COMO É SER UMA CRIANÇA? [1]
OLIVER SACKS
The New York Times, 24 de maio de 1987
Tradução: Sergio Gomes
A psicanálise, sem desmerecimento, tem reunido algumas vezes uma
reputação equivocada de si mesma – seja ela não científica, não verificável,
redutora da riqueza da natureza humana e, não menos importante, propensa a usar
um jargão opaco que a torna inacessível para o leigo. O melhor antídoto para tudo isso é o
pensamento e a escrita direta e lúcida de D. W. Winnicott. Ali estava um homem
que poderia ser “popular”, completamente acessível, sem nunca deixar de ser
profundo; um homem que variou audaciosamente e chegou a lugares muito longe nos
reinos do pensamento, mas que sempre voltava para sua base, a psicologia da
criança.
Winnicott começou como um pediatra e continuou a trabalhar com crianças
durante toda a sua vida - suas teorias não são apenas “interpretações” ou
“construções”, como algumas teorias psicanalíticas são, mas estão enraizados em
sua observação do dia-a-dia de crianças. Com sua linguagem direta e contundente
e pontos de vista intensamente independentes, ele passou a deter uma posição
dupla única - como um grande pensador psicanalítico e teórico do
desenvolvimento e igualmente como uma figura pública; na Inglaterra, pelo
menos, ele era tão conhecido para o público como para seus colegas de
profissão.
A reputação e influência de Winnicott, considerável em sua vida, têm
aumentado continuamente desde a sua morte em 1971 e suas ideias muito
“prematuras” para ser totalmente compreendidas em seu tempo de vida, têm um
papel crucial no emocionante encontro entre a psicanálise e a biologia do
desenvolvimento que está ocorrendo hoje. Na última década, um grande tesouro
winnicottiano foi descoberto, incluindo “O brincar e a realidade”, um de seus
livros mais acessíveis e mais importantes, embora também tenha sido publicado
poucos meses depois de sua morte. Entre suas obras encontram-se “A Piggle” - um
relato do tratamento psicanalítico de uma menina; “Privação e delinquência”; “Tudo
começa em casa”, publicado no ano passado, que inclui suas palestras célebres
sobre “Viver Criativamente” (E mais de meia dúzia de livros estão em preparação).
E agora, na primavera deste ano, temos mais dois volumes.
“Holding e Interpretação: Fragmento de uma análise”, foi publicado
parcialmente e agora é editado em um texto definitivo, com uma importante
introdução de M. Masud Khan, a quem era muito próximo de Winnicott em vida e se
esforçou para reunir e editar várias obras póstumas desde sua morte. Aqui está
uma transcrição completa e um olhar para dentro do que geralmente é o segredo
mais privado de uma experiência analítica. Essas transcrições são extremamente
raras - mesmo para Freud, embora ele mantivesse notas detalhadas, mas nunca
manteve uma transcrição completa. Já houve, é claro, outras descrições de
análises que nos dão uma ideia geral dos temas centrais de uma análise e a
relação e os processos centrais do trabalho de uma analista, mas essa
transcrição é diferente. É o plano verdadeiro, em que tudo está em aberto para
ver: os momentos especiais pontuados pelas horas de tédio; o surgimento dos
sentimentos da transferência e da contratransferência; a mistura do
imprevisível e inevitável; os erros de interpretação e de datas e não menos importantes,
dos seus triunfos.
Uma introdução mais próxima e mais pessoal para o homem e seu trabalho
é fornecida por “O gesto espontâneo”, amplamente focado na seleção de cartas de
Winnicott. Nenhum desses livros havia sido publicado antes. Eles foram
sensivelmente editados F. Robert Rodman, que fornece uma introdução detalhada e
fascinante. Dr. Rodman descreve como ele mesmo, então um jovem analista em Los
Angeles, escreveu a Winnicott em 1969 e recebeu uma resposta particularmente
acolhedora – “foi mais do que uma resposta: foi um presente”. O impacto desta
carta, o sentido das cartas de Winnicott como “presentes”, levou o Dr. Rodman a
embarcar em um longo projeto de coletar quase mil cartas e selecionar as 126
publicadas no livro, todas centralmente relacionadas com o desenvolvimento do
trabalho e as ideias de Winnicott. Dr. Rodman é eminentemente adequado para
esse trabalho, uma vez que ele próprio é tanto um autor quanto um analista que
já reuniu sua sensibilidade humana em dois livros notáveis: ''Not Dying: A
Memoir' (Não morrer: uma memória) e “Keeping Hope Alive: On Becoming a
Psychotherapist” (Mantendo a esperança viva: sobre se tornar um psicoterapeuta)
[ambos sem tradução no Brasil].
A primeira carta do livro, escrito por Winnicott ainda como estudante
de medicina em 1919, é bastante notável, mostrando claramente, nesta fase, a
sua intenção de explorar a psicanálise (“um assunto que tem o grande charme de
ser realmente útil”); sua admiração e respeito pela mente humana e sua própria
independência extrema de ideias - uma independência que era a raiz de sua
originalidade subsequente; sua recusa em ser identificado com qualquer “escola”
de psicanálise e seu ser, em suas próprias palavras, era “um fenômeno isolado”.
Embora houvesse um continuado desenvolvimento de ideias ao longo sua
carreira, seu verdadeiro crescimento só veio no último terço de sua vida,
quando, ao longo de 25 anos de atividade criativa incessante, ele desenvolveu
suas técnicas e teorias totalmente originais. Uma técnica de projeção
winnicottiana foi o “jogo do rabisco” - um desenho começado por Winnicott, e,
em seguida, continuado como um jogo entre seus jovens pacientes e ele mesmo.
Winnicott disse que ele só se tornou realmente proficientes em rabiscos em
torno da idade de 60 anos e parece provável (como tem afirmado sua velha amiga
Madeleine Davis entre outros) que esta nova proficiência correspondeu à imensa
capacidade que ele tinha para o jogo durante os últimos 20 anos ou mais de sua
vida. Esta capacidade pessoal foi seu reconhecimento da imensa importância do
jogo no desenvolvimento humano e na cultura. Não havia separação entre o homem
e o pensador: o teórico de jogo tornou-se o mais brincalhão dos homens.
Enquanto o próprio Freud era imensamente espirituoso e escreveu “Os chistes em
relação com o inconsciente”, a teoria freudiana, em certo sentido, tinha pouco
espaço para o brincar, para outra coisa senão “realidade” ou “fantasia”. Winnicott, embora nunca tivesse entrado em
conflito com Freud, ampliou a psicanálise abrindo espaço para este terceiro
reino - o reino da liberdade ou do brincar, e traçou a sua continuidade do que
ele veio a chamar de “fenômenos transicionais” na infância, através do brincar
com crianças, para as mais altas e
criativas realizações imaginativas da humanidade.
Às vezes, algumas pessoas temem, nestes dias tecnologizados e de
ligações telefônicas apressadas, que a escrita de cartas irá desaparecer. Esta
seria uma grande tragédia, pois uma carta (na melhor das hipóteses) é uma forma
de comunicação diferente de qualquer outro, rica em conteúdo ainda que intensamente
pessoal - e as cartas de Winnicott estão entre as melhores. Winnicott, apesar
de sua eminente e incessante pressão de trabalho, nunca teve de voltar a
escrever e escreveu longa e abertamente a correspondentes de todos os tipos. Há
uma carta maravilhosa a um americano, um homem angustiado que escreveu para
Winnicott inesperadamente. Winnicott deve ter recebido inúmeras cartas desse
tipo, mas ele geralmente respondia na íntegra, com uma seriedade apaixonada e a
preocupação com o sofrimento de quem escreveu. Assim, nesta carta, sensível à
“agonia impensável” da qual seu correspondente sofria, ele via motivos para
esperança e afirmação.
Winnicott era infinitamente sensível às necessidades, especialmente as
não ditas e inconscientes, se estas eram as necessidades dos colegas ou de
pacientes, ou de estranhos que escreviam para ele. Ninguém sente, lendo essas
cartas, ter escrito para ele em vão (ninguém em necessidades). Ele foi movido
igualmente por necessidades intelectuais e culturais (e não menos importante, por
necessidades políticas). A necessidade de ser claro, para evitar obscuridade ou
jargão; a necessidade de ser independente; a necessidade de ser livre; a
necessidade, acima de tudo, para viver a vida de forma totalmente criativa.
Estes são os temas que se movem constantemente através de suas cartas, enquanto
se moviam constantemente através de sua vida e obra. Não é de se imaginar que
um homem tão consciente das necessidades e habitualmente claro e direto em suas
palavras, fuja às necessidades de ataque. Raramente pode ter havido um correspondente
franco como Winnicott - ele encarava de
frente seus ataques, conforme observa Dr. Rodman, mas os ataques sempre brotam
de sua intensidade de concernimento (intensity of concern). Assim,
em uma das cartas mais surpreendentes, para a famosa analista Melanie Klein ele
escreveu:
“Eu pessoalmente acho que é muito importante que o seu
trabalho deve ser reafirmado por pessoas que o descobrem em sua própria maneira
e apresentar o que apresentem o que descobrem na sua própria linguagem. E
apenas desse modo que a linguagem será mantida viva. Se você estipular que no
futuro apenas a sua linguagem seja usada para a afirmação das descobertas de
outras pessoas, então a linguagem se torna uma linguagem morta, como já se
tornou na sociedade. Você ficaria surpresa. Você é a única que pode destruir
esta linguagem chamada a doutrina kleiniana e kleinianismo, e tudo isso com um
objetivo construtivo. Se você não destruí-la, então esse fenômeno
artificialmente integrado tem de ser atacado destrutivamente”.
Winnicott tinha uma grande afeição pessoal por Melanie Klein, e ele a
considerou a mente mais criativa na psicanálise depois de Freud. Não foi Klein
mas o “kleinianismo” que incitou seu ataque. Muitos termos idiossincráticos de
Winnicott se passaram para a linguagem psiquiátrica - e, pelo menos na
Inglaterra, onde Winnicott tinha uma grande audiência popular, para o
vocabulário popular. Termos como “a mãe suficientemente boa”, “a mãe devotada
comum”, “a fase de concernimento”, “a exploração do ambiente” e não menos
importante, o conceito de “falso self” (que mais tarde foi assumido por R. D.
Laing) agora parecem muito mais parte do nosso vocabulário do que precisamos
lembrar que eles foram usados pela primeira vez por Winnicott. Mas
principalmente como o Dr. Rodman nos lembra, “ele foi o primeiro a abordar de
forma analítica uma questão que não tinha sido considerado por psicanalistas
diante dele: sobre o que versa a vida?”. Esta questão, previamente filosófica
ou religiosa, une os lados biológicos e religiosos de Winnicott, mas recebe
radicalmente novas formulações em termos psicológicos: é o tema central de seu
grande livro de 1965 chamado “O ambiente e os processos de maturação”, um
estudo profundo das necessidades e dos potenciais humanos e como eles devem ser
reconhecidos e tratados. O próprio título do livro diz tudo, salienta que estes
potenciais não amadurecem “espontaneamente”, mas exigem uma interação especial
- primeiro entre os pais e o filho, em seguida, entre professor e aluno, e depois
talvez entre o terapeuta e o paciente. Winnicott disse uma vez: “Não existe tal
coisa como um bebê”, o que significa que onde quer que você encontre um bebê,
você também irá encontrar uma mãe, e que os dois devem ser sempre considerados
como um par.
O fundador da neuropsicologia, L. S. Vigotsky, teve precisamente a
mesma visão interativa sobre o desenvolvimento da linguagem e do pensamento em
si: que estes não poderiam desenvolver sem figuras de facilitação - “mediadores” - situado a uma certa
distância (no que Vigotsky chamou de “zona de desenvolvimento proximal”), que
poderia servir para trazer os potenciais latentes da criança. A linguagem, para
Vigotsky, foi uma realização conjunta, negociada entre a mãe e o filho. Pode
igualmente ser vista em termos winnicottianos como um “objeto transicional”,
“mediação entre o mundo exterior e interior”. O trabalho de Vigotsky, em 1936,
foi prontamente reprimido (como sendo anti pavloviano), e é provável que
Winnicott nunca soube disso (ao menos por Luria, o neuropsicólogo que falou
sobre isso com Winnicott - Dr. Rodman inclui uma breve carta tentadora, de
Winnicott para Luria, aludindo a um fim de semana de conversa em conjunto). E
só agora que Vigotsky está sendo redescoberto, e vemos que ele e Winnicott são
irmãos, e a neuropsicologia e a psicanálise são complementares e paralelas.
A psicanálise antes de Winnicott estava preocupada com a doença, com
tudo o que poderia dar errado (emocionalmente) com uma pessoa. Winnicott,
enquanto um analista soberbo no sentido clássico - e um dos primeiros a tratar
pacientes profundamente regredidos e psicóticos - via a saúde como sua preocupação
central. E saúde, para Winnicott, não era apenas a ausência de doença, mas um
estado intensamente positivo de realização - a preservação da capacidade da criança brincar e imaginar; uma inviolável independência e espontaneidade; uma riqueza
cada vez maior e liberdade de vida interior; e, acima de tudo, a capacidade de
viver criativamente. E viver criativamente, para Winnicott, não era apenas
algo para raras pessoas em momentos raros, mas potencialmente para todos, em
todos os momentos.
[1] “What it´s like to be a child”, foi publicado originalmente no “The New York Times”, em 24 de maio de 1987. Este artigo foi escrito quando da publicação, nos Estados Unidos, dos livros “O Gesto Espontâneo”, coletânea de cartas de Winnicott, organizada pelo psicanalista Robert Rodman e “Holding e Interpretação”, sobre o tratamento de um paciente esquizoide feito por Winnicott a partir de suas notas clínicas. Disponível originalmente no link: http://www.nytimes.com/1987/05/24/books/what-it-s-like-to-be-a-child.html?pagewanted=all#h[]
[1] “What it´s like to be a child”, foi publicado originalmente no “The New York Times”, em 24 de maio de 1987. Este artigo foi escrito quando da publicação, nos Estados Unidos, dos livros “O Gesto Espontâneo”, coletânea de cartas de Winnicott, organizada pelo psicanalista Robert Rodman e “Holding e Interpretação”, sobre o tratamento de um paciente esquizoide feito por Winnicott a partir de suas notas clínicas. Disponível originalmente no link: http://www.nytimes.com/1987/05/24/books/what-it-s-like-to-be-a-child.html?pagewanted=all#h[]