modelo especular do OUTRO (outrão e outrinho). Mostrei como um simples gesto de positivação do ego trás recompensas que jamais esperamos, muito embora, essas recompensas venham em forma de um bombom de chocolate, ou um gesto de carinho de nossos pacientes, porque não? Mas nem sempre a tentativa de lhes ensinar o impossível foi uma via de mão única.
Vocês me ensinaram também. E vão deixar marcas. Como esquecer de pérolas do cotidiano que vocês tão bem souberam construir ao longo desses 17 meses que permanecemos juntos?
Veja bem Milton...  blá, blá, blá.. Um dia toda mãe vai dizer: trepem!!! Ou então dirá: Restrepem!!! Não foi assim com o caso da jovem homossexual? E o caso da jovem transexual? Ou ainda o caso da jovem heterossexual? Ou até mesmo o caso do jovem pervertido por pés? Ou a angústia daquela estagiária cujo paciente nunca vinha para a sessão, e quando vinha, chegava na hora de acabar? Tem ainda o jovem que assistia filmes do youtube de baile funk para se excitar nas noites insones. Da jovem que “mamava” na lata de leite condensado. Aquela paciente que na verdade, era uma menina triste em busca do seu referencial de alegria. Temos a jovem adolescente com um vazio interior muito profundo, mas que chegou a estourar balões com seu vazio! Me recordo ainda da comunicação silenciosa que se estabeleceu entre uma estagiária e seu paciente silencioso, da garota que chegou a se apaixonar por uma outra que nunca existiu, do menino cuidador de sua família e de sua mãe, e tantos outros que não daria aqui para incluir numa longa lista ao longo dos meses que permanecemos juntos, mas que certamente todos vocês sabem quem são.
Não vou me prolongar, esse era para ser um texto curto, curtíssimo, mas já se vão quatro páginas, e o que eu na verdade queria lhes dizer vem em seguida.
Quando sentei para escrever esse texto, a primeira coisa que me veio à mente (afinal de contas, não é disso que se trata o tempo todo nosso trabalho?), foi uma canção que retrata um pouco do que lhes queria comunicar durante o tempo em que permanecemos juntos. Quero que vocês saiam hoje com essa canção na cabeça estejam vocês onde estiverem daqui em diante.



Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim, chegar e partir
São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida[4].

Para os que partem, saibam que foi um prazer trabalhar com vocês. Levem consigo a crença de que tentei dar o máximo que me foi possível para contribuir na sua formação profissional. Perdoem meus erros e equívocos (para não dizer atos falhos). Isso também faz parte do jogo. Para os que permanecem, será muito bom aproveitar mais algum tempo com vocês no tempo que nos resta. Para os que acabam de chegar e ficam, gostaria de lhes dizer que é isso a vida: chegadas e partidas, encontros e despedidas. E que também me empenharei ao máximo em contribuir com o futuro profissional de vocês, na medida do impossível.
Queria terminar com um refrão de uma outra música que celebra a vida, a sua vida profissional que começa de hoje em diante:




Viver!
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz...
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser
Bem melhor e será
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita...[5]


Somos todos eternos aprendizes nessa jornada que se inicia. Um feliz 2012 para todos vocês!!!



Rio de Janeiro, 15 de Dezembro de 2011.





(*) Este texto, apesar de simples, é dedicado a Nathalia Lima Silveira, Vanessa Teixeira dos Santos, Camila Carvalho Machado, Felipe Nunes de Lima, Gustavo Corinto da Silva, Moisés dos Santos Vidal, Gabriela Souza, anna carolina das neves mourão, fernanda simões e senna, natalia serafim da silva e julia torres miranda de sá, minha primeira turma de estagiários da Divisão de Psicologia Aplicada Profa. Isabel Adrados do Instituto de Psicologia da UFRJ. Aprendi muito com todos vocês. Texto preparado para a última reunião de supervisão clínica e lido em 15 de dezembro de 2011.


[1] Wilde, Oscar. O artista Em As obras primas de Oscar Wilde. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 495-496.
[2] Idem, p. 497-498.
[3] Costa, Jurandir Freire. A questão da identidade sexual In Granã, Roberto. Homossexualidade: formulações psicanalíticas atuais. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 15-27.
[4] "Encontros e despedidas", Maria Rita.
[5] "O que é o que é", Gonzaguinha.








Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-RIO; Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Email de contato: sergiogsilva@uol.com.br. Visite também o meu site pessoal: http://sergiogsilva.sites.uol.com.br .